Rainha do Caos

Jeanine Añez, presidente interina da Bolívia, se apoia no conservadorismo para conduzir país em ebulição

Diego Toledo Colaboração para o UOL, em São Paulo Manuel Claure/Reuters

Pouco mais de 30 dias atrás, seria impensável imaginar a então desconhecida senadora Jeanine Áñez como presidente da Bolívia. Mas a crise política boliviana depois das eleições de 20 de outubro resultou em cenas de violência, na renúncia sob pressão do líder boliviano Evo Morales e na inesperada ascensão ao poder de Áñez.

No último dia 12, em uma cerimônia rápida e discreta na Assembleia Legislativa boliviana, a senadora de 52 anos se autoproclamou presidente interina. Morales havia renunciado ao poder dois dias antes, em meio a protestos contra indícios de fraude nas eleições.

Em um de seus primeiros gestos como presidente interina, Áñez se dirigiu à sede do governo com um livro nas mãos e proclamou: "A Bíblia está de volta ao palácio". Católica, Ánez teve em sua chegada ao poder o apoio de setores conservadores da Igreja e de lideranças evangélicas.

"Ela emerge como uma espécie de elo no jogo político que se seguiu à renúncia de Morales para que os setores mais radicais à direita voltem ao poder", avalia o pesquisador de América Latina e historiador Fabio Luis Barbosa dos Santos, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Na última quarta-feira, a presidente interina enviou à Assembleia Nacional um projeto de lei que declara a nulidade das eleições de 20 de outubro e convoca a escolha de novos membros para o Tribunal Supremo Eleitoral dentro de um prazo de 15 dias. Assim que formada, a nova composição do tribunal deve estabelecer um cronograma para a realização de novas eleições.

"A função da proposta de novas eleições é recolocar a política no trilho da institucionalidade", afirma Barbosa. "Voltar à normalidade, mas uma normalidade que provavelmente será regida por um novo padrão de gestão das tensões sociais."

Para entrar em vigor, a proposta de Áñez precisa do apoio da Assembleia, onde o MAS - partido de Morales - possui maioria. Desde a revelação dos indícios de fraude na contestada reeleição do líder boliviano em 20 de outubro, a Bolívia tem sido palco de violentos protestos, que já provocaram pelo menos 32 mortes.

As manifestações também incluíram bloqueios de simpatizantes de Morales nas proximidades de La Paz para impedir a entrada de alimentos e combustíveis na capital. Nos últimos dias, em uma tentativa de acalmar os ânimos, a presidente interina acenou para o diálogo com grupos da base de apoio a Morales.

Bruno Santos/Folhapress

Alçada pelo vácuo

A queda de Morales, que partiu em busca de asilo político no México, foi acompanhada pela renúncia do vice-presidente e dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado boliviano. Com a ausência de todos os titulares de cargos da linha sucessória prevista pela Constituição, estabeleceu-se um vácuo de poder.

Na condição de segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez assumiu a presidência da Casa e, em seguida, do país, com o apoio das Forças Armadas - que fizeram pressão pela renúncia de Morales - e de setores mais radicais da oposição.

Apesar de dúvidas sobre a legitimidade de sua posse, Áñez acabou reconhecida como presidente interina por governos e organismos internacionais, incluindo o Brasil, por outros grupos de oposição a Morales e pelo Tribunal Constitucional boliviano.

Em seu segundo mandato como senadora, Áñez pertence ao partido Movimento Democrata Social, que fazia oposição ao MAS (Movimento ao Socialismo), de Evo Morales. Advogada e ex-apresentadora de televisão, a presidente interina da Bolívia é casada com um político colombiano e mãe de dois filhos.

Marco Bello/Reuters

"Bolsonaro boliviano"

Nas contestadas eleições de 20 de outubro, o candidato mais votado depois de Evo Morales foi o ex-presidente Carlos Mesa, um político moderado, de centro-esquerda, que obteve 36% dos votos.

Em todo o processo que levou à queda do líder boliviano, um dos opositores mais presentes nas manifestações e na convocação aos protestos era o presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz de la Sierra, Luis Fernando Camacho, que chegou a ser descrito por veículos da imprensa internacional como "o Bolsonaro boliviano".

O candidato apoiado por Camacho, o pastor evangélico coreano Chi Hyun Chung (o "Dr. Chi"), foi o terceiro, com menos de 8%. Já o candidato apoiado pela agora presidente interina Jeanine Áñez, o empresário Óscar Ortiz, foi apenas o quarto colocado, com pouco mais de 4% dos votos.

Mas, com o acirramento dos protestos, a figura de Mesa como protagonista da oposição foi ofuscada pelas forças mais radicais simbolizadas por Camacho, que liderou as manifestações e cobrou a renúncia de Morales.

Na posse de Áñez, Camacho e Ortiz estavam ao lado da presidente interina, que - ao dizer que a Bíblia estava "de volta ao palácio" - repetiu um bordão que vinha sendo usado pelo "Bolsonaro boliviano".

Aos 40 anos, Camacho representa os empresários de Santa Cruz de la Sierra e é descrito como uma liderança política religiosa e ultraconservadora.

Apelido por seus simpatizantes de "Macho Camacho", é repudiado por movimentos sociais e grupos feministas, que o consideram misógino.

Aizar Raldes/AFP Aizar Raldes/AFP

"Capital brasileira" na Bolívia

A queda de Morales também revigorou uma antiga disputa política na Bolívia entre grupos indígenas do Altiplano e parte da população branca da Meia Lua, região no leste do país que tem a província de Santa Cruz de la Sierra como sua principal expoente.

A maior parte dos produtores de soja brasileiros na Bolívia fica em Santa Cruz e, por conta disso, a região costuma ter muitas afinidades com o que acontece no Brasil.

"É uma região economicamente muito vinculada à economia brasileira e a suas características", afirma o jurista Celso Lafer, que foi ministro das Relações Exteriores do Brasil por duas vezes, nos governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso.

"E Santa Cruz tem lideranças que sempre tiveram um desconforto em relação ao Evo Morales. Isso se espelha nas posições que estão tomando nesta crise", acrescenta Lafer.

Durante os protestos contra Morales, grupos de oposição chegaram a queimar as bandeiras quadriculadas e coloridas da wiphala, que representa os povos andinos.

Jorge Bernal/AFP Jorge Bernal/AFP

Pobreza despencou na era Evo

Em mais de 13 anos de governo, Evo Morales conduziu a Bolívia em um período de significativos avanços econômicos. Entre 2005 e 2018, a pobreza no país caiu de 63% para 35%, o PIB pulou de US$ 9,5 bilhões para US$ 40,6 bilhões e a expectativa de vida dos bolivianos também aumentou.

Em 2006, Morales liderou um plano de nacionalização da exploração dos recursos naturais bolivianos, que levou a uma renegociação dos contratos com empresas estrangeiras - incluindo a Petrobras - que atuavam no setor de petróleo e gás no país. Com a medida, a Bolívia deu um salto na arrecadação de taxas e tributos recebidos por conta dessas atividades.

"O crescimento boliviano foi alicerçado na exportação de commodities: os hidrocarbonetos e a soja, além de alguns outros itens menores", afirma o pesquisador Fabio Luis Barbosa dos Santos. "O governo se beneficiou da alta do preço desses produtos e do aumento da fatia da receita gerada pelos hidrocarbonetos."

Mas, apesar de um crescimento médio anual da economia de cerca de 5% durante o governo de Morales, o déficit das contas públicas bolivianas também cresceu (hoje, gira em torno de 8% do PIB) e as finanças do país permanecem dependentes da venda de produtos básicos para o exterior.

Mesmo assim, o estopim para a crise que levou à queda de Morales não foi econômico, mas político. A revelação de fraudes na eleição de 20 de outubro, confirmadas por observadores da OEA (Organização dos Estados Americanas), provocou a revolta de boa parte da população boliviana.

Luis Cortes/Reuters Luis Cortes/Reuters

Depois da renúncia de Morales, o governo brasileiro foi um dos primeiros países a reconhecer a legitimidade de Jeanine Áñez como presidente interina.

Como principal potência sul-americana, o Brasil tem um papel fundamental para a economia boliviana, principalmente por conta das exportações de gás e soja.

Por isso, mesmo com a aparente afinidade política entre o presidente Jair Bolsonaro e a oposição a Evo Morales, a tendência é de que, seja qual for o desfecho da crise política na Bolívia, as novas lideranças no país se esforcem para manter um bom relacionamento com o governo brasileiro.

"Os interesses permaneceram e certamente vão permanecer", avalia o pesquisador Fabio Luis Barbosa dos Santos. "Independentemente de quem ganhar novas eleições na Bolívia, eles vão buscar a bênção do Brasil. Pode ser com mais fervor, se for um Camacho, ou mais constrito, se for alguém como o Mesa. E os negócios continuarão."

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