Corrida pela vida

AM: Quando acaba o oxigênio e o desespero se instaura, o que pensam aqueles que decidem quem vive e quem morre

Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, em Manaus Carlos Madeiro/UOL

Era quase meia-noite da quarta-feira (13) quando o médico de uma emergência de Manaus alertou com temor para o que em breve se confirmaria: o oxigênio estava prestes a acabar e uma longa madrugada de agonia iria começar.

As conversas que ele teve com a equipe aconteceram de modo reservado para tentar não desesperar ainda mais os pacientes. Àquela altura, mesmo eles já sabiam do colapso na saúde e percebiam que as coisas não iam bem.

O cenário de falta se oxigênio atingiu quase que simultaneamente hospitais de Manaus, o que tornou o fim de noite de quarta e início de quinta de um desespero sem precedentes na carreira de cada um.

O UOL colheu relatos de profissionais que estavam em plantões naquele dia. Nenhum dos profissionais ou hospital será identificado em respeito eles e às vítimas.

Escolha pela vida

EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO

Na busca frenética por informações, médicos e gestores trocavam mensagens. Não havia previsão para quando o oxigênio chegaria.

O dilema estava posto: dividir os cilindros individuais de reserva com mais pacientes, e torcer que novos chegassem a tempo ou priorizar alguns e deixar outros de lado com intervenções diferentes?

Eu tinha oxigênio para dez pacientes, mas mais de 30 pessoas precisavam dele. Percebi que não podia dividir com todos. Essa escolha é mais do que que 'difícil'. Imagine você olhar para alguém e decidir tirar-lhe o oxigênio, deixar que talvez morra para tentar salvar outra. Nada é mais difícil que isso.

Começam as mortes

EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO

As horas passavam lentamente, e nada de chegar a entrega de mais cilindros de oxigênio. Mortes começaram a ocorrer em todos os lugares.

Na ausência de perspectivas, os médicos chegaram a usar morfina para aliviar a angústia de pacientes à beira da morte.

Em outro hospital, um médico encontrou um clima de uma tragédia ainda mais próxima: um colega de equipe que estava internado acabara de morrer. pela falta de oxigênio.

Quando as mortes começaram a ocorrer, e passaram a se repetir rapidamente; os pacientes viam tudo e se desesperavam.

Cheguei um pouco depois do oxigênio ter sido entregue. Vi todos tristes, achava que estavam abatidos pelo médico e descobri que dois trabalhadores do local morreram também naquela noite.

SANDRO PEREIRA/ESTADÃO CONTEÚDO SANDRO PEREIRA/ESTADÃO CONTEÚDO
SANDRO PEREIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

No hospital, ninguém imaginava que fosse faltar oxigênio

Uma técnica de enfermagem que estava de plantão naquela fatídica noite relata que os profissionais do hospital já tinham notado que havia pouco oxigênio.

Assim, começaram um "racionamento" para garantir atendimento a todos.

Naquela madrugada, a regra era a superlotação. Uma das enfermeiras precisou tentar reanimar um paciente no chão por falta de um espaço propício.

Enquanto [o coração de um] parava, o médico atendia outro em estado grave ali perto. Todos os casos se agravaram com a situação, e muitos estavam em condições graves demais.

Diante da escassez do insumo, uma médica precisou reduzir a oferta de oxigênio aos pacientes. Só assim conseguiu passar a noite sem esgotar o estoque de oxigênio.

Nós diminuímos a oferta para todos até dar 92% [de saturação] e economizarmos. Quando os cilindros iam acabar, o oxigênio chegou. Mas já estávamos nos organizando para ambuzar [nome dado à ventilação manual].

EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO EDMAR BARROS/ESTADÃO CONTEÚDO

A gente regulava a quantidade de oxigênio, mas, no fundo, ninguém acreditava que deixariam chegar àquele ponto. Não há como definir a apreensão que sentimos ao perceber que chegava a madrugada, que uma UTI estava cheia, e que o oxigênio acabaria sem previsão de retorno. Teve gente chorando.

Técnica de enfermagem

Falaram que ambuzamos [como se chama o processo de ventilação manual]; sim, nós fizemos isso, mas cansa. Não tínhamos gente o suficiente para revezar, e o efeito prático não é o mesmo do oxigênio. Não tínhamos mais o que fazer, tinha hora que era assistir e torcer para o paciente suportar um pouco mais.

Técnica de enfermagem

Reflexões e revolta

SANDRO PEREIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

Diante da tragédia, a angústia se instaura. Após aquela noite, um profissional conta que deixou o plantão certo de que não voltaria mais.

De cabeça fria, mudou de ideia.

Um outro médico não esconde a indignação diante do que testemunhou naquela madrugada. Em sua opinião, foi "desumana" a responsabilidade que o poder público e a sociedade jogaram sobre a classe médica.

Diziam muito ao longo da pandemia que se os comércios fossem fechados o Brasil teria de escolher entre morrer de fome ou pelo vírus. Agora, eles estão morrendo e passaram para nós, da área da saúde, essa escolha. Na prática é isso que ocorre quando se precisa de oxigênio ou de uma ventilação e não tem para todos: nós é que temos de escolher quem vai viver e ainda somos desvalorizados.

Não fizemos medicina para isso.

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