Lama, tristeza e frustração

Do odor à destruição dos corpos, bombeiros relatam desafios enfrentados nos resgates em Brumadinho (MG)

Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, em Maceió

É início da manhã de domingo (27 de janeiro), dois dias após o rompimento da barragem da Vale da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG). Os capitães Luiz Augusto de Medeiros Lira e Jorge Luiz Lopes, do Corpo de Bombeiros de Alagoas, chegam e se integram às equipes de resgate, mas enfrentam logo a primeira dificuldade: as buscas haviam sido suspensas por causa da ameaça de ruptura de outra barragem no local.

A ansiedade em iniciar os trabalhos terminou apenas à tarde, quando foram enviados para buscas na área próxima à pousada Nova Estância --que foi totalmente coberta pela lama de rejeitos.

A partir dali, os militares com 15 anos de corporação e especialistas em busca e resgate passaram seis dias intensos, sempre com ao menos 10 horas de trabalho. De volta, eles fizeram exames e farão acompanhamento permanente de saúde para verificar possíveis sequelas deixada após os dias enfiados na lama.

O UOL conversou com os dois capitães na última terça (5), poucos dias após o retorno de ambos a Alagoas. Eles deram detalhes de como foi o período de buscas na cidade mineira, a aflição de não encontrar sobreviventes e o alívio por poder oferecer pelo menos partes dos corpos às famílias.

Os dois foram escolhidos para participar da missão por conta da experiência em salvamentos especiais de grande porte. Ambos integram a equipe de Águias da corporação. Lopes tem curso de resgate para áreas de deslizamentos, e Medeiros Lira é especialista em resgate em estruturas colapsadas.

Ao menos 165 pessoas morreram na tragédia de Brumadinho.

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Capitão explica busca por vítimas em área de pousada em Brumadinho

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Da lama ao mau cheiro

Mesmo vendo antes pela TV e pelos sites as imagens, a magnitude da tragédia impressionou os militares ao chegarem. As dificuldades de atuação também eram grandes e foram percebidas logo ao pisar no terreno. 

"Impressionou, sim, o tamanho da tragédia. E era muito lamacento, material fluidificado. Tinha momentos em que a gente conseguia pisar e se apoiar, mas poderia dar um passo e ser frágil e afundar em um local. Usamos madeiras como cajados, andávamos de quatro apoios, rastejando... mas era muito difícil", conta Jorge Luiz Lopes.

Ao passar dos dias, as dificuldades foram crescendo também por causa do mau odor na região.

"Nos primeiros dias não tanta tinha dificuldade quanto ao odor, mas com o passar dos dias o local foi ganhando o odor de putrefação. Além dos corpos humanos, havia diversos animais mortos. Achávamos galinha, cavalo, peixes, cachorro...", lembra o bombeiro.

"No terceiro dia em diante, passou a incomodar bastante, ia se criando odor de esgoto, de cadáver. Só que a gente passou a se acostumar. Eram tantas horas nesse terreno que o organismo terminava se adaptando."

Xinhua/Li Ming

Cobranças e ajudas

O capitão Luiz Augusto de Medeiros Lira lembra que nos primeiros dias, havia sempre um grande questionamento de moradores e familiares das vítimas sobre a possibilidade de encontrarem pessoas vivas na região atingida.

"Sempre, o tempo inteiro, principalmente nos primeiros dias, havia uma cobrança especialmente na volta do dia de serviço. Perguntavam se a gente achava que tinha chance de achar vivo. E diziam: 'minha irmã', 'minha prima', 'um amigo' estava lá. Ficava aquela pressão, estavam muito esperançosos. Mas depois do sábado (26), não achou se ninguém mais vivo", conta.

Ao mesmo tempo, vinha também da população local uma ajuda fundamental, sobre a geografia do local e a disposição das construções na região. As informações serviam para orientar os bombeiros na busca pelas vítimas.

Uma dessas orientações veio de um sobrevivente da pousada Nova Estância.

"Marcou muito uma conversa que tive com um dos sobreviventes. Ele trabalhava na pousada e viu a onda de rejeitos se aproximando. Como era pouco depois do almoço, os hóspedes estavam recolhidos. Ele não era de cochilar, ficou mexendo no celular e viu a onda se aproximando", relata o capitão.

"Ele ainda conseguiu avisar aos que estavam próximos e fugiu pegando a rota certa --que era o lugar mais alto. Mas o amigo dele pegou a rota errada, descendo no mesmo sentido na onda, e estava até então desaparecido. Como conhecia a área, ele estava orientando, ajudando com informações para as buscas".

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Corpos despedaçados

Ao iniciar as buscas, os capitães perceberam que a força da lama havia causado, além das mortes, muita destruição nos corpos.

"Muitos corpos estavam fragmentados, não estavam inteiros em sua composição. Achava braço, perna, mão... A pressão do rejeito veio muito forte. Além disso, tinha muita vegetação, concreto, muita estrutura colapsada. Havia corpos inteiros, mas boa parte acabava tendo amputação. A onda de impacto era muito intensa, o corpo ia batendo, ia sendo amputado. Isso dificultou a busca", diz o capitão Medeiros Lira.

Na maioria do tempo, os bombeiros contam que cavavam à procura de corpos ou indícios deles. As buscas, entretanto, nem sempre traziam resultados positivos; e isso era encarado em alguns momentos pelas equipes como uma forma de desânimo.

"Ao chegar, sempre tem aquela ansiedade também de achar alguém vivo, mas sabia que era bem pouco provável. Mas mesmo os corpos, a gente não estava encontrando, e em partes isso estava deixando as equipes um pouco abatidas. Pensava: 'Poxa, mais de 300 corpos ali, e eu não encontro ninguém?' Então a motivação da equipe tinha de ser mantida elevada", diz Lopes.

À noite, o alívio vinha nos telefonemas para casa, a quilômetros de distância. Lira ligava para a mulher. Lopes conversava com a esposa e os dois filhos. "Nunca deixava de falar com eles", ele diz.

Por causa do cenário de destruição, os bombeiros concordam que há chances mínimas de todos os corpos serem encontrados nas operações.

"Achar todos os corpos é algo muito difícil por conta do volume que está sobre eles, mas o pessoal está definido que vai varrer toda área. A Policia Civil que vai ter um trabalho grande para identificar pelo DNA o que não foi possível visualmente. As equipes lá vão varrer toda a área, mas pode ser que fique alguma vitima sem ser localizada", afirma o capitão Lopes.

No nosso primeiro dia, encontramos uma mão. Fiquei mais aliviado porque sabia que alguém poderia dar um enterro a um ente querido, mesmo que seja apenas com um resto mortal. Mas não era sempre que achávamos

Capitão Jorge Luiz Lopes

Gaspar Nóbrega/SOS Mata Atlântica Gaspar Nóbrega/SOS Mata Atlântica
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Ocorrências paralelas

Apesar de os bombeiros terem sido enviados a Brumadinho para buscar corpos das vítimas da barragem da Vale, uma operação dessa proporção sempre tem suas surpresas. Uma delas veio com um morador vizinho à sede improvisada do comando de salvamento.

"A gente pôde observar um caso bem diferente, que aconteceu do lado do posto avançado, onde estavam mais de 200 bombeiros: um incêndio em uma residência.

Eu e Luiz estávamos tirando lama no carro-pipa, e vimos muita fumaça. Imagina 200 bombeiros que veem fumaça? Corremos lá, e o fogo fora causado por um morador em estado depressivo provavelmente pela tragédia. Imagina, ele perdeu lá seus amigos, e decidiu tocar fogo e ficar dentro. A gente salvou ele e apagou", relata Lopes.

O morador, lembra ele, estava "atordoado". "Ele disse: 'me deixem, eu quero morrer; me deixem morrer.' Ou seja, quem sobreviveu também está abalado psicologicamente e é preciso grande atenção."

O resgate na casa em chamas não foi o único que a dupla alagoana viu em Brumadinho.

"Teve um dia em que servidores da Agência Nacional de Mineração, creio, estavam fazendo um trabalho na mata com drone, e o equipamento caiu lá dentro. Eles foram buscar, mas foram atacados por abelhas. Dois deles fugiram, mas um ficou e foi atacado pelo enxame. O cachorro foi quem localizou, já desacordado e em estado grave."

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Aprendizado

De volta a Alagoas, os dois bombeiros guardam as marcas e os aprendizados da grande operação em Brumadinho.

"Um desastre assim é algo muito diferente de um incêndio, de um deslizamento, ou de outra ocorrência rotineira. É como se fossem várias operações ao mesmo tempo, sob uma coordenação maior. Isso é muito mais complexo, existe a probabilidade de acidentes, eram várias aeronaves e tinha de ter um controle do espaço aéreo para não haver colisões. E por incrível que pareça tinha gente usando drone, mesmo sabendo que não podiam", relata o capitão Medeiros Lira.

"Fica um aprendizado muito grande desse intercâmbio com outras corporações. Trocamos experiências e técnicas que bombeiros de outros estados usavam. Isso vai nos ajudar muito. Sem contar que vamos também aperfeiçoar nosso corpo para responder em caso de tragédias desse porte", completa o bombeiro.

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