"A pandemia destruiu tudo"

Com apoio de ONG, moradores LGBTQIA+ da Grande SP amenizam dificuldades

Maria Teresa Cruz (Texto) e Tommaso Protti (Fotos) Colaboração para o UOL, em São Paulo*

Em uma antiga padaria desativada em uma ladeira do Jardim Silvina, periferia de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, fica a Casa Neon Cunha, uma ONG que seus fundadores definem como "centro de cidadania para pessoas LGBTQI+". Lá, estão concentradas as doações que recebem desde o início da pandemia de covid-19.

"A fome é emergencial. Mas a gente também tem esse lugar de afeto, de autoestima. Muita gente chega aqui humilhada, é importante ter esse lugar de carinho", diz Symmy Larrat, 42, presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos (ABGLT) e diretora da Casa Neon Cunha.

Os planos da ONG passaram por mudanças no último ano. "A gente tinha começado a fazer a captação para conseguir ter o nosso espaço físico, mas aí veio a pandemia e todo o recurso que a gente passou a conseguir, ia para comprar as cestas básicas e o kit de higiene."

Os critérios de auxílio são, em ordem de prioridade:

  • transgeneridade,
  • raça,
  • pessoas integrantes da população LGBTQIA+ não contempladas nos dois critérios anteriores, e
  • familiares e amigos das pessoas LGBTQIA+.

Ao lado de Paulo Araújo, 31, coordenador geral da ONG, Symmy diz que eles passaram a cadastrar os beneficiados e fazer um acompanhamento. Em 2020, foram mais de 2.700 cestas doadas, entre alimentos e produtos de higiene e limpeza, com apoio, de perto, de 200 pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.

Diferente de casos em que a doação é de cestas para um grupo familiar, neste universo, o conceito de família é, como Symmy define, fluído.

Há repúblicas de meninas trans, que, por exemplo, têm quatro pessoas. Mas algumas têm 30 e um único cadastro. Não vou deixar uma cesta, vou deixar dez. A gente precisa ter essa sensibilidade."

A atividade predominante dessas mulheres que vivem em casas como as citadas por Symmy é a prostituição, exercida, obrigatoriamente, na rua. "Essas casas são locais onde juntam, por exemplo, quatro pessoas expulsas de casa e vão morar, dividir as contas. Não são casas de prostituição. A casa de prostituição não é para mulher transgênera", afirma.

Ela faz a ressalva porque ser garota de programa é, muitas vezes, o único caminho para pessoas trans e travestis, já que o mercado de trabalho formal não absorve essa população (leia mais abaixo).

"A urgência da fome, da necessidade faz isso. E esse lugar [a rua] está sendo muito violento. Não que antes não fosse, mas a pandemia piorou as coisas", avalia Symmy, que foi coordenadora nacional LGBT no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e esteve à frente do programa Transcidadania da Prefeitura de São Paulo na gestão de Fernando Haddad (PT).

Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), houve aumento de 41% de assassinatos de pessoas trans e travestis no primeiro ano da pandemia. Em 2019, foram 124 casos. Em 2020, 175. Este ano, até o início deste mês, foram 56.

A prostituição é o nosso lugar da cidadania. Infelizmente."

Symmy Larrat, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos

Yasmin Freitas Ferrari, 29, levou uma garrafada na cara em novembro do ano passado, quando trabalhava na rua, fazendo programa, na capital paulista.

Um carro passou e ouvi de dentro algumas ofensas: 'ô viado, traveco'. Eu respondi e eles deram a volta. Eles passaram e me xingaram novamente. Eu peguei uma pedra e joguei. Uma mulher desceu e veio atrás de mim. Os caras deram ré, entraram na contramão. Um deles desceu do carro e me deu um primeiro chute. O outro desceu com uma garrafa na mão e me deu o golpe. Quase me deixaram cega."

Ela recebeu ajuda na Casa Neon Cunha. Agora, tenta sobreviver fazendo brigadeiros a R$ 6, que embala, cuidadosamente, com papel celofane e fitinha. E sai para vender, mesmo na pandemia.

"Em um dia bom, consigo vender R$ 100, até R$ 150, mas aí tem o custo de produção também."

No início deste ano, Yasmin conheceu seu companheiro. Com a ajuda da mãe, alugou um apartamento e, segundo ela, pretende deixar a prostituição no passado. "Quero vender meus brigadeiros, casar com meu marido e ser feliz, só isso."

Infelizmente, muitas vezes, a gente deixa de ter medo, pensar no risco e começa a pensar na nossa necessidade. Se eu pegar ou não [covid-19], preciso de dinheiro para pagar as contas."

Yasmin Freitas Ferrari, vendedora de brigadeiros

A reportagem acompanhou, na manhã de uma segunda-feira de maio, a distribuição de cestas de alimentos e higiene na região do Jardim Jussara, em São Bernardo do Campo.

Roberta Nascimento, 38, foi uma das beneficiadas. "A pandemia veio e destruiu tudo. Eu parei de fazer programa à noite por causa da violência, que piorou. Não vou arriscar minha vida por causa de R$ 20, R$ 30."

A auxiliar de cabeleireira Serena Araújo, 30, vive com a mãe, que tem deficiência visual. A renda da casa depende apenas de sua atividade, que foi impactada desde o ano passado. "Essa ajuda é o que faz com que eu e minha mãe não passemos necessidade".

Para o músico não-binário Murilo Antunes Barbosa, 27, que vive com a irmã e a sobrinha e está sem renda, a doação "é uma grande rede que faz a gente não se sentir tão sozinho no meio disso tudo".

"Muitas questões somadas geram pequenas vulnerabilidades"

Uma pesquisa feita por demógrafos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) em parceria com o coletivo #VoteLGBT apontou que transgêneros e travestis são mais vulneráveis aos impactos do isolamento social —recomendado como medida de proteção contra o coronavírus. A análise envolveu dados de acesso a serviços de saúde, exposição ao coronavírus e informações sobre renda e trabalho.

"Muitas questões somadas geram pequenas vulnerabilidades e colocam pessoas LGBTQIA+ num estado de estresse", diz Samuel Silva, da UFMG. O principal impacto apontado pela pesquisa foi na incidência de depressão.

Andrey Lemos, que é presidente da União Nacional LGBT, mestre em Políticas Públicas em Saúde pela Fiocruz Brasília, lembra que a necessidade de sair de casa para trabalhar é outro fator que preocupa no contexto da pandemia.

"LGBTs trabalham em funções sem nenhuma segurança profissional ou de vida ou de saúde", diz. "Temos muitos LGBTs na informalidade, como ambulantes, trabalhos domésticos e em terminais de ônibus e metrô. Também não podemos esquecer que essa população, por vezes, não tem condições de comprar uma máscara ou um álcool em gel."

A população LGBTQIA+ mais já traz nas suas narrativas, nas suas histórias, camadas de vulnerabilidade estrutural, de opressão, marginalização e violência. Com a pandemia, essas vulnerabilidades foram acentuadas."

Fabiana Araújo, psicóloga que atua no tratamento da população LGBTI em São Paulo

Muito além de 500 mil mortes

Imagine se toda a população de uma cidade como Florianópolis desaparecesse em pouco mais de um ano. Segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a capital de Santa Catarina tem 508 mil habitantes —pouco mais do que os 500 mil mortos por causa da covid-19 em todo o país em 15 meses.

Em meio ao luto —hoje, são cerca de 2 mil mortes por dia, em média—, nosso país também enfrenta os efeitos colaterais da pandemia do coronavírus, como o aprofundamento da desigualdade social. A quantidade de famílias em extrema pobreza e o desemprego bateram recorde.

No pior ponto da crise social, o UOL conversou com quem está se virando para sobreviver na pandemia —seja com doações, trabalhando incansavelmente ou atravessando a cidade em uma moto para entregar comida, enquanto não tem certeza de que ele mesmo irá almoçar.

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