Elas mudaram de opinião

Lilia Moritz Schwarcz, Isabel Lustosa e Maria Hermínia Tavares contam por que deixaram de ser contra as cotas

Do Núcleo de Diversidade do UOL Arte/UOL

A historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, a professora e pesquisadora Maria Hermínia Tavares e a historiadora e escritora Isabel Lustosa eram três dos 114 sociólogos, artistas, historiadores e ativistas que, em 2006, assinaram um manifesto em oposição à implementação das cotas no Brasil. Entre os argumentos, a meritocracia, a qualidade do ensino superior e a falta de exemplos internacionais. Com o passar do anos, as três contam que mudaram de opinião.

Entre os motivos, as análises delas em relação às mudanças que a ação afirmativa provocou nas universidades brasileiras: o perfil das universidades não só mudou quantitativamente - com a presença de mais negros, pessoas em situação de vulnerabilidade e indígenas - como também provocou a academia a rever seus parâmetros educacionais.

Neste marco dos 10 anos da sanção da Lei de Cotas (nº 12.711), que prevê a reserva de 50% das vagas das universidades e institutos federais de ensino superior a estudantes de escolas públicas (dentro dessa reserva, vagas a alunos de baixa renda, negros, indígenas e com deficiência), as três contam com mais detalhes ao UOL o que as motivou a mudar de opinião.

'Era contra as cotas, mas mudei de opinião'

Leo Martins/UOL

Lilia Schwarcz

'Me tornei defensora das cotas raciais na sala de aula'

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Isabel Lustosa/Arquivo pessoal

Isabel Lustosa

'Hoje sei que excludente é a academia, não as cotas'

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Reprodução

Maria Hermínia Tavares

'Pesquisas me mostraram que as cotas são bem-sucedidas'

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Transformados pelas cotas

Desde que foram implementadas, as cotas raciais modificaram o ambiente acadêmico brasileiro, seja pela inclusão de pessoas antes ausentes das salas de aula universitárias, seja pela adaptação dos currículos. O UOL ouviu personalidades que tiveram suas vidas transformadas pela ação afirmativa. Abaixo, as histórias deles:

UOL/Carine Wallauer

Irapuã Santana

Após ingressar via cotas raciais na Uerj, universidade pioneira na implementação da política, ele chegou no que classifica como o “topo” da carreira jurídica: foi assessor do ministro Luiz Fux no STF, de 2014 a 2015, e no TSE, de 2016 a 2018. Agora, o advogado de 35 anos luta para outros negros também chegarem lá. Presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, trabalha para a adoção de cotas de 30% nos eventos de todas as comissões.

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Divulgação

Giovana Xavier

A professora ministra a disciplina “Intelectuais Negras: escritas de si, saberes transgressores e práticas educativas de mulheres negras” desde 2015 na UFRJ. O curso foi criado pela historiadora e professora da Faculdade de Educação com duplo propósito: enfatizar o protagonismo de mulheres pretas e pardas na criação de conhecimento e mostrar como cotistas, em sua maioria negros, podem encontrar pessoas semelhantes na sala de aula.

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Greg Salibian/Folhapress

Sonia Guimarães

Duplamente pioneira, ela foi a primeira mulher negra brasileira a obter um doutorado em física e a se tornar professora do prestigiado ITA. Em 2018 e aos 61 anos, já apta a se aposentar, ela não via a hora de testemunhar a primeira vez de outras pessoas. Sem conter a alegria, adiou o descanso para dar aula aos primeiros alunos cotistas da mais concorrida instituição de ensino do país e que relutou a adotar a política de ações afirmativas.

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Yasmin Velloso/UOL

Uma família na universidade

Em 2004, a auxiliar de enfermagem Maria das Graças Sousa Santos repetia consigo sempre que caminhava pelo campus da Universidade de Brasília nos intervalos do trabalho: "Ainda vou estudar aqui". Dez anos depois e aos 58 anos, ela conseguiu: foi a primeira da família no ensino superior. Não contente, levou a filha e o neto juntos. No dia que passou no vestibular para serviço social, Graça profetizou:

Raphinha, estou te esperando lá no ano que vem".

Quase. No ano seguinte, foi a vez da filha Ítala Jerônimo, que passou no IFB (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília). Raphael Leopolldo Sousa Menezes, o Raphinha, só virou colega de universidade da avó dois anos depois dela, ao ser aprovado em ciências da computação. Especialistas e estudos consultados pela reportagem mostram que a história dela representa um Brasil marcado pela evasão escolar e dificuldade para estudar. Indicam também que os três são símbolo de uma democratização recente do ensino superior.

Graça, Raphinha e Ítala não são os únicos. As cotas permitiram que outras pessoas se tornassem pioneiras de suas famílias e nas áreas em que atuam:

As conquistas dos primeiros de suas famílias na universidade

Arquivo pessoal

O primeiro cotista negro da UFRGS

Jeferson Tenório, escritor, vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance e colunista do UOL: "Na escola, a universidade não estava no nosso horizonte, parecia que era um espaço para outras pessoas. Talvez a branquitude não entenda como é não se sentir verdadeiramente habilitado para frequentar uma universidade"

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Reprodução

Uma cientista brasileira e negra na ONU

Ana Gabryele Moreira, cientista: "Ser a primeira mulher preta premiada na Agência reflete muito sobre a baixa representatividade de mulheres negras atuando nestes setores, ao mesmo tempo em que apresenta para a sociedade a possibilidade de mostrar o quanto é possível o nosso acesso aos setores da educação, pesquisa e ciência através das políticas públicas"

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Arquivo pessoal

'Hoje eu me visto do como quero e ajudo minha mãe'

Thiago Alberto de Mello, engenheiro: "Parecia que as pessoas de onde venho só tinham um destino: trabalhar em chão de fábrica ou no comércio. Como era almoxarife na época, eu só pensava que não queria ser o 'neguinho do almoxarifado', que era como me chamavam"

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Arquivo pessoal

Prestes a ser o primeiro arquiteto da aldeia

Paulo Jeremias Aires, estudante povo Akroá-Gamella, do Maranhão: "Ter tido essa recepção foi muito importante para que eu conseguisse construir laços na universidade. Por causa da rede de apoio, a minha experiência na Unicamp tem sido muito positiva"

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Propostas para mudar Lei de Cotas preveem reduzir vagas para negros

A partir do aniversário de 10 anos, a Lei de Cotas deve passar por um momento decisivo, quando a ação afirmativa poderá ser revisada. Os debates no Congresso Nacional sobre o teor da revisão já começaram.

Pesquisa da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), obtida com exclusividade pelo UOL, mostra que das 67 proposições que pretendem alterar a lei no Congresso Nacional, 31 podem prejudicar direta ou indiretamente a reserva de vagas para negros, 20 ampliam direitos garantidos pela legislação vigente e 16 são consideradas "neutras", por abordarem temas como programas de assistência financeira para universitários cotistas e pós-graduandos — sem entrar no mérito da oferta de vagas.

Apesar de não estabelecer textualmente a retirada do critério racial, há uma categoria de projeto de lei que acaba diminuindo o percentual previsto àqueles que historicamente têm sido vulnerabilizados, como negros, indígenas e pessoas com deficiência, pois propõe a entrada de grupos que historicamente não foram marginalizados no sistema de cotas

Delton Aparecido Felipe, professor e um dos realizadores da pesquisa da ABPN

Arquivo Pessoal

'Sonho voltar, mas é difícil': sem auxílio, cotistas deixam cursos

As cotas podem até permitir o acesso à universidade, mas não garantem que os beneficiados se formarão. A paulistana Karen Rodrigues, 19, estudou na USP, mas nunca pisou no campus do Butantã. Moradora de Guaianases, ela teria de encarar quatro horas de transporte coletivo para percorrer o trajeto de 60 km e voltar para casa. Jamais chegou a fazê-lo. Enquanto era aluna de Ciências Sociais, o curso era remoto devido à pandemia de covid-19. No ano passado, o pai deixou a família e as contas apertaram, e ela teve de arranjar um emprego e largar a faculdade.

Estudante do mesmo curso, mas na UFRJ, a carioca Letícia Nunes, 25, quase abandonou tudo quando o estudo passou a ser virtual: sem computador, só contava com um celular que desligava sem aviso. O problema foi resolvido, mas a ideia de desistir volta ao ver a mãe sustentar sozinha a família inteira e quando tem de estudar com os tiros zunindo na janela da casa no Complexo do Andaraí.

Karen e Letícia viraram as primeiras universitárias de suas famílias graças às cotas raciais. Sem apoio financeiro suficiente, porém, viram a permanência na sala de aula comprometida. É esta a realidade detectada por um dos maiores estudos já feitos sobre o impacto das cotas no país e ao qual o UOL teve acesso. Segundo a pesquisa, apesar de franquear acesso ao ensino superior a populações historicamente afastadas dos bancos universitários, a reserva de vagas instituída pela Lei de Cotas (nº 12.711) não garante que elas concluam os cursos. Para os pesquisadores, auxílios estudantis são cruciais para assegurar a permanência desses grupos.

Qualquer um que venha de onde eu vim chega à universidade com a mente muito desgastada, lidando com um preconceito estrutural cotidiano, e em poucos dias se depara com falas, ações, o buraco vai ficando cada vez mais embaixo. No fim das contas, a universidade pública acaba agindo como uma empresa: temos diversidade, mas nada de inclusão"
Karen Rodrigues

Cotistas ganham o mundo

Ainda assim, as cotas virado um trampolim. Gilberto José Nogueira Junior, 31, ganhou o mundo como Gil do Vigor, mas foram os estudos que o conduziram à Universidade da Califórnia (EUA) para o doutorado. De fotocopiador, o escritor Evandro Cruz Silva, 30, chegou à lista Forbes Under 30 Brasil 2021. O virologista Anderson Brito, 36, se tornou uma das principais vozes da ciência no Brasil. A bióloga Samara Kister, 24, mergulhou nas experiências acadêmicas nos EUA, e Anna Carla Alberto, 32, parceira de profissão, descreveu novas espécies de animais na Espanha. Todos eles têm em comum o fato de terem sido cotistas que ganharam o mundo após passar pela universidade pública no Brasil. Ao UOL, eles descrevem as dificuldades e as conquista:

Reprodução/Instagram

Gil do Vigor, economista

"Fui aprovado em quatro programas de doutorado no exterior e optei pela Universidade da Califórnia. Estudar no exterior sempre foi um sonho que muitas pessoas julgavam como impossível pelo lugar de onde vim. A emoção e a alegria que senti ao vê-lo se concretizar é indescritível. Lá, percebi que o Brasil tem muitos educadores de extrema qualidade. O que falta é o investimento em educação Para pessoas como eu, as cotas são um auxílio para que continuemos acreditando que, algum dia, nossos sonhos se tornarão realidade, independentemente do lugar de onde viemos."

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Arquivo Pessoal

Evandro Cruz Silva, escritor e sociólogo

"Em 2017 fui para a escola de verão da Universidade Humboldt de Berlim (Alemanha), com recursos da USP (Universidade de São Paulo). Em 2020 fui convidado para passar seis meses no Colégio de Michoacan (México) como pesquisador visitante, com bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Com as cotas, o conhecimento científico se diversificou. Para alguém de classe média, que tem alguma cultura universitária na família, fazer universidade pública é dar continuidade aos planos da vida dela. Para nós, é a mudança total dos planos."

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Arquivo Pessoal

Anna Carla Alberto, bióloga

"Na época eu fazia curso de espanhol então decidi tentar a Universidade de Jaén (Espanha). Quando soube que passei, quase caí dura. Embarquei em 2013. Na primeira aula, o professor disse que queria me fazer uma pergunta. 'Recebo muitos brasileiros aqui, mas você é a primeira negra', ele disse. 'Tem muitos negros no Brasil?'. Meses depois, fui selecionada para um projeto de iniciação científica e encontrei duas espécies de nematoides [vermes microscópicos] que ainda não tinham sido descritas na Espanha. Publicamos um artigo acadêmico sobre — meu primeiro artigo foi em espanhol."

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Arquivo Pessoal

Anderson Brito, virologista

"A oportunidade de estudar fora apareceu no doutorado, com o programa Ciência Sem Fronteiras. Meu domínio do inglês era praticamente inexistente. Fiz o exame de proficiência duas vezes até passar. No Imperial College (Reino Unido) recebi uma bolsa que bancava o curso e me garantia uma boa condição de vida. Também tinha acesso a computadores de alta performance no campus e a universidade custeou minha ida a congressos em outros países, como Japão e Espanha. Coisa que no Brasil eu provavelmente não conseguiria. Mas lá, também notei como a formação que tive na UnB era bastante sólida."

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Para saber mais

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