Coronavírus mudará o mundo?

Pandemia coloca em xeque sistema mundial e modelos de política e economia no século 21

Jamil Chade Colaboração para o UOL em Genebra (Suíça) National Institutes of Health / AFP

Na fábrica da Fiat Chrysler na Sérvia, a montadora anunciou ainda no final de fevereiro que seu modelo Fiat 500L teria sua produção suspensa. O motivo: a falta de peças e componentes vindos da China diante da quarentena estabelecida pelo governo de Pequim para frear o coronavírus.

No mercado americano, a preocupação era outra. 90% dos antibióticos, vitaminas e tantos outros produtos são hoje fornecidos por fábricas instaladas na China. A última vez que uma empresa americana produziu em solo americano um pacote de penicilina foi há mais de 15 anos. Uma paralisia nesse fornecimento, portanto, poderia ter um impacto profundo.

O cenário é também registrado nos setores de móveis, brinquedos, celulares e tantos outros. Responsável por mais de um quarto da produção industrial do planeta, a "fábrica do mundo" parou em meados de janeiro por conta do coronavírus. Hoje, a China representa 19% do PIB global e 13% de todo o fluxo de comércio.

Por si só, o evento na China seria suficiente para jogar dezenas de economias em uma nova recessão. Apenas na África, 21 economias são praticamente dependentes de exportações de matérias-primas para o mercado chinês, hoje paralisado.

Além do desastre econômico em si, para muitos na ONU (Organização das Nações Unidas), há um obstáculo expressivo para uma reação global coordenada: a pandemia chegou em um momento em que as relações internacionais estão em seu ponto mais frágil em mais de 70 anos.

As últimas reuniões do G-20, grupo que reúne as maiores economias do mundo, têm sido esvaziadas, enquanto entidades internacionais têm sofrido duros golpes por parte de governos "soberanistas".

Nos últimos meses, a OMC (Organização Mundial do Comércio) teve seu tribunal sucateado e pressões protecionistas têm determinado políticas externas.

A confiança entre os principais líderes internacionais está, desde 2017, contaminada por ataques públicos e frequentes ameaças. "Isso não ajuda a criar um sentimento de cumplicidade quando a ameaça é global", comentou uma experiente embaixadora latino-americana, consultada pela reportagem.

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À beira da recessão global

A situação se agrava com o freio agora também na Europa e a proliferação do vírus para mais de 120 países. Para analistas do mercado e representantes internacionais, a falta de uma resposta global e o recente anúncio de presidente norte-americano Donald Trump sobre o corte de viagens para 26 países europeus puxam o mundo mais para perto de uma recessão global.

Algumas estimativas apontam para um golpe que poderia chegar a US$ 2 trilhões para a economia mundial, no que seria a terceira megacrise do século 21 — depois dos ataques terroristas de 2001 e a quebra do banco Lehman Brothers, em 2008, ambos os eventos com os Estados Unidos como epicentro.

Uma resposta, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), terá de ser global e solidária. "Estamos todos juntos nessa", disse na quarta-feira o diretor-geral da agência, Tedros Ghebreyesu.

Desta vez, porém, se o coronavírus tem uma taxa de letalidade relativamente baixa, o que a pandemia revelou é a alta taxa de vulnerabilidade do sistema internacional. Para especialistas, a doença chega em um momento em que o mundo não está preparado, nem politicamente e nem economicamente.

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Mundo está endividado

Em termos econômicos, especialistas alertam que uma resposta terá de vir dos Estados, injetando enormes recursos e saindo ao resgate de seus cidadãos.

Mas, segundo Richard Kozul-Wright, diretor da divisão de Globalização da Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento, o mundo não aproveitou a crise de 2008 para fortalecer seu sistema. E, agora, poderá pagar um preço elevado.

Hoje, a dívida do planeta à de US$ 253 trilhões, 322% do PIB mundial. Não há, portanto, uma ampla margem de manobra para que governos anunciem novos pacotes de resgate.

"Ninguém viu isto chegar — mas a história mais importante é uma década de dívidas, ilusões e deriva política", disse Kozul-Wright.

Segundo ele, a crise financeira asiática do final dos anos 90 oferece alguns paralelos com a situação atual. Mas a grande diferença é que, naquele momento, a China não tinha o peso que representa hoje.

"Os níveis da dívida pública e privada em muitos países em desenvolvimento já estão elevados, e em vários casos, agudos, de angústia", afirma.

Para Kozul-Wright, apenas uma resposta coordenada e internacional poderia evitar um "derretimento" da economia mundial.

Em 2008, o colapso do Lehman Brothers não repetiu o cenário da Grande Depressão de 1929 diante de uma liderança internacional que, usando o G-20, estabeleceu uma estratégia de respostas coordenadas. Funcionou.

Torsten Silz / AFP Torsten Silz / AFP

Trump aponta o dedo à Europa

Para diplomatas consultados pela reportagem, a nova crise pega o mundo numa situação radicalmente diferente e com o sistema multilateral de organizações, em frangalhos.

Atitudes tomadas por Donald Trump nos últimos dias confirmam esse temor da falta de uma resposta global. Num primeiro momento, o presidente americano tentou classificar a crise como uma estratégia de seus adversários políticos.

Mais recentemente, ao anunciar restrições de viagem, o chefe da Casa Branca aproveitou para criticar a Europa por ter "fracassado" em lidar com o vírus. O tom gerou um amplo mal-estar no velho continente e pegou alguns de surpresa diante do termo usado por Trump para caracterizar o vírus de "estrangeiro".

Horas depois do anúncio de Trump, a União Europeia declarou sua oposição às restrições dos americanos, alertando que tais medidas foram adotadas "de forma unilateral e sem consultas prévias".

A crise estava instaurada, refletindo em um desabamento nas bolsas de valores pela Europa. Na quinta-feira, os anúncios de Trump levaram a bolsa de Londres a ter seu pior dia em 33 anos. Numa só decisão sobre as conexões áreas, a Casa Branca atingiu 550 voos por dia e mais de 120 mil pessoas.

Na Europa, 190 milhões de pessoa passaram a viver sob algum tipo de controle social, enquanto o FED (Federal Reserve, o Banco Central dos EUA) anunciou que estava pronto a colocar "trilhões" em sua economia.

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Xenofobia permanece nos discursos

O governo americano tampouco retirou suas sanções e tarifas extras adotadas contra países que, já em situação vulnerável, terão de lidar agora com o surto. Um deles, o Irã, foi obrigado a liberar 70 mil prisioneiros diante da crise sanitária, pedir empréstimos do FMI e, em recessão, vive um dos momentos mais complicados desde a Revolução de 1979.

Na Europa, partidos de extrema-direita se apressaram em usar a crise para declarar que a circulação do vírus era a prova de que a globalização precisava ser freada, que empresas não devem produzir em economias emergentes e que fronteiras devem ser restabelecidas, principalmente contra estrangeiros.

Na Itália, Matteo Salvini, ex-ministro do Interior, insinuou que o vírus poderia ter entrado em um dos barcos de imigrantes, cruzando o Mediterrâneo, e que manter a entrada dessas pessoas era "irresponsável".

No momento de sua declaração, os casos italianos tinham sido registrados no norte do país, distante dos portos de chegada dos estrangeiros. Já na África, o único local com caso registrado naquele momento era o Egito.

Na Espanha e na Alemanha, grupos de extrema-direita também passaram a pressionar os governos a suspender a livre circulação de pessoas no espaço europeu, conhecido como Acordo de Schengen.

Num mundo com um forte sentimento anticiência, nacionalista e xenófobo, o desafio dos especialistas ganha uma nova dimensão. Na OMS, porém, o alerta é de que a resposta precisa ser científica, coordenada e proporcional.

Algo que coloca, no fundo, uma contradição ao sistema político, com líderes autoritários apostando no fim de blocos e no reforço de fronteiras.

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