O novo normal no mundo

Colunistas do UOL no Brasil, na Europa e nos EUA descrevem o dia a dia na feira, nas férias e durante eleições

Diogo Schelp, Jamil Chade e Kennedy Alencar Colaboração para o UOL em São Paulo, Genebra (Suíça) e Milwaukee (EUA) Reinaldo Canato/UOL

Enfrentar os perdigotos na feira livre em São Paulo. Encontrar uma praia catalã semideserta, quando deveria estar lotada, ou ainda uma convenção histórica de eleições sem militância. A vida após a pandemia de covid-19 mudou o jeito de viver, transitar, e mesmo quando as coisas parecem se encaminhar para o que se conhecia como rotina, os fatos nos mostram que ainda há um longo caminho.

No último mês, a reportagem do UOL, espalhada em três pontos diferentes do globo, se pôs a observar as situações que se colocam. Acompanhamos nosso colunista Diogo Schelp numa volta por São Paulo, onde, apesar da gravidade da pandemia, bares estão abertos e cheios de clientes sem máscaras, apoiados em uma frágil sensação de proteção contra o coronavírus.

Na Europa, Jamil Chade, que normalmente reporta o que de principal ocorre nos corredores da OMS (Organização Mundial da Saúde), na Suíça, nos permitiu acompanhar dias de férias na Espanha — país que encara o vai-vém da abertura pós-covid e, como tradicional destino de férias de verão, nesta temporada se agarra ao turismo local como a um sopro de vida.

Kennedy Alencar, colunista que acompanha as eleições nos Estados Unidos (EUA) neste ano, traz na história de um casal que se conheceu por aplicativo, em plena pandemia, a imagem de um país tendo que lidar com uma nova forma de escolher um presidente: sem comícios cheios, mas com bares e restaurantes tentando voltar à normalidade.

Independentemente do lugar, é evidente que a situação afeta todos de forma parecida. A preocupação com o contágio, presente a cada movimento, a cada interação com uma pessoa desconhecida, se soma ao fantasma do desemprego e da depressão econômica. E também, às esperanças de que isso tudo logo passe.

Reinaldo Canato/UOL Reinaldo Canato/UOL

Perdigotos na feira

Foi minha primeira vez em um bar e em uma feira de rua em cinco meses. E a um deles não volto tão cedo.

No dia 8 de agosto, o sábado em que o Brasil atingiu a triste marca de 100.000 mortos por covid-19, minha namorada e eu saímos da bolha e fomos à feira e, em seguida, a um bar.

Consideradas essenciais, as feiras livres na cidade de São Paulo não tiveram suas atividades suspensas. Já os bares e os restaurantes tiveram autorização para voltar a atender o público presencialmente no início de julho, até 17h. Desde o dia 6 de agosto, podem receber clientes até 22h.

Na feira encaramos o que, em tempos de pandemia, podemos chamar de uma legítima aglomeração de pessoas. Mas não era nada comparável à multidão que, em outros tempos, lotaria aquelas três quadras em uma manhã de sol.

"Os fregueses estão voltando aos sábados, mas as feiras de dias de semana continuam vazias", disse o vendedor de alcachofra.

Devidamente paramentados com máscara e potinho de gel no bolso, era possível sentir-se bastante seguro naquele ambiente. Estávamos, afinal, em um lugar aberto e raríssimos eram os clientes sem máscara.

Apenas dois feirantes anunciavam seus preços aos gritos, com máscaras arriadas no queixo ou no pescoço, lançando seus perdigotos para além de suas frutas em direção aos frequentadores. O efeito era o inverso: em vez de se aproximar para conferir a qualidade dos produtos, a vontade era de ficar longe.

Na barraca de peixes e na de carne, havia um número maior de vendedores com máscaras em locais onde não têm função alguma: abaixo do nariz, no queixo, pendurada na orelha. Do outro lado da rua, um feirante sem máscara oferecia abacaxi cortado para quem quisesse experimentar — e, de fato, havia quem aceitasse. A degustação é prática vetada na pandemia.

O vendedor de limões, questionado sobre qual variedade, segundo um popular vídeo que circula no WhatsApp, é tiro e queda contra covid-19 se consumida com cachaça, explicou que as medidas preventivas (máscaras, etc) e mesmo os remédios milagrosos (limão galego, etc) são só para inglês ver. O novo coronavírus, segundo ele, é uma praga bíblica; morre quem tem que morrer, vive quem tem que viver. Deus decide. Não há o que fazer.

Com uma sacola de limão-taiti pendurada no punho e ainda com essa mensagem fatalista ressoando na cabeça, não resistimos ao caldo de cana fresquinho e gelado que estava sendo servido alguns passos adiante, aparentemente de acordo com os devidos protocolos sanitários.

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Porsches e paranoia

Deixamos as compras em casa e seguimos para um bar. Optamos por um no bairro do Itaim Bibi, fora do nosso roteiro habitual de lazer, com carros de luxo estacionados em frente e fila na entrada.

A hostess apontou o termômetro em forma de pistola para nossa testa e disparou: 35,5 graus, 36 graus. Não pude deixar de lembrar que mesmo pessoas assintomáticas podem transmitir o novo coronavírus.

Depois ela nos fez entrar numa cabine de desinfecção que, segundo o fabricante, borrifa clorexidina, uma solução que supostamente mata microorganismos em roupas, sapatos e pele. O Conselho Federal de Química, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Conselho Federal de Medicina alertam que não há comprovação científica de que o aparelho é eficaz contra a covid-19.

Assim como o Porsche estacionado na porta, o importante ali era a aparência. Se estávamos seguros contra o novo coronavírus, eram outros quinhentos.

O propósito de um bar é beber, comer e conversar, o que exige tirar a máscara. Portanto, como não poderia deixar de ser, todos os clientes do local estavam com nariz e boca descobertos. Uma família numerosa confraternizava a menos de um metro de nós.

Em meio aos clientes desprotegidos e perigosamente próximos, quem passava maior segurança pelos cuidados que estavam tomando eram os garçons, os maîtres e os funcionários que preparavam as bebidas atrás do balcão. Todos de máscara e face shield (a placa de plástico transparente que tampa o rosto todo e é presa à cabeça) e muito cuidadosos com a higiene das mesas e dos utensílios.

Compreende-se o desespero de proprietários, que não viam a hora de reabrir seus bares e restaurantes para evitar a falência, e também de seus funcionários, temerosos com a possibilidade de demissão. Do ponto de vista do consumidor, porém, até que ponto a experiência de se sentar à mesa de um bar é preservada?

Ir a um bar para celebrar a vida, confraternizar com os amigos e apreciar bons petiscos e drinques faz muito menos sentido quando se olha com desconfiança para a mesa ao lado ou quando se tem a impressão que o líquido na tulipa trazida pelos garçons, equipados como se recém-saídos de um laboratório de química, pode ser tudo menos chope.

O risco real de contágio ali podia até não ser dos mais altos. Mas a parafernália toda, os protocolos e a impossibilidade de interação despreocupada entre ocupantes de mesas diferentes prejudicavam a experiência como um todo.

Bar é um lugar para relaxar. Os cuidados relacionados à pandemia, porém, geram mais tensão do que prazer.

De minha parte, está decidido. Ao bar não volto tão cedo. À feira, sim.

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Bodas sem festa

Núria aguardava havia anos pelo mês de agosto de 2020. Seria uma grande festa para comemorar seus 50 anos e 20 de casamento, em plenas férias de verão na Europa. Com os meses de confinamento vivido por tantas pessoas, a festa ainda seria o grande reencontro de amigos para celebrar a vida.

O evento ocorreria nas proximidades de Valladolid, na Espanha, e por meses os preparativos estavam sendo realizados, inclusive com um grupo de WhatsApp extremamente ativo entre amigos. Uma casa rural havia sido alugada, assim como música ao vivo e vinho. Muito vinho.

Faltando duas semanas para o grande evento, o tom do grupo começou a mudar. Mensagens se proliferavam com notícias de que a pandemia voltava a ganhar força no país. Os recados mais diretos lamentavam e indicavam que já não iriam mais à festa. Outros questionavam se era de fato adequado.

A retomada dos casos da covid-19 em países onde havia uma sensação de que o pior já tinha sido superado reabriu medos e transformou as férias num período de incertezas.

No lugar de um período de recuperação, as férias de verão na Europa se transformaram em um tempo de medo, do presente e do futuro. Entre o exército de desempregados, a Espanha viu um aumento de 750 mil pessoas, além de milhares que simplesmente deixaram o mercado de trabalho.

A grande esperança dos governos era de que, com o vírus sob controle, os turistas retornariam durante o pico do verão, as fronteiras reabririam e o comércio receberia "oxigênio" para sobreviver. Mas a história não tem sido exatamente assim. Ao final de agosto, Espanha, França, Alemanha e Itália voltavam a registrar os maiores números de novos contaminados desde abril.

Com a volta dos casos, o governo britânico declarou que quem for para a Espanha terá, na volta, de permanecer em isolamento de 14 dias. Resultado: os turistas britânicos desapareceram. E junto com eles se foi a confiança do resto da Europa, que proliferou medidas de restrições.

O aeroporto e o avião, locais que já passaram a ser sinônimos de preocupação por conta das transformações impostas pelo terrorismo, agora ganharam mais uma camada de tensão. Ninguém se fala dentro das aeronaves e qualquer gesto mais brusco é encarado com desconfiança. Ao anunciar as medidas de segurança, aeromoças alertam sobre a covid-19.

Com todos com as emoções à flor da pele, bastou um garoto tocar numa mala errada para que uma discussão começasse entre famílias. O motivo: aquele toque poderia ter repassado o vírus para a alça da mala.

Parentes e amigos são obrigados a ficar do lado de fora do aeroporto. E o reencontro é sem abraços. Como matar as saudades?

Os números confirmam esse vazio. De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas da Espanha, apenas 204 mil estrangeiros entraram no país em junho, o primeiro mês depois do confinamento. A queda, em comparação a junho de 2019 é dramática: 97,5%. Um ano antes, 8,8 milhões de visitantes desembarcaram no país.

Jamil Chade/UOL Jamil Chade/UOL

Quem ri por trás da máscara?

A receita do turismo, maior setor da economia da Espanha, também promete desabar. Só em agosto de 2019, 25 milhões de pessoas deixaram 11 bilhões de euros na economia local. Em todo o ano, a receita foi de 147 bilhões de euros, 12% do PIB espanhol.

Deixando Barcelona e viajando às praias do sul da Catalunha, a ausência de estrangeiros fica ainda mais evidente. Em seus lugares, a população local que tampouco se aventurou em grandes números para o restante do continente.

É o que os europeus estão chamando de "staycation", um jogo de palavras entre "stay" (ficar) e "vacations" (férias).

Em pequenas localidades que aguardam todo o ano pelos turistas estrangeiros, as mesas dos restaurantes passam parte significativa da semana às moscas. No povoado de Alcanar, funcionários das lojas de itens de praia admitem que os dias passam "lentamente", entre um calor asfixiante e um caixa sem "oxigênio".

Numa outra praia, o caixa romeno de um supermercado local teme que terá de voltar ao seu país de origem se seu patrão for à falência. "Você é o primeiro a entrar para comprar algo hoje", disse o romeno à reportagem. Já era quase meio dia de um dia de semana.

Pelas praias, o risco de contágio estabeleceu novas regras e fez desaparecer as redes de vôlei, os chuveiros, os vendedores de óculos e os sorveteiros.

Pelo fim da tarde, um tradicional mágico da região se aventurava em fazer seu espetáculo no calçadão. Suas ilusões de óptica pareciam ficar ainda melhores que nos anos anteriores diante da nova distância exigida aos poucos que o observavam.

O que não era ilusão era a dimensão da crise. Em qualquer uma dessas localidades afastadas dos grandes centros, basta entrar em uma pequena loja de alimentos ou bar para ser confrontado pela realidade das manchetes nos jornais locais: "Espanha vive sua mais profunda recessão". Naquele dia, 31 de julho, o governo havia anunciado a queda do PIB em 18%, um recorde.

Ao retornar e terminar as férias, o sentimento é uma mistura de mais incertezas. Ao despachar as malas, ouvi da funcionária do aeroporto: "tenha uma boa viagem". Por trás da máscara, não soube dizer se ela estava sorrindo.

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Romance na pandemia

Como o sol se põe quase às oito da noite no verão de Milwaukee (EUA), William Neuer e Mary Pikarski aproveitaram a temperatura agradável da última terça-feira para tomar um vinho branco e dividir uma burrata com azeite e mostarda verde no Balzac, restaurante nas redondezas da badalada rua Brady.

William e Mary resistem um pouco a falar de política com um jornalista, mas acabam aceitando com a condição de não tirar fotos. Demonstram interesse em conversar com um brasileiro que veio ao estado de Wisconsin cobrir a esvaziada Convenção Nacional Democrata.

Os dois se conheceram por aplicativo e estão no segundo encontro.

Curiosos a respeito do Brasil, perguntam como vai o presidente Jair Bolsonaro. Respondo que é pior do que Donald Trump, mas eles não acreditam. "Não é possível", diz Mary.

William e Mary não votaram em Trump em 2016 e pretendem apoiar o democrata Joe Biden em 3 de novembro. "É impossível conversar sobre política com algumas pessoas sem discutir ou estragar o dia. Tenho amigos que acreditam em tudo o que Trump fala e que acham que a imprensa mente muito", diz Mary.

Ela não sabe se Biden será eleito. Avalia que ainda há tempo para Trump virar e encontrar uma saída que atraia as pessoas. "Tem gente que não fala que vai votar no Trump", diz, repetindo a teoria do atual presidente de que uma "maioria silenciosa" o apoiará em 3 de novembro.
William brinca: "Ele vai comprar a vacina russa do amigo dele [o presidente Vladimir Putin] para aplicar no dia eleição".

Segundo Mary, Wisconsin é um estado que votava nos democratas desde o governo de Ronald Reagan no fim dos anos 80 e surpreendeu ao dar vitória a Trump em 2016.

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Um brasileiro nos EUA

Milwaukee se encontra na fase 4.1 de reabertura da economia. Isso é adiantado em relação à média americana. Há bares e restaurantes que atendem só nas calçadas ou sob encomenda para levar para casa ou comer numa praça. A maioria já recebe clientes nos ambientes internos.
Na segunda-feira passada, o restaurante "Mo's, Um Lugar para Comer Bifes", que fica no centro da cidade, estava aberto para o jantar.

O gerente Jamie lamentava que a Convenção Nacional Democrata havia virado um encontro fantasma. "Era para essas ruas estarem cheias, com movimento, mas estão todas vazias", disse, com ar de decepção.

Ele não revela em que vai votar. Faz crítica a Trump: "Agiu mal na pandemia". Mesmo assim, acredita que o presidente republicano vai ganhar de Biden. "Será uma eleição apertada. Isso é bom para o Trump", prevê.

Convém levar em conta o alerta de Jamie, que também pergunta sobre Bolsonaro já falando que ouviu que as coisas não andam bem no Brasil. O presidente brasileiro obteve o reconhecimento internacional negativo que merece.

Quando me apresento a um americano, a primeira interação quase sempre começa pela tragédia da pandemia no Brasil e o papel central de Bolsonaro para agravá-la, como faz Trump nos EUA. Depois, querem saber quando cheguei, a fim de avaliar o risco de trombarem com um portador do coronavírus.

Alguns imaginam que eu tenha dado um jeito de furar a regra para entrar nos EUA, mais ou menos como fez o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub para pegar uma boquinha no Banco Mundial em Washington. Mas conto que estou desde janeiro nos EUA, o que costuma deixá-los mais tranquilos.

Na despedida de William e Mary, eles me perguntaram como andam os aeroportos. Os dois planejavam viajar, mas desistiram de ir à Califórnia, onde a pandemia voltou a se agravar. Pensam numa alternativa.

Há previsão de especialistas e até de autoridades sanitárias de que os americanos terão meses difíceis adiante com a chegada da temporada de doenças respiratórias no tempo frio. A volta das crianças às escolas também é um fator preocupante.

Conto que os aeroportos estão lotados. Nos terminais em Washington, Charlotte, onde fiz conexão na Carolina do Norte, e aqui em Milwaukee, há muita gente sem máscara aguardando nos portões de entrada. Houve aglomerações nesses locais. Nos aviões, estava todo mundo mascarado e calado.

Digo que há algum risco de viajar de avião, mas não muito diferente de tomar um vinho no Balzac. O negócio é se cuidar, usando máscara, lavando as mãos com frequência e mantendo o distanciamento social, como recomenda a ciência. Agradeço e paro de segurar vela. Observo os dois conversando com olhares docemente gentis.

Parece que o romance de pandemia vai dar certo. Torço para que tenham um terceiro encontro.

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