"A rua não é vida pra ninguém"

A pandemia agravou a realidade daqueles
que não têm onde morar




Maria Teresa Cruz (Texto)
Tommaso Protti (Fotos)

São 17h de um domingo frio em São Paulo.


No Pateo do Collegio, homens de todas as idades em situação de rua se organizam em filas, à espera dos assistentes sociais da Prefeitura de São Paulo. Um ônibus levará 30 pessoas a Centros de Acolhida, para passarem a noite.

A ação faz parte da Operação Baixas Temperaturas, que foi antecipada para abril por causa da pandemia.

Na rua do lado, param os carros com doações —neste dia, um deles levou roupas para quem está vivendo no centro, e o outro, refeição.

Com máscaras ou sem, roupas puídas e fome, as pessoas que vivem na região fazem outra fila. O publicitário e DJ André Luiz Freire, 43, é um deles. Atualmente desempregado, conta que foi para a rua por causa da cocaína.

"Eu era casado, perdi tudo. Eu quero ver meu filho, mas como posso ver ele assim, desse jeito? Ele não merece, não. Atualmente, eu vivo pra lá e pra cá", desabafa.

Freire vive há mais de um ano e meio na rua, conta que mantém a higiene em dia com a estação de banho localizada na praça da Sé. Para ele, a população de rua aumentou na mesma proporção que a solidariedade das pessoas durante a pandemia.

"A gente come, toma banho na Sé. Tem tudo. E acho até que algumas pessoas ficam um pouco acomodadas. Mas é lógico que não é confortável viver na rua. Para mim, a pior coisa é o frio", diz.

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Na calçada da rua Anchieta, a faxineira Patrícia Alves, 39, mãe de seis filhos (sendo um deles recém-nascido), conta que buscou uma vaga em uma ocupação recém-criada na Liberdade, mas continua indo aos domingos buscar doações no Pateo.


"Tudo que você está vendo aqui é doação. O carrinho da bebê, as nossas roupas, a comida."

"Eu morava na casa de uma parente na região de Cidade Tiradentes, Estrada do Iguatemi [zona leste], que pegou fogo. A situação já era difícil e não conseguimos dar conta de pagar aluguel. Acabei indo pra rua."

De acordo com o censo municipal realizado em 2019, 24.344 pessoas viviam em situação de rua na cidade de São Paulo, sendo mais de 20 mil homens.


Destas, 11.693 usavam algum tipo de serviço de acolhimento e 12.651 viviam na rua.


Mas quem faz ações solidárias aposta que os dados estão defasados. "Nós vemos as ruas cheias", diz o padre Julio Lancellotti. Para ele, o número deve ter dobrado.


"A pobreza levou as pessoas para as ruas. Tem muita gente andando pelo Brasil. Aqui nas regiões Sul e Sudeste, tem muita movimentação do Rio, Minas, do Sul, do interior do estado. Estão buscando alguma maneira de sobreviver."

Sophia Bisilliat, professora de ioga e fundadora do Treino na Laje, uma das organizadoras da doação no Pateo do Collegio, concorda.


"A verdade é que você não vai para a rua porque quer. Isso precisa ficar claro. Há muitas histórias de vida com as quais a gente toma contato e que marcam. Muita gente que passou pela cadeia e ao sair não tem para onde voltar"

O pessoal do Treino na Laje chegou por volta das 18h no Pateo, com lanchinhos, café e chocolate quente. "A Sophia, a Sophia", anunciam algumas pessoas, enquanto vão se organizando em fila.

Sophia oferece há dois anos atividades físicas e recreativas na periferia da zona sul de São Paulo, e há cerca de um ano encabeça a ação de entrega de alimentos na região às sextas, sábados e domingos.

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Os voluntários que trabalham com Sophia levaram até um ramalhete de flores, doado por um florista que fica em frente ao Cemitério do Araçá, região central.


No total, distribuem 600 lanches, que variam entre recheio de mortadela e presunto e queijo, e 60 litros de café e chocolate quente por dia.


Há também doação de máscaras de pano.

"Quando a gente começou, até pensamos na marmita. Mas comecei a perceber que já tem muita gente que faz isso. Aí pensei em levar café, chocolate, para lembrar sabe aquela coisa de casa, de tomar um café com bolo, sabe?", explica Sophia, que arrecada e distribui cestas básicas na periferia desde o ano passado.

O catador de recicláveis Wellington Mariano Pereira, 31, o Alemão, se beneficiou não só da comida. Ele se aproximou da equipe do Treino na Laje e disse que queria reatar os laços familiares. Alemão, assim como tantos outros, vivia o problema do uso de drogas.

"Eles me resgataram, me levaram de volta para a minha família. Estou morando no Capão Redondo [zona sul] com minha mãe, minha irmã e meu sobrinho. Minha mãe ficou feliz, né? E eu mais ainda. A rua não é vida para ninguém", conta Alemão, que há dois meses não usa mais drogas.

Ele diz ser muito grato pelo trabalho do Treino na Laje, do qual é hoje voluntário. "Sem palavras para o trabalho que eles estão fazendo, é muito gratificante poder ajudar o próximo. Eu fui ajudado e agora estou podendo ajudar", afirma.

De acordo com o censo municipal de 2019, 70% das pessoas em situação de rua declaram usar crack, cocaína ou maconha, e 56% fazem uso frequente de bebida alcoólica.

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Sophia continua distribuindo alimento na periferia: atualmente são 1.200 cestas mensais que beneficiam 15 comunidades. No começo da pandemia, eram dez comunidades.

De doação e relações de convivência baseadas na confiança é que a uma pequena comunidade localizada embaixo do Viaduto Antártica, na zona oeste de São Paulo, região nobre da cidade, sobrevive desde 2008.

São 14 pessoas que moram em barracas, com uma estrutura mínima de cozinha comunitária, e uma sala de TV com um confortável sofá de três lugares.

O líder da pequena comunidade, o palmeirense Paulo Roberto Almeida Júnior, o Pardal, 66, se define como o "disciplina" da comunidade e afirma que o local tem regras rígidas, como, por exemplo, a proibição do uso de drogas.

"É um por todos e todos por um. O que vale aqui é a amizade, a confiança. E confiança não se compra", diz, em tom professoral.

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Pardal divide seu tempo entre os bicos de chapeiro e a atuação como síndico, e conta que não houve aumento das doações na pandemia por lá. "Todo o pessoal do entorno ajuda", relata.


"Os moradores do prédio aqui em frente, empresas da região. E é por isso que eu valorizo essa convivência e cuido dela. A gente tem que reconhecer e não pode perder esse respeito."

Publicado em 06/2021

Reportagem: Maria Teresa Cruz
Colaboração: Leonardo Martins
Edição: Luciane Scarazzati
Fotos: Tommaso Protti
Direção de arte: René Cardillo
Redes Sociais: Laís Montagnana e Marianna Rosalles