A favela não pode esperar

Comunidades de SP e Rio sentem a pressão aumentar com o coronavírus batendo à porta

Talyta Vespa e Luisa Picanço Do UOL, em São Paulo, e colaboração para o UOL, no Rio Imagem cedida ao UOL

A ficha caiu nas comunidades de São Paulo e Rio, e as ruas estão vazias. Mas engana-se quem pensa que o silêncio é fruto da paz. Espíritos estão inquietos, seja na Maré, em Heliópolis ou no Alemão.

O medo é da doença - confinados em cômodos pequenos, os moradores de vilas e favelas aguardam o que já corre na boca miúda em corredores de hospitais e governos Brasil afora: quando o coronavírus bater na camada mais pobre da população, "vai ser um massacre".

As saídas, como de costume no Brasil pobre, são criativas. A laje virou terraça, e dali se observa o pouco movimento no Jardim Canhema, em Diadema. Bares vendem cachaça pela grade em Embu das Artes, também no entorno de São Paulo.

Até mesmo o delivery no Canhema ganhou versão renovada: cerveja em cima do muro, dinheiro no chão, para evitar contato entre os moradores.

O problema é o preço, inflado pela alta procura. O capitalismo não está de quarentena em Embu das Artes (SP).

À procura de álcool 70 para limpar o umbigo do filho que vai nascer, o empreendedor social e psicólogo Emerson Martins Ferreira, 31, acompanha o ágio.

"Alguns dias atrás, eu vi que o frasco de 100 ml custava R$ 4,90. Ele pagou R$ 6,80 e me vendeu por R$ 10. Todo mundo tá tentando lucrar em cima do desespero alheio. Faz parte."

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Vendendo almoço para pagar o jantar

Pesa no silêncio das comunidades a preocupação com dinheiro. Seja motorista de aplicativo ou cabeleireiro, o pessoal se pergunta como ganhar sem trabalhar.

Daí a faísca que chispou ao saber que o presidente Jair Bolsonaro queria permitir que contratos de trabalho fossem suspensos, bem como os vencimentos garantidos por estes documentos.

Emerson "Macarrão", líder comunitário de Heliópolis, afirma que no domingo, ao espalhar da notícias, a maior favela de São Paulo "veio a baixo".

As pessoas, ele conta, sentiram ódio. "Todo mundo me procurava e dizia: 'Porra, eu trabalhei a vida toda e agora não vou receber porque meu patrão precisa de ajuda? É isso?'".

Em seguida emendavam: "Macarrão, se isso acontecer mesmo, a gente vai saquear tudo".

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No Rio, cidadania a duras penas

"Qual o nosso receio? Colocar o Exército nas passarelas, impedindo as pessoas de irem e virem. O que a gente precisa é de uma ação coletiva com as secretarias para atuar conosco, ouvir as comunidades." coloca a líder comunitária do complexo da Maré Cláudia Rose.

De acordo com o último censo do IBGE, um em cada cinco dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro é morador de favelas. Na Maré, a estimativa para 2020 é de 141 mil moradores, segundo a prefeitura.

A preocupação, ao tempo que a reportagem do UOL consultava a situação, era a de informar os habitantes da área, imensa.

A comunidade reúne um conjunto de 16 favelas. O arsenal de um grupo de comunicadores local são carro de som e gogó.

O receio é de que o vírus se espalhe antes do que a notícia de prevenir-se.

"Muita gente não tem energia em casa, muita gente não sabe ler", explica Gizele Martins, moradora e uma das comunicadoras responsáveis pelo movimento.

O complexo do Alemão, maciço de comunidades que reúne cerca de 70 mil pessoas, já tinha problemas suficientes antes, com falta de saneamento e segurança, quem dirá agora com a ameaça do coronavírus.

"Tem casas que têm um só cômodo com cinco pessoas. Hoje estamos apostando na difusão de informação para diminuir os danos", conta Amanda Dantas, médica na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Manguinhos.

O sufoco do confinamento, indicado para pandemias esta da covid-19, ganhou um súbito intervalo no Alemão. Foi quando o presidente Jair Bolsonaro minimizou o vírus na TV, segundo moradores ouvidos pelo UOL.

Foi hora de o comércio abrir as portas e a bola rolar no futebol de rua.

Amanda procura manobrar o problema, enorme, em um espaço apertado.

"Em casas com lajes, é recomendado dar preferência a ambientes mais arejados."

A solidariedade, que segundo a médica já é comum entre os moradores, funciona também contra o coronavírus. "Quem nunca colocou uma mangueira para o vizinho sem água?"

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