Retiro atrás das grades

A história do terapeuta brasileiro que encarou 2 anos preso na Rússia como um momento de reflexão

Marcelo Freire Do UOL, em São Paulo Clara Gouvêa/UOL

Foram 827 dias nas celas, cada um deles encerrado com um agradecimento e o seguinte mantra: "um dia a mais na prisão, um dia a menos para a liberdade". Dessa forma, Eduardo Chianca Rocha, terapeuta holístico que hoje vive em Pernambuco, passou por um "retiro espiritual obrigatório", como ele mesmo define, em sete prisões diferentes na Rússia.

Chianca foi detido em 31 de agosto de 2016 no aeroporto de Domodedovo, nos arredores de Moscou, com chá de ayahuasca. Ele, que utiliza a bebida em meditações pessoais, não sabia que a substância lhe renderia uma condenação pesada por tráfico de drogas em um país onde não conseguia se comunicar ou entender a legislação.

O terapeuta desembarcou de volta no Recife em 6 de dezembro, beneficiado por um acordo entre Brasil e Rússia que o permitiu cumprir aqui o último dos três anos de condenação. Segundo decisão da Justiça Federal no Recife, ele cumprirá esses 12 meses em liberdade condicional. Ele tem outras restrições, como retornar para casa até 22h, comparecer mensalmente à Justiça Federal e solicitar autorização para viagens nacionais e internacionais.

O que poderia ser experenciado como traumático em sua trajetória foi visto, segundo ele mesmo, como uma oportunidade de testar sua coragem e fé. Dedicando sua rotina a práticas de meditação e estudos sobre expansão da consciência, ele usou o confinamento obrigatório para isso. "Foi como um monastério no Tibete, só que muito mais intenso", diz ele ao UOL, em seu sítio nos arredores do Recife.

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Quem é Eduardo Chianca Rocha

Formado em engenharia eletrônica, Chianca se tornou pesquisador e terapeuta holístico na década de 1990. Ele estabeleceu em Aldeia (PE) o Instituto Plêiades, onde se dedica a meditações, práticas espirituais e terapias. A mais conhecida delas se chama "Frequências de Luz", que Chianca já ensinou em alguns lugares no exterior, inclusive na Rússia.

Além dos cursos e terapias, Chianca também dá palestras. Ele vive em um sítio, sede do Instituto Plêiades, com a companheira Patrícia Junqueira, e tem três filhos.

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A prisão

A última viagem foi, segundo Chianca, a primeira vez que ele decidiu levar ayahuasca para o exterior. "Recebi o chá da igreja [responsável pela distribuição da substância] exatamente no dia que eu estava indo para a Rússia. Peguei ele lá no aeroporto e coloquei na mala", relembra.

A turnê de palestras e cursos duraria quase dois meses e incluiria países como Ucrânia, Suíça, Holanda e Espanha e, afirma Chianca, ele resolveu levar o chá para suas próprias meditações. Ele diz que não utiliza a substância em nenhuma terapia. Eram quatro garrafas, totalizando 6,6 litros.

Feito a partir do cozimento de plantas da região amazônica, o chá de ayahuasca contém DMT (dimetiltriptamina) - substância de efeito alucinógico e uso controlado inclusive no Brasil, onde o consumo é permitido em rituais religiosos.

Ainda no aeroporto do Recife, houve um alerta. "Peguei um casaco de frio dentro da mala no check in. A atendente da companhia aérea viu o chá e me perguntou: 'isso não será problema na Rússia?' Eu disse que não, porque a ayahuasca não é narcótico nem no Brasil, nem em lugar nenhum", diz ele, enfatizando que o DMT considerado narcótico é o de produção sintética. "Esse sim é danoso à saúde", afirma.

Segundo ele, a atendente despachou a mala. "Em seguida, ela fez um alerta à polícia do aeroporto de Moscou - que, no meu entendimento, foi algo correto por parte dela - para que checassem minha mala quando eu desembarcasse lá. Quando cheguei a Moscou, já estavam me esperando."

No aeroporto, os agentes russos analisaram o chá, identificaram a presença do DMT, proibido no país, e imediatamente detiveram o brasileiro.

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"Nada é por acaso"

"Os grandes eventos da nossa vida não acontecem por acaso. A princípio parece que é uma coisa ruim, mas pode ser muito boa; Eu sabia que aquilo foi algo que eu provoquei, então eu usaria a Rússia como um instrumento", conta Chianca, sobre a maneira como encarou a experiência.

Antes de aceitar sua própria convicção de que casualidades não existem, porém, ele diz que passou por algumas sensações diferentes, como uma fase de negação e sentimentos de abandono e resignação.

"Não tinha o que fazer, era preciso aceitar. E aí houve uma entrega da vida, perdeu-se o medo da morte. É nessa fase que você se volta para o espírito e pode se reerguer. Algumas pessoas se afundam na prisão: cigarro, drogas, loucura mental. São pouquíssimas as que crescem no meio deste desafio. Se você passar, você engrandece."

"Sobreviver na prisão da Rússia é um teste de coragem. Testa a fé em Deus e a capacidade de flexibilidade. Você convive entre criminosos, assassinos e todo tipo de gente e aprende a não julgar, enxergar além das aparências e do crime que a pessoa cometeu. [A experiência] É uma grande evolução para o ser humano. Tem um aprendizado imenso na prisão."

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A vida na cela

Na prática, a rotina de Chianca na cela, segundo ele, se resumia a orações. Ele escreveu três livros sobre espiritualidade e consciência, dizendo que muitas vezes "recebeu" em sua mente e "fez o download" no papel. Também leu a Bíblia pela primeira vez.

"Jesus fala sobre viver o dia de hoje, 'olhai os lírios do campo'... isso é fundamental. Numa prisão, você abstrai do tempo, porque tem que sobreviver a cada dia. Aí você não queima sua energia vital preocupado com passado e futuro. Quando está no presente, não há preocupação com o passado, sua vida se transforma numa grande meditação. E isso significa o silêncio interno, com a mente calma, no meio da confusão."

Houve também uma busca pelo isolamento no ambiente da prisão e não se conectar aos presos. Por isso, evitou aprender a falar ou entender palavras em russo. "Eu bloqueei qualquer tipo de entendimento da língua. Sem processar o significado, é mais fácil para você não se alimentar da negatividade que tem ali."

No geral, segundo ele, havia respeito. Dividia celas com pouco mais de dez detentos e era visto pelos outros como um "professor brasileiro meio aloprado e maluco". Mas houve uma ou outra situação de hostilidade. "Tive duas ameaças de morte. E eu encarei o cara, porque não tenho medo de situações perigosas, por um princípio meu. O cara me empurrou, eu gritei para ele não me tocar e não aconteceu nada", diz.

"Dentro de uma prisão há algumas leis. Não tenha medo. Não confie - e olhe só, eu vivo num mundo de bondade e amorosidade, e estava numa cela onde a regra é não 'confie'. Não pergunte e não se envolva - se um cara matar o outro, ninguém faz nada. Eu acrescentei outras duas regras: não escute e não fale."

Por fim, havia as situações de necessidades básicas: comida ("sopa, pão e uma 'papa' que funcionava como ração para sobrevivência"), um banho por semana e poucas exposições ao sol, até porque a Rússia não permite muito essa experiência ao longo do ano. "Tem dia que o tempo é tão ruim, com neve e muito frio, que você nem consegue sair."

"Essas são as condições de uma prisão e você se adapta a isso, não tem o que fazer. Deus me dá sabedoria para mudar o que pode ser mudado e me dá consciência para aceitar o que não pode."

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As ajudas

Num primeiro momento, Chianca diz que advogados o alertaram sobre o risco de sua pena chegar a até 20 anos de prisão. Recebeu do júri russo uma sentença de seis anos e meio, reduzida depois para três anos após análise de um recurso da defesa do brasileiro.

Do lado de fora da cadeia, houve uma ampla mobilização por sua libertação. O trabalho envolveu sua mulher, Patrícia Junqueira, os filhos, ex-alunos e pacientes das terapias, lideranças indígenas e parlamentares brasileiros. O governo do Brasil também se envolveu - houve conversas entre os presidentes Michel Temer e Vladimir Putin e os chanceleres Aloysio Nunes Ferreira e Sergey Lavrov sobre o caso de Chianca.

O Ministério da Justiça do Brasil chegou a entregar um parecer questionando a perícia russa sobre a quantidade de DMT presente no chá - seria pelo menos 350 vezes menos do que o apontado no laudo russo. O tribunal de Moscou não aceitou o parecer, mas os dois países chegariam a um acordo meses depois que permitiu que Chianca cumprisse a pena no Brasil.

O terapeuta desconfia que o esforço diplomático fez diferença. "Me colocavam em celas boas. Havia uma proteção, eu ficava em lugares menos barra pesada. E houve muita ajuda espiritual também. E claro, da [mulher] Patrícia, que foi uma peça fundamental nesse processo todo, movimentando energia no céu e na Terra."

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O retorno

Agora, a parte prática é retomar palestras, cursos e terapias. Também quer lançar, no futuro, os três livros que escreveu na prisão, chamados "A Grande Síntese Aquariana", "O Apocalipse Decodificado" e "O Programa Ascensional Planetário". Ele diz que divulgará o quanto puder seu conhecimento sobre transcendência e elevação de consciência. "Essa é a missão de curto prazo, que vai cobrir os próximos anos. O que vem pela frente eu não sei. Quando achava que já estava definido, veio tudo isso", conclui.

"Considero essa experiência um retiro espiritual. Como um monastério no Tibete, só que muito mais intenso. Numa cela, com gente fumando. Foi dificílimo e graças a Deus teve um final feliz. Só agradeço pela oportunidade de isso ter acontecido comigo, poder superar e ajudar as pessoas, que é o propósito disso tudo. Sem traumas. É um capítulo fechado."

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