A mão invisível da milícia

Com milícia em expansão, confrontos policiais no Rio miram tráfico e somam só 3% em áreas de milicianos

Igor Mello e Lola Ferreira Do UOL e colaboração para o UOL, no Rio Medo e demência/UOL

O dia 7 de abril de 2018 ainda não havia amanhecido quando dezenas de policiais civis chegaram ao Sítio 3 Irmãos, em Santa Cruz, zona oeste do Rio. A ação tinha o objetivo de prender o miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko —chefe da Liga da Justiça, maior milícia do estado.

A operação foi um desastre: o criminoso fugiu durante troca de tiros que deixou quatro de seus seguranças mortos. Autoridades policiais insistiram na versão de que um show de pagode, com venda de ingressos e ampla divulgação, era uma reunião de paramilitares.

Não demorou para que as histórias de inocentes presos injustamente proliferassem na imprensa. Mais de 150 pessoas foram detidas, mas quase todas foram libertadas semanas depois, quando o MP (Ministério Público) do Rio admitiu que não havia elementos para imputar crimes a 138 presos. Levantamento da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas) entregue à Defensoria Pública mostrou que 139 detidos nunca tinham sido sequer investigados por envolvimento com grupos paramilitares.

Esse tipo de confronto armado entre policiais e paramilitares é raridade, como mostra levantamento inédito feito pelo UOL com base em registros do Laboratório de Dados sobre Violência Armada Fogo Cruzado.

A análise de 2.959 tiroteios com a presença de agentes de segurança na cidade do Rio entre 5 de julho de 2016 e 30 de setembro de 2019 revela um padrão. Na prática, o Rio é uma cidade com duas polícias: uma que promove incessante e violento confronto contra o tráfico de drogas e outra leniente com as milícias.

Para chegar a essa constatação, a reportagem analisou os locais onde esses confrontos armados ocorreram a fim de checar se essas áreas eram dominadas pelo crime organizado e determinar quais grupos criminosos atuavam ali. As trocas de tiros envolvem sobretudo a Polícia Militar, responsável pelo policiamento ostensivo e por operações regulares em comunidades. Também há, em menor número, registros envolvendo operações da Polícia Civil e das Forças Armadas —que atuaram no Rio durante intervenção federal na segurança do estado, em 2018.

Apesar de já ocuparem parte considerável da cidade, as áreas de milícia foram palco de apenas 88 trocas de tiro com as forças de segurança em mais de três anos —2,97% do total. Atualmente, conforme levantamento feito pelo UOL com base em informações do MP do Rio, mais de 40% do território da capital já é dominado por esses grupos.

Por outro lado, 2.333 tiroteios se deram em favelas dominadas pelas três principais facções de traficantes do estado —o equivalente a 78,8% do total de tiroteios envolvendo agentes de segurança em mais de três anos.

Esse movimento acontece em um cenário em que as milícias, apontadas hoje como a principal ameaça à segurança no Rio, expandem seus tentáculos sobre territórios até então dominados pelo tráfico —não só com a tolerância da polícia em áreas já controladas por milicianos, conforme indica o levantamento, mas com a ajuda de agentes de segurança para tomada de comunidades, segundo investigações em curso no estado.

Para a promotora Simone Sibilio, coordenadora do Gaeco (Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado) do MP, a Operação Intocáveis, deflagrada em janeiro de 2019, dá um vislumbre dessa diferença. A ação prendeu parte das lideranças do Escritório do Crime —milícia que controla a comunidade do Rio das Pedras, na zona oeste, que é investigada por ligação com a morte da vereadora Marielle Franco. Entre os presos, está o major Ronald Paulo Alves Pereira, um dos líderes do grupo.

"Eles [os milicianos] têm sim, proteção", diz, citando como exemplo o fato de Ronald estar prestes a chegar à patente de tenente-coronel, na qual estaria apto a comandar batalhões de área ou unidades especializadas da PM. "Não temos operação [de combate às milícias] sem a participação de agentes públicos."

Ainda de acordo com a promotora, embora ainda não existam provas cabais de que batalhões da PM estão atuando a serviço das milícias, isso é uma hipótese plausível. "Não identificamos ainda a ação dolosa de um batalhão, o que há é uma inferência [nesse sentido]. Mas a gente não descarta porque a omissão é clara", pontua.

A conclusão é de que, na Cidade Maravilhosa, apenas determinados CEPs são alvo da política de confronto que norteia a segurança pública há décadas.

A Secretaria de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro defendeu rigor no combate a grupos criminosos, mas não se manifestou sobre o resultado do levantamento do UOL.

Mapa: os 2,9 mil tiroteios envolvendo policiais e facções

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A cor dos pontos indica a facção envolvida no tiroteio: CV (Comando Vermelho), TCP (Terceiro Comando Puro), ADA (Amigos dos Amigos) e milícias. Os pontos na cor preta representam confrontos em áreas sem domínio de facções. Há ainda pontos onde foram identificadas disputas entre facções pelo controle do território.

Ao clicar sobre os pontos, é possível ver informações detalhadas sobre cada troca de tiros: a facção envolvida, a localidade, a região onde ela ocorreu, data e hora da notificação.

O Laboratório de Dados sobre Violência Armada Fogo Cruzado coleta os dados geolocalizados sobre as trocas de tiros em três fontes diferentes: notificações feitas por usuários do aplicativo da plataforma, relatos publicados na imprensa e informações oficiais divulgadas por órgãos de segurança pública. Os registros indicam a localização aproximada do confronto.

As milícias: Da origem à expansão

CDD e Gardênia: Vizinhas, mas com atuação diferenciada do mesmo batalhão

Embora tenham uma presença histórica em diversos bairros da zona norte carioca, é na zona oeste que a milícia nasceu, sofisticou seus métodos de atuação e partiu em uma expansão desenfreada pelo estado do Rio.

Considerada o local de fundação das milícias, a comunidade do Rio das Pedras, em Jacarepaguá, registrou somente uma troca de tiros com presença de policiais desde julho de 2016.

A favela é controlada pelo Escritório do Crime, grupo acusado de matar a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. A quadrilha domina outras comunidades no bairro vizinho do Itanhangá —entre elas, está a favela da Muzema, onde dois prédios construídos por milicianos desabaram em abril, matando 24 pessoas.

Na Gardênia Azul, outra comunidade de Jacarepaguá dominada há décadas por paramilitares, também houve apenas um tiroteio. Uma rua —a Estrada do Gabinal— separa a comunidade da Cidade de Deus. As duas comunidades são patrulhadas mesma unidade da Polícia Militar: o 18º BPM (Jacarepaguá).

Esse batalhão tem um histórico de acusações de ligação com milícias. Lá trabalharam juntos o ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, o Capitão Adriano, chefe do Escritório do Crime, e Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar pivô do escândalo envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Se na vizinha Gardênia reina a paz, a favela celebrizada pelo filme de Fernando Meirelles mantém o cotidiano violento exibido nos cinemas: foram 173 confrontos com as polícias desde 2016 —o que lhe confere o 2º lugar no ranking de tiroteios, ficando atrás apenas do Complexo do Alemão, na zona norte. A favela hoje é o principal território do Comando Vermelho na zona oeste carioca.

Confrontos despencam após milícia tomar Santa Cruz

Estimativas obtidas junto ao Ministério Público do Rio de Janeiro mostram que apenas a Liga da Justiça controla totalmente nove bairros da zona oeste — Campo Grande, Inhoaíba, Cosmos, Paciência, Guaratiba, Barra de Guaratiba, Pedra de Guaratiba, Sepetiba e Santa Cruz. Neles vivem aproximadamente 1 milhão de pessoas (16,8% da população da capital fluminense).

Nas áreas controladas pelo grupo, houve apenas 45 registros de disparos de armas de fogo envolvendo agentes de segurança em mais de três anos. Para efeito de comparação, somente a Vila Kennedy (comunidade em Bangu controlada pelo CV) teve mais que o dobro de confrontos (93).

O bairro dominado pelo grupo com mais trocas de tiros é Campo Grande, com 26 registros de disparos de armas de fogo com envolvimento policial em mais de três anos. Porém, os confrontos no bairro mais populoso do Rio fogem do padrão estabelecido no resto da cidade: em Campo Grande, a maior parte deles ocorre em vias de grande fluxo, e não em comunidades.

Campo Grande é também o berço da Liga da Justiça. Foi lá que o vereador Jerônimo Guimarães, o Jerominho, e seu irmão Natalino Guimarães, deputado estadual, criaram as bases do que viria ser a presença paramilitar no século 21: diversificaram as atividades criminosas para muito além da cobrança de taxas de segurança e implementaram uma máquina de intimidação contra moradores e comerciantes das áreas dominadas.

A violência brutal contra inimigos e testemunhas de crimes virou uma marca do grupo paramilitar: em meados dos anos 2000, a cena de pessoas metralhadas por milicianos se tornou uma rotina em Campo Grande e bairros vizinhos.

O grupo se expandiu, mesmo com a prisão dos seus dois líderes. O último reduto conquistado foi Santa Cruz —bairro carioca mais distante do centro da cidade.

Historicamente, o Comando Vermelho sempre teve presença forte em Santa Cruz. Por isso, levou 11 anos para que os paramilitares expulsassem a facção da região. O confronto final ocorreu na favela de Antares, principal reduto do CV no bairro, e teve uma data simbólica: 8 de outubro de 2018, dia seguinte ao primeiro turno da última eleição.

A expansão da milícia contou com o auxílio da Polícia Militar —seja enfraquecendo os traficantes do CV com operações, seja passando ao largo das áreas dominadas pelos paramilitares. De meados de 2016 até a conquista definitiva dos milicianos, Santa Cruz teve 37 confrontos com policiais. Destes, 29 ocorreram em comunidades controladas pelo tráfico e apenas quatro em territórios de milicianos.

Depois que a Liga da Justiça consolidou seu domínio integral sobre Santa Cruz, foram registrados somente dois confrontos com policiais. Desde o fim de março, o Fogo Cruzado não cataloga ocorrências do tipo no bairro.

Investigação aponta ação de PMs para triunfo da milícia x tráfico

Um dos últimos embates entre a milícia e o CV em Santa Cruz evidenciou com clareza poucas vezes vista a colaboração da PM para a expansão desses grupos. Em 30 de julho de 2018, os paramilitares dominaram a favela do Rola. A comunidade era importante por ser vizinha da favela de Antares —que ficaria totalmente cercada pela Liga da Justiça, caso a comunidade aliada fosse tomada.

Imagens feitas por equipes de TV e flagrantes publicados por moradores nas redes sociais mostravam dezenas de criminosos vestidos de preto. Eles usavam máscaras, coletes à prova de balas e fuzis para sustentar o tiroteio.

O confronto suspendeu a circulação do BRT Transoeste e das linhas de ônibus, além de impedir milhares pessoas de irem ao trabalho ou à escola naquela manhã.

Enquanto moradores relatavam um cenário de caos, a PM —que deveria agir para encerrar a guerra— a estimulava. Fotos distribuídas pelas redes sociais mostram um grupo de policiais calmamente no local. Alguns deles interditavam a avenida Cesário de Melo, um dos principais corredores viários da zona oeste, para garantir a livre circulação dos milicianos. Outros chegaram a ser flagrados ao lado dos bandidos, em uma interação amistosa.

Reprodução

As imagens fizeram com que a Corregedoria da PM abrisse uma investigação contra um sargento, uma cabo e dois soldados do 27º BPM (Santa Cruz).

As 150 páginas do procedimento, obtido com exclusividade pelo UOL, mostram que os PMs —embora alegassem terem confundido os milicianos com policiais— não tinham como não saber que se tratavam de bandidos. A Corregedoria pediu à Justiça medidas duras, como a prisão preventiva dos policiais e a quebra de seus sigilos telefônicos, mas não foi atendida.

No pedido de prisão, os investigadores citam o filósofo chinês Confúcio para lembrar que uma imagem vale mais que mil palavras. Destacavam o impacto daqueles flagrantes.

O documento afirma que os policiais incorreram no crime de inobservância da lei, previsto no Código Penal Militar: "Observa-se por parte dos policiais militares (...) uma postura enxague em relação às normas e regulamentos, onde pode ser enquadrado no Art. 324 do Código Penal Militar (...) (Deixar, no exercício da função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar)", conclui.

Atualmente, o caso encontra-se nas mãos do Ministério Público, ainda sem denúncia à Justiça.

Dados obtidos pelo UOL por meio da Lei de Acesso à Informação revelam que, entre 2008 e 2018, apenas 81 PMs foram expulsos dos quadros da corporação por envolvimento com milícias. A PM argumenta que o crime de milícia só foi tipificado em 2012 e que, "há exclusões decorrentes de crimes acessórios inerentes à prática de milícia", mas não deu novos números.

Medo e demência/UOL Medo e demência/UOL

Tráfico de drogas: o "melhor negócio" da milícia

O levantamento feito pelo UOL mostra que a ação policial violenta é rara em áreas de milícia. Isso não ocorre porque o tráfico de drogas e outros crimes sejam menos frequentes nesses territórios. Pelo contrário, estimativas de investigadores dão conta de que a venda de drogas já é a maior fonte de receitas de diversos grupos paramilitares, entre eles, a Liga da Justiça.

É cada vez mais frequente que essas quadrilhas aceitem a entrada de criminosos oriundos de facções de tráfico. As traições ganharam até mesmo uma gíria no mundo do crime, que repercute nas redes sociais: "o muro tá baixo". A expressão quer dizer que um grupo rival está ativamente aliciando membros de outra facção —seja para promover um golpe interno, seja para obter novos combatentes em caso de áreas disputadas por duas quadrilhas. O próprio Ecko, chefe da Liga da Justiça, foi traficante antes de ingressar na milícia.

A parceria de diversas quadrilhas de milicianos —inclusive a Liga da Justiça— com a facção TCP (Terceiro Comando Puro) já foi documentada em uma série de investigações do MP e da Polícia Civil. Assim que dominam uma nova área, os milicianos terceirizam a venda de drogas, ficando com uma parte do lucro obtido.

Temos informes concretos da ligação do TCP com a milícia. A facção vende drogas com a milícia. Cada comunidade que tomam do Comando Vermelho, eles colocam os buchas [do TCP] para vender, da mesma forma que ocorre nas comunidades dominadas pelo tráfico.

Luiz Antônio Ayres, promotor

Ayres investiga a milícia na zona oeste há mais de 20 anos e hoje é titular da 20ª Promotoria de Investigação Penal de Campo Grande.

O sociólogo José Cláudio Souza Alves é um dos maiores estudiosos da ação das milícias no Rio. Professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e morador da Baixada Fluminense, ele afirma que há relatos de áreas que são alugadas por milicianos para que o TCP atue.

Essa espécie de outorga ocorre após a expulsão do CV —seja por milicianos e integrantes de grupos de extermínio, seja pela ação das polícias.

Após isso, a milícia aluga pro TCP, quando não quer ela própria o controle. Porque o controle têm ônus. Quando já há uma situação estabelecida que é favorável a ela, a milícia cede e aluga para que a facção assuma.

José Cláudio Souza Alves, sociólogo

Apesar de acobertarem o tráfico e outras atividades criminosas consideradas prioritárias pela política de segurança pública —como o roubo de cargas—, as milícias não têm sido os alvos preferenciais de prisões. Dados divulgados pelo próprio governador Wilson Witzel (PSC) em novembro dão conta de que, até aquele momento, cerca de 1% dos presos no estado eram milicianos —377 das 30.792 prisões.

Delegado aposentado, Cláudio Ferraz esteve na linha de frente da repressão às milícias quando comandou a Draco (Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas) entre 2007 e 2011. Depois assumiu o órgão responsável por regulamentar o transporte alternativo no município —uma das principais fontes de recursos dos paramilitares.

Segundo ele, hoje esses grupos vêm mantendo sob sua proteção todas as atividades criminosas que ocorrem em suas áreas de influência. Por um lado, isso faz com que haja uma aparente paz, já que sua penetração nas forças de segurança garante que não haverá conflitos. Por outro, permite que o crime maximize seus lucros.

"O que se percebe claramente é que essas milícias, considerando a interlocução com a máquina do Estado, estão galgando um patamar de fazer a gestão e arbitragem de todas as atividades ilegais que ocorrem em sua área de atuação. O roubo de carga, a receptação, a falsificação de bebidas, o contrabando de cigarros, a venda de armas, o roubo de caixas eletrônicos, o tráfico de drogas, a extorsão, a cobrança de estacionamento clandestino, as construções irregulares, a grilagem de terras. Tudo passa por eles", resume.

A promotora Simone Sibilio, coordenadora do Gaeco do MP-RJ, diz que as investigações do órgão chegam à mesma conclusão.

"Você sabe que a milícia ocupou uma área quando os índices de criminalidade começam a cair. É o crime organizado regulando a mancha criminal", explica.

Comando Vermelho: o alvo preferencial das polícias

O levantamento do UOL mostra que grande parte dos confrontos com forças policiais ocorre em comunidades da zona norte do Rio controladas pelo CV (Comando Vermelho), maior e mais antiga facção de tráfico no estado. No total, 56% dos tiroteios ocorreram em áreas dominadas pelo grupo.

A cada cinco registros de embates com as polícias na cidade, um acontece nas principais favelas controladas pelo Comando Vermelho: Complexo do Alemão, Jacarezinho e Complexo do Chapadão, na zona norte, além de Vila Kennedy e Cidade de Deus, na zona oeste.

Dessas cinco, apenas o Chapadão não foi contemplado com uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). O programa de pacificação do governo Sérgio Cabral (MDB), implantado pelo ex-secretário de Segurança José Mariano Beltrame, é alvo de críticas por parte dos especialistas na área por atingir quase exclusivamente comunidades dominadas pelo CV.

Entre as consequências dessa escolha, está a migração de criminosos para comunidades da região metropolitana e do interior do Rio. Cidades antes pacíficas, como Angra dos Reis, na Costa Verde, hoje convivem com constantes tiroteios, armas de grosso calibre e crescimento expressivo em seus índices de criminalidade.

Em maio, Witzel foi criticado por participar de uma operação da Polícia Civil na cidade. Ele foi filmado em um helicóptero enquanto um sniper atirava de fuzil contra uma tenda em um monte, usada por evangélicos para orações. Antes, o governador gravou um depoimento ao lado de policiais em que anunciou o fim da ação de criminosos em Angra: "Acabou a bagunça", bradou.

As promessas de Witzel estão longe de se cumprir: em dezembro, sete corpos foram abandonados em frente ao Corpo de Bombeiros de Angra. Eles seriam vítimas de uma chacina cometida por traficantes contra uma quadrilha rival.

Assim como ocorre na zona oeste da capital, Angra dos Reis também é uma área de crescente interesse das milícias.

Jose Lucena/Estadão Conteúdo

Na Praça Seca, operações policiais ajudaram milícia

A expansão das milícias vem mirando sobretudo as áreas dominadas pelo CV: além da favela de Antares, paramilitares vêm patrocinando guerras pelo controle de comunidades na Praça Seca, no outro extremo da zona oeste.

O bairro, que faz parte da região de Jacarepaguá, é estratégico para os planos de longo prazo dos milicianos: representa a divisa entre as zonas oeste e norte da cidade, ficando perto de bairros importantes como Madureira.

Um informe da Polícia Civil, ao qual o UOL teve acesso, mostra que o domínio mudou de mãos. Depois dos primeiros ataques em 2017, o CV retomou o domínio da Praça Seca, com os milicianos tendo controle apenas da comunidade da Chacrinha. O cenário mudou no fim de 2018. Uma aliança entre milicianos da Liga da Justiça, de Jacarepaguá e do Campinho realizou uma ofensiva e retomou diversas comunidades.

Na região, é comum entre moradores o relato de que a PM —e sobretudo o 18º BPM (Jacarepaguá)— foi decisiva para que a milícia retomasse as comunidades. Desde julho de 2016, houve 90 tiroteios com as polícias na região da Praça Seca: 73 em áreas do tráfico e apenas sete da milícia.

Em maio, o MP e a Polícia Civil deflagraram a Operação Entourage, que prendeu integrantes de uma milícia de Jacarepaguá. O grupo é comandado pelo miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, que chegou a ser apontado como um possível articulador da morte de Marielle Franco.

Na denúncia contra 22 integrantes da quadrilha, os promotores afirmam que o grupo "também possuía outras formas perniciosas de interagir com o Poder Público". Os milicianos atuaram lado a lado com a PM em uma operação em comunidade dominada pelo tráfico na região.

"A súcia [milícia], em ao menos uma ocasião, chegou a atuar em conjunto com policiais militares em operação voltada para a repressão ao tráfico de drogas em áreas de interesse da organização criminosa", declararam os promotores.

Autoridades apontam reservadamente que, após dominarem a Praça Seca, os milicianos terão como próximo alvo a Cidade de Deus.

Secretaria da PM defende rigor contra milícias, mas silencia sobre levantamento

A Secretaria de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro defendeu rigor no combate a grupos criminosos.

Por meio de nota, o órgão defendeu punição de desvios de conduta de agentes de segurança, com a tomada de medidas como, por exemplo, a expulsão dos quadros da corporação.

Questionada, a pasta não se manifestou sobre o levantamento do UOL que mostra repressão violenta contra o tráfico e leniência em relação às milícias por parte de agentes de segurança.

A secretaria também não comentou as investigações apresentadas na reportagem sobre suspeitas de apoio de PMs na tomada de territórios por milicianos. Disse apenas que atua no combate a este tipo de crime ao lado da Polícia Civil e Ministério Público.

O UOL também pediu à secretaria entrevistas com seus dirigentes, mas não obteve retorno.

Leia a seguir a íntegra da nota:

A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio de Janeiro reitera a posição do Comando da Corporação de que as quadrilhas de milícias precisam ser combatidas com rigor, como qualquer outra facção criminosa.

A Corregedoria Geral da Polícia Militar atua na apuração de desvios de conduta de policiais militares para que as medidas cabíveis sejam tomadas, inclusive com a exclusão dos quadros da instituição.

Vale ressaltar também a atuação da Secretaria de Estado de Polícia Militar em parceria com a Secretaria de Estado de Polícia Civil e com o Ministério Público estadual no combate a este tipo de crime. As unidades operacionais participam de ações para cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão expedidos pela Justiça contra integrantes dessas quadrilhas.

Considerando que sua demanda relata o período de 2008 até 2018, cabe informar também que a tipificação de constituição de milícia privada foi incluída em 2012 no Código Penal. Antes deste prazo, podem ter ocorridos exclusões porém sem a inclusão do referido delito pela sua inexistência até então. No entanto, há exclusões decorrentes de crimes acessórios e inerentes à prática de milícia.

Sem confronto, milícia não vende segurança

Fontes na Polícia Civil e no MP ouvidas pelo UOL sustentam que os confrontos constantes em áreas dominadas pelo tráfico interessam a milicianos. Com um discurso moralizador, esses grupos usam o medo causado pelos embates entre tráfico e polícia para justificar seu domínio sobre comunidades, ao mesmo tempo que, ao se estabelecerem em um novo local, travestem a extorsão a moradores e comerciantes como uma taxa de segurança para impedir a volta dos traficantes.

Via de regra, esses grupos paramilitares têm em postos estratégicos agentes do braço armado do Estado —como policiais militares, civis, bombeiros e membros das Forças Armadas.

Delegado aposentado da Polícia Civil, Cláudio Ferraz é categórico ao destacar que a vida dupla mantida por policiais milicianos gera conflito de interesses que afeta a política de segurança pública como um todo, por vezes fazendo com que as forças do Estado sejam manipuladas para atender a interesses desses grupos.

"O grande perigo disso é o alinhamento desses agentes do Estado participando do poder público e trabalhando em paralelo no crime, como se fossem dois universos paralelos: o legítimo e o ilegítimo. Eles ganham com a desregulamentação e a desordem", explica.

O traficante quer paz para vender o seu produto. Já o miliciano quer guerra. Se não tiver confronto, como ele vai vender a segurança? Se não mantiver a sociedade em estresse, a mercadoria dele, que é a segurança, não existe.

Cláudio Ferraz, delegado aposentado

Ferraz comandou a Draco (Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas) em um período em que chefões das milícias —vários deles com atuação política importante no Rio— foram presos.

O mais notório foi o vereador o Jerônimo Guimarães, o Jerominho, figura proeminente do grupo político que governava o Rio e fundador da Liga da Justiça. Ele foi preso em 2007 e passou um longo tempo na prisão —assim como seu irmão, o ex-deputado estadual Natalino Guimarães. Os dois deixaram a cadeia em outubro de 2018 e hoje tentam reabrir seu centro social, que oferece serviços gratuitos à população.

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