Escondido entre a mata atlântica e a Baía de Sepetiba, a 90 km do Rio, o Porto de Itaguaí pode passar despercebido se comparado aos maiores terminais marítimos do Brasil. Mas o volume de contrabando e drogas que entram e saem por ali o coloca como o nº 1 na preferência de milicianos e traficantes do PCC.

De aparelhos usados para piratear sinal de TV por assinatura a roupas de marca falsificadas vendidas na 25 de Março, em São Paulo, tudo chega por Itaguaí.

Chegava. De 2018 para cá, a Receita Federal começou a bater de frente com as gangues. Só neste ano, já são 700 kg de cocaína e 3.500 t de mercadorias ilegais apreendidas.

Esta é a história de como as forças de segurança se organizaram para estancar a sangria no porto que reúne o maior número de apreensões de carga do país.

Milícias e piratas

Cercado por grades e arame farpado e vigiado por câmeras 24 horas, um dos pátios do Porto de Itaguaí abriga pilhas de até quatro contêineres uns sobre os outros recheadas de apreensões. Ao todo, os itens recolhidos ocupam 500 contêineres.

Imitações de iPhone, roupas, cuecas, relógios, raquetes, brinquedos e termômetros infravermelho são alguns dos itens mais comumente confiscados no local.

Identificados, eles têm três destinos: doação, se estiverem em bom estado; leilão, se puderem gerar dinheiro para os cofres públicos; ou destruição, caso violem direitos autorais ou haja componentes que façam mal à saúde.

Em uma área do porto, sacos brancos de lona armazenam restos de peças de plástico preto, onde se lê expressões como "5G" e "4K". São aparelhos de TV Box.

Mais de 1 milhão de dispositivos do tipo foram apreendidos em operações da Receita e da Polícia Civil no porto entre 2020 e 2021.

A quantidade tem relação com um fenômeno típico do Rio: o TV Box é usado para ofertar serviços de "gatonet", uma das principais fontes de receita para as comunidades controladas por milícias — e Itaguaí está cercado por elas.

Eu me lembro que, por meses, a gente ia apontando os contêineres e, de cada quatro, três tinham apreensões. São taxas, no contexto nacional, completamente fora do normal, esdrúxulas.

Raul dos Santos Gomes Pereira, chefe-substituto da Coordenação Especial de Gestão de Riscos Aduaneiros da Receita Federal

As caixas do PCC

Mangas recheadas com cocaína também quase fizeram escala no Porto de Itaguaí.

As frutas foram encontradas em 30 de setembro de 2021, quando policiais civis e federais descobriram um galpão usado por traficantes na avenida Ponte Preta, a 20 km do terminal.

Ao entrarem no espaço, localizaram 120 caixas com mais de 1.500 mangas em uma câmara refrigerada. Dentro das frutas, em vez de caroços, bexigas com cocaína. Ao todo, 641,5 kg, avaliados em R$ 200 milhões.

Se os policiais não tivessem agido, um caminhão levaria o carregamento até o porto. De lá, a droga seguiria de navio para a Europa.

A sequência das investigações revelou uma quadrilha com mais de 20 pessoas, espalhada por cinco estados e ligada ao PCC (Primeiro Comando da Capital), que já usava terminais como o de Itaguaí para exportar cocaína.

O caso das mangas não foi único. Só em 2022, as Polícias Civil e Federal apreenderam, juntamente com a Receita, mais de 700 kg de cocaína a caminho da Itália e outros países por meio do terminal, escondidas em contêineres e tambores de massa corrida.

Funcionários da Receita comentam que traficantes cariocas também descarregam drogas de embarcações ancoradas na Baía de Sepetiba e usam os canais da foz do Rio Guandu para entrar com o material em Antares e outras favelas da região.

Itaguaí é um porto num lugar muito isolado. Mas, ao mesmo tempo, num ponto logístico muito bom, e a Receita tinha dificuldade de alocar gente lá. Então, os grupos criminosos foram aproveitando uma eventual fraqueza e a coisa foi se instalando

Raul dos Santos Gomes Pereira

A gangue dos auditores

O auditor fiscal Josafá Beserra Siqueira fez um bom negócio em 5 de julho de 2017, de acordo com dados de denúncia do Ministério Público Federal. Naquela data, comprou por R$ 800 mil o apartamento 201 do condomínio Well Sunset, na avenida Lúcio Costa, no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio.

Avaliado em R$ 1,7 milhão, o imóvel foi vendido apenas dois meses depois aos proprietários da cobertura do prédio por R$ 2,2 milhões. Os investigadores concluíram que as transações foram feitas com dinheiro vivo, já que não havia registro de movimentação dos valores nas contas do servidor.

Obtidos pelo UOL por meio da Lei de Acesso à Informação, os dados fazem parte de uma investigação realizada entre 2014 e 2019. De acordo com a denúncia, auditores recebiam suborno e vendiam laudos técnicos em troca de facilidades para empresas.

Roupas e outros produtos eram misturados a itens que pagam impostos mais baratos para entrar no país com tributação menor —entre outras manobras.

Num dos casos, a quadrilha registrava peso de 0,5 g para canetas importadas que pesam de 8 g a 10 g, a fim de reduzir o valor final da taxação que incidia sobre as mercadorias. A rua 25 de Março, em São Paulo, era o destino do contrabando.

Siqueira não foi o único do bando a se beneficiar. Segundo os investigadores, Cláudia Abreu Cavalcante comprou em 2015 um apartamento no Barramares, um dos mais antigos condomínios da Barra da Tijuca, por R$ 510 mil. De acordo com a denúncia, um imóvel ali dificilmente custaria menos de R$ 2 milhões.

Em outra transação, ela pagou R$ 80 mil por uma casa no bairro do Joá. O imóvel era avaliado em R$ 750 mil.

Procurada pelo UOL, Cláudia não retornou à reportagem. Já Siqueira faleceu em setembro último. A 7ª Vara Federal Criminal informou que a ação ao qual os dois respondem corre hoje sob segredo de Justiça e ainda não foi julgada.

Não aceitamos que a região se tornasse controlada pelo crime.

Flávio Passos Coelho, superintendente da Receita Federal na 7ª Região Fiscal

Quem manda no porto

"O pau quebrou muito sério lá. A chapa era muito quente."

É assim que Raul dos Santos Gomes Pereira, chefe substituto da Coordenação Especial de Gestão de Riscos Aduaneiros da Receita Federal, resume a contraofensiva do órgão em Itaguaí, com a intensificação dos exames físico e documental de cargas em operações com Marinha, Polícia Rodoviária Federal e outras instituições.

Nos últimos cinco anos, 22,4 mil t de produtos ilegais foram apreendidas em Itaguaí, 5.000 t a mais do que o que foi capturado no porto de Santos, o maior da América Latina. O valor das mercadorias retidas nesse período está estimado em R$ 1,4 bilhão, contra R$ 1 bilhão em Santos.

Só entre 2020 e 2021, houve queda de 45% para 10% na fatia das chamadas empresas "de alto risco" que atuam no porto de Itaguaí.

"Foi estancada a sangria", afirma Élcio Ferreto da Silva, delegado da Receita responsável pelo porto.

Eles apostavam que ia ser um voo de galinha e tudo voltaria a ser como era antes. A gente olhava as apreensões e falava: 'Esses caras não vão parar? Quanto tempo mais?'.

Raul dos Santos Gomes Pereira

Tem que manter

Em 2019, o então delegado da Receita em Itaguaí, José Alex Nóbrega de Oliveira, compartilhou com colegas um texto no qual afirmava sofrer pressões por conta de seu trabalho. À época, circulou entre os auditores a informação de que a fiscalização no porto incomodava membros do governo em Brasília - o que a Receita Federal sempre negou. Procurado pelo UOL, José Alex Nóbrega de Oliveira disse que prefere não comentar o episódio.

"Controle aduaneiro é uma atividade difícil e que envolve vários interesses econômicos, eventualmente até de organizações criminosas", afirma Isac Falcão, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil.

Até hoje, Falcão não sabe quem queria tirar Oliveira de Itaguaí e quais seriam as razões para isso. Apesar da crise, o delegado se manteve no cargo até 2021, quando Élcio Ferreto da Silva assumiu a função, até hoje desempenhada por ele.

Após as intervenções realizadas nos últimos anos e o recorde de apreensões, a expectativa na Receita é que Itaguaí registre um menor fluxo de cargas irregulares nos próximos tempos. Apesar de comemorar os resultados, o delegado da Silva sabe que o trabalho está apenas começando.

Neste trabalho que a gente faz, a preocupação é manter. É como diz uma personagem no filme 'Cidade de Deus': 'O malandro não para, o malandro dá um tempo'. Se a gente parar o que a gente está fazendo, daqui a pouco esse pessoal volta.

Élcio Ferreto da Silva, delegado da Receita no Porto de Itaguaí desde 2021

Topo