O Enem das universidades

Exame virou porta de acesso e democratização do ensino superior devido a conjunto de políticas públicas

Beatriz Montesanti Colaboração para o UOL, em São Paulo Fábio Vieira/Fotorua/Estadão Conteúdo

A implosão atual do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) às vésperas da realização do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) mostra o descontentamento com os rumos de uma instituição que nos últimos anos se tornou a principal responsável por levar milhões de jovens ao ensino superior.

Especialistas ouvidos pelo UOL avaliam que a crise é a pior na história do órgão, que teve seu melhor momento na última década, após uma mudança no propósito no exame em 2009 e sua associação a uma série de políticas públicas que mudaram a demografia da educação brasileira.

Desde então, a prova aplicada pelo instituto se tornou a segunda maior avaliação de acesso a universidades do mundo, atrás apenas da chinesa, chamada Gaokao.

O começo e o novo propósito

O Enem foi criado em 1998 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso com o objetivo de avaliar a educação básica e balizar políticas públicas. Mas isso mudou a partir de 2009, já na gestão Lula, quando a prova sofreu tanto uma reformulação conteudista, como de propósito.

Dali em diante, passaria a ser utilizada como um vestibular nacional, servindo de seleção para o ingresso em instituições públicas federais com o Sisu (Sistema de Seleção Unificada), criado naquele mesmo ano, e também privadas, por meio do Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior) e do Prouni (Programa Universidade para Todos) —esse último em vigor desde 2004, mas com menor alcance.

Inclusive, pesquisadores ressaltam que a dimensão atingida pelo exame, assim como o impacto que provocou na educação brasileira nos últimos anos, só foram possíveis graças à adoção de uma série de políticas públicas às quais ele foi atrelado.

Para além do Sisu, do Fies e do Prouni, a década seguinte à mudança de escopo do Enem viu a aprovação da Lei de Cotas e uma farta ampliação na oferta de vagas, com a criação e interiorização de instituições federais pelo Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais).

O argumento de defesa do Enem como mecanismo de acesso ao ensino superior por vezes tira de cena o papel crucial dessas políticas. O exame é instrumento, mas o que faz com que os jovens cheguem à universidade é o Prouni, o Fies ou o Sisu."

Maíra Tavares Mendes, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz e cofundadora da rede Emancipa

ROBERTO CASIMIRO/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Há dez anos, ela observou o crescimento de alunos em cursinhos populares cujo objetivo era ingressar em uma universidade pública, em oposição à até então predominância de jovens com a expectativa de adquirirem uma bolsa em instituições privadas de menor prestígio.

Resistência

Outro aspecto importante na trajetória recente do Enem é o processo político levado a cabo para que ele fosse de fato adotado como critério seletivo pelas universidades —e consequentemente, pelos estudantes.

Entre os motivos para a resistência, estava um certo temor em relação à segurança da prova.

Em 2009, houve um vazamento que fez com que sua aplicação fosse adiada em dois meses.

Aquele ano viu uma abstenção apenas superada pela edição da pandemia: 41,5% dos mais de 4 milhões de inscritos acabaram desistindo de realizar a prova.

"As universidades mais tradicionais tinham um apego muito grande a seus próprios vestibulares, e existiam desconfianças sobre se o Enem cumpriria o propósito seletivo. Se jovens vindos de outros estados tirariam as vagas de quem era dali. A tese era a de que quanto mais seletivo, melhor", diz Gregório Grisa, professor de políticas educacionais do Instituto Federal do Rio Grande do Sul e que, à época, fazia parte do conselho que debatia a adesão ou não à prova na UFRGS.

Na avaliação de Cláudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e ex-diretora de educação do Banco Mundial, havia também a predominância de uma cultura excludente.

É curioso entender o quanto as universidades resistiram ao processo de inclusão maior, mantendo um discurso progressistas, mas práticas excludentes. Havia uma visão de que se a população desfavorecida entrasse, cairia o nível do ensino.?

Cláudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV

ADAILTON DAMASCENO/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO ADAILTON DAMASCENO/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Ela compara esse processo, por exemplo, à repulsa inicial de parte da comunidade universitária à criação da USP Leste, um braço da universidade em uma área fora do centro expandido de São Paulo.

"O discurso ia no sentido de que as mudanças só poderiam acontecer quando a universidade estivesse plenamente preparada. Foi importante naquele momento o trabalho de investimento do MEC em mostrar que o Sisu poderia ser um grande avanço."

Mas o estímulo às instituições não veio tanto pela retórica governista, como pela concessão de vantagens financeiras. O ministério passou a atrelar repasses e financiamento para políticas de permanência estudantil à adesão à prova, o que teve resultados expressivos.

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O círculo virtuoso

Para Gustavo Bruno, doutor em educação pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), as instituições aos poucos foram também percebendo que fazer o próprio vestibular era algo muito mais custoso.

"Havia todo um esforço de criar prova específica, com leituras específicas. Com o Enem, a universidade não precisa mais planejar todo o conjunto de avaliação próprio e particular. Houve também uma mudança de perspectiva para ver o exame como forma de inclusão, o estudante mais pobre pode se preparar para apenas uma prova e pode tentar entrar em uma faculdade mais distantes de onde vive."

A adoção progressiva foi seguida por um boom de inscrições, que teve seu ápice em 2014, quando 8,76 milhões de estudantes se cadastraram para fazer a prova.

O momento era propício, o país havia universalizado o acesso ao ensino básico e a economia havia tido um bom desempenho nos anos anteriores, fazendo com que uma massa até então inexistente de jovens diplomados, com certa estabilidade financeira em casa, se voltasse à alternativa inédita em seus históricos familiares: a faculdade.

"A meninada não foi lá fazer a prova porque achou interessante. Há uma série de fatores que levaram a isso: a escolaridade da família aumentou, a renda média também, houve uma valorização do salário mínimo importante na primeira década do século, em 2010 o PIB cresceu 7%, há um cenário de valorização do ensino superior muito forte e uma demanda por engenheiros e outras profissões. E aí o Enem surge como uma prova nova, mais atraente", diz Grisa.

"O exame é um dos ingredientes do combo que por algum período constituiu o círculo virtuoso de expansão e democratização do ensino."

Outro ponto relevante para a enxurrada de inscritos foi o fato de o Enem chegar como uma prova muito mais acessível em comparação a vestibulares tradicionais. Para além da possibilidade de isenção de taxa a estudantes de baixa renda, a prova é aplicada em todo o país, poupando assim gastos com grandes deslocamentos.

"Os vestibulares aconteciam na mesma época, os alunos tinham que pagar várias taxas de inscrição, viajar e era muito difícil prestar vestibulares em diferentes regiões do Brasil, o que fazia com que cada universidade ficasse restrita a população de seu estado", diz Costin.

Rômulo Cabrera/Ecoa Rômulo Cabrera/Ecoa

Cronologia do Enem

  • 1998

    Exame é criado com propósito de avaliar o ensino básico brasileiro.

  • 2009

    Enem passa de prova multidisciplinar para grande vestibular. Prova vaza e é cancelada. Sua aplicação, mais tarde, tem 41,5% faltantes.

  • 2013

    Enem passa a ser adotado como critério de seleção por todas as instituições federais.

  • 2014

    Exame recebe recorde de inscritos: 8,76 milhões de pessoas, mais do que o dobro comparado a quando mudou de formato, cinco anos antes.

  • 2019

    Perguntas foram periciadas e um erro de correção afeta a nota de milhares de alunos.

  • 2020

    Prova é aplicada em meio à pandemia e tem abstenção de 50%, um novo recorde.

  • 2021

    Inep enfrenta sua pior crise, com trocas constantes na presidência e o pedido de demissão de mais de 30 funcionários. A prova registra seu menor número de inscritos desde 2005, além da menor taxa de participantes negros e vindos de escolas públicas dos útlimos anos.

Geraldo Bubniak/AEN

Qual é o futuro do Enem

Os pesquisadores ressaltam como as mudanças na última década não vieram sem problemas e desafios, como as dificuldades logísticas de se aplicar uma prova nessa dimensão, além da falta de políticas de permanência, o que fez com que milhares de jovens aprovados não tivessem condição de se manter na faculdade, principalmente quando longe de casa.

"Nós temos muito mais estudantes na universidade hoje, da escola pública, de baixa renda, negros e indígenas também. Esse é um caminho para igualdade social, porém precisamos de continuidade nessa ampliação do acesso, na permanência estudantil e no investimento em ciência também", diz Bruna Brelaz, presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes).

Apesar dos avanços, o Brasil ainda engatinha em termos de acesso e inclusão no ensino superior. Só 21% das pessoas entre 25 e 34 anos têm diploma universitário. Entre esses, pretos e pobres são minoria.

"O Enem por si só segue ainda em termos macro o padrão dos vestibulares de reproduzir desigualdades, como qualquer grande prova ou avaliação em grande escala. O que isso significa? Que todas as mazelas socioeconômicas, raciais, geográficas, regionais, de gênero se expressam também nos resultados do exame. Mas porque não temos vagas para todos, é necessário um processo seletivo", diz Grisa.

Maíra explica que o balanço geral dos últimos dez anos é difícil de ser feito, devido ao fato de os dados serem desagregados e refletirem realidades muito distintas entre as instituições e suas regiões.

"Pesquisas sobre acesso a universidades são complicadas no geral, porque a generalização de dados é muito perigosa. Temos grande dificuldade de falar em tendências nacionais, pois as instituições têm identidades muito próprias."

Para além disso, os pesquisadores consideram o momento atual de retrocesso, o que retarda o processo até então em curso, se não o coloca em xeque.

"A maneira atabalhoada com que o Inep tem sido gerido e com que o Enem vem sendo preparado é uma perda. Desde 1998 o instituto ganha um prestígio crescente, inclusive internacionalmente, por seu profissionalismo, capacidade logística e cuidado com as estatísticas educacionais", diz Costin.

Ainda assim, sua visão é otimista: "Acredito que o exame vá evoluir mais. Foi um grande avanço em relação a antigos vestibulares. A expectativa daqui para frente é que volte a ser mais transdisciplinar e que dialogue com itinerários formativos do novo ensino médio. Só precisamos garantir que terá uma gestão técnica, e não ideológica", conclui.

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