"Não tem dia que não lembre"

Espancada por lutador de jiu-jítsu fala de trauma após 6 meses: "Arrancava pedaços e cuspia, como canibal"

Marcela Lemos Colaboração para o UOL, no Rio Selmy Yassuda/UOL

Rosto inchado e com depressões provocadas por socos, marcas de mordidas nos dois antebraços, desvio de septo e alterações na visão. Essas são as marcas que insistem em permanecer no corpo da paisagista e empresária Elaine Caparroz, espancada há seis meses por um estudante de Direito e lutador de jiu-jítsu, em seu apartamento na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro.

O caso completou seis meses na última sexta (16) --quase duas semanas após ela fazer 55 anos. Ao UOL, ela relembrou em entrevista a tentativa de feminicídio e falou sobre o trauma e a retomada da vida após a violência.

Elaine e Vinícius Serra, 27, marcaram um jantar na casa da empresária depois de oito meses trocando mensagens pelo Instagram. O casal tomou duas garrafas de vinho. Elaine adormeceu e acordou sendo espancada.

Ele mordia meu braço, arrancava pedaços de pele, de carne e cuspia, como se fosse um canibal. Não tem um dia que eu não lembre do que ocorreu porque me olho no espelho e vejo as marcas de tudo ainda.

Elaine passou uma semana internada --precisou de 80 pontos na boca, teve uma fratura no nariz e em outros ossos da face, além de descolamento de retina, perfuração de pleura (pulmão) e problemas de insuficiência renal. Na ocasião, ela precisou ainda de transfusão de sangue.

Seis meses após o crime, ela ainda realiza procedimentos de reparação no corpo e estima ter gasto mais de R$ 60 mil com as intervenções, como a reconstrução de um dente.

A empresária relata que, após o crime, teve pesadelos que chegavam a despertá-la. "Acordava gritando como se eu estivesse revivendo as agressões, achando que estava sendo esmurrada de novo."

Hoje, ela mora em outro bairro, a 30 minutos do antigo endereço onde foi espancada. Elaine diz que se sente "80% recuperada".

Antes de se dedicar ao paisagismo, Elaine foi modelo durante 15 anos. Interrompeu a carreira para se dedicar ao filho, aos 36 anos. Saiu de São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo, para morar com o lutador de jiu-jítsu Ryan Gracie, morto aos 33 anos em 2007.

O filho Rayron Gracie, campeão mundial de faixa azul juvenil no jiu-jítsu, está hoje em Nova York e compete em diversos países. Segundo Elaine, Vinícius demonstrava interesse por assuntos ligados ao filho, o que fez a polícia cogitar uma hipótese de vingança --isso não foi confirmado.

Leia a seguir o depoimento dela ao UOL.

"Posicionei os braços na frente do rosto para me proteger"

Selmy Yassuda/UOL

"O que aconteceu foi muito impressionante. Eu acordei sendo esmurrada. Ele mordia meu braço, arrancava pedaços de pele, de carne, e cuspia, como se fosse um canibal. Não tem um dia que eu não lembre do que ocorreu porque me olho no espelho e vejo as marcas de tudo ainda.

Ele chegou a jogar as gavetas da minha cômoda em cima de mim e isso acabou rasgando a minha perna. Também tenho essa cicatriz. Meus braços ainda estão com as cicatrizes da mordida.

Eu posicionei os braços na frente do rosto para me proteger, acho que se não estivesse feito isso teria morrido, pois os murros passaram a entrar com menos força, e isso o deixava muito irritado.

Fiquei fora de mim, tonta, desmaiada, quando voltei a mim comecei a me proteger de novo e percebi que não estava mais recebendo os golpes, não ouvia barulho e nessa hora percebi que ele tinha ido embora. Aí comecei a tatear o espaço e fui para o corredor do prédio engatinhando, pedindo socorro.

Quando me viu, uma amiga enfermeira achou que eu não ia sobreviver devido ao meu estado.

Até o mês passado, quando tocava meu rosto, eu ainda sentia dor, agora não mais, mas ele continua bem inchado e com depressões."

Mulher tem rosto desfigurado

Selmy Yassuda/UOL

"Acordava gritando"

"Quando eu recebi alta do hospital, eu estava em um estado deplorável. Fiquei dois meses na casa de uma amiga, pois não tinha condições de voltar para o meu apartamento.

Nesse tempo, acordava gritando como se eu estivesse revivendo as agressões. Eu acordava achando que estava sendo esmurrada de novo. Isso aconteceu ainda quatro vezes.

Depois mudei de apartamento. Até hoje não voltei a trabalhar e ainda não saio muito de casa. No início, não tinha condições físicas.

Depois ainda fiquei muito tempo com o rosto desfigurado e, quando você fica assim, até você conseguir conviver em sociedade de novo é difícil. Demorei três meses e meio para voltar a pisar em uma academia.

Já aconteceu de ir a um restaurante e na praia e notar uma pessoa muito parecida com ele. Me senti muito mal na hora. Lembrava o Vinícius e senti angústia.

Na praia, fui embora imediatamente e, no restaurante, permaneci apreensiva. A nossa cabeça na hora dá um nó e a gente chega a ficar na dúvida.

O Vinícius causou um atraso grande na minha vida e eu diria que hoje estou 80% recuperada, mas ainda perco muito tempo focada em médicos e na minha total recuperação."

Selmy Yassuda/UOL

Cicatrizes das mordidas

"Além do prejuízo emocional e profissional, tem o prejuízo financeiro também. Eu saí do hospital muito inchada por conta das agressões, dos medicamentos que precisei tomar.

Até agora já precisei reformular as lentes dos meus óculos porque minha visão está alterada, fiz drenagens faciais e corporais para ajudar a desinchar.

Preciso fazer ainda uma minicirurgia no rosto, uma harmonização da face que custa entre R$ 10 mil e R$ 30 mil. Meu rosto segue inchado e com depressões.

Ainda vou precisar camuflar as cicatrizes das mordidas. Isso é feito com um tatuador e pode custar R$ 1.000. A reparação do meu dente ficou em R$ 25 mil e o tratamento termina em outubro. No mínimo, o gasto foi de R$ 60 mil.

Sem contar que precisei mudar de apartamento, parar de trabalhar, interromper meus projetos...

No dia seguinte às agressões, eu tinha uma reunião marcada para discutir a abertura de uma escola de estética e esse projeto acabou ficando para trás."

Selmy Yassuda/UOL

"Não vou deixar de ser feliz"

"No início, quando saía de casa, recebia muito carinho na rua. Mulheres vinham me abraçar, falar comigo, me senti muito acolhida. Até homens me cumprimentavam e davam palavras de apoio.

Alguns não me abordavam. Falavam comigo através de um sorriso, como se me conhecessem, mas na verdade tinham acompanhado a minha história pela imprensa.

Hoje penso muito nas mulheres que passam por isso. No meu caso, eu tive como resolver, mas imagina essas mulheres de classes sociais mais simples, que perdem dente (...) Imagina depender do SUS?

Tem muita coisa envolvida quando você sofre uma agressão dessas, é uma recuperação longa, demora um ano. Já fiz tomografia facial, implante. E as pessoas que não têm condições? (...)

As pessoas precisam pensar muito antes de se relacionar.

Não vou deixar de ser feliz por causa disso. Não estou com ninguém, estou focada ainda na minha recuperação, mas não vou permitir que o ocorrido atrapalhe ainda mais minha vida.

Estou separada há cinco anos e meio do meu ex-marido. Não tenho motivo para não reconstruir a minha vida e tenho certeza ainda que serei mais feliz."

Reprodução/Instagram/Kyra Gracie

Prisão em flagrante e histórico de agressão

Vinícius Serra (foto ao lado) foi preso em flagrante no prédio de Elaine ao tentar deixar o local após as agressões em 16 de fevereiro. Um funcionário impediu a saída dele e a polícia foi acionada.

A prisão preventiva (por período indeterminado) foi decretada e ele chegou a ficar internado em um hospital penal psiquiátrico após alegar um surto.

De acordo com a Seap (Secretaria Estadual de Administração Penitenciária), ele não apresentou alteração no quadro clínico psicopatológico. Depois da internação, o agressor foi transferido para o presídio de Benfica, na zona norte da cidade.

Ao chegar ao apartamento, Serra se identificou na portaria como Felipe. Diante da recusa para subir, ele acabou dando o nome de Vinícius Felipe, o que levou a polícia a acreditar que o crime tenha sido premeditado.

Ao chegar na casa da empresária, os dois jantaram, conversaram e tomaram duas garrafas de vinho. Para Elaine, neste momento, ela foi dopada. Ao adormecer, a vítima foi acordada violentamente com socos e mordidas.

Na denúncia contra Vinícius Serra, o Ministério Público do Rio pediu a condenação por tentativa de homicídio qualificado, com penas de prisão que vão de 12 a 30 anos.

Segundo a denúncia, o homem "consciente e voluntariamente e com a intenção de matar, espancou violentamente a vítima, causando-lhe lesões corporais graves". Para o MP, Serra deixou a casa de Elaine acreditando que havia matado a paisagista.

"De acordo com a denúncia, o crime não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade de Serra, que deixou a residência de Elaine acreditando que havia matado a vítima", sustentou o MP. Além disso, apontou um agravante: "A tentativa de homicídio foi praticada de forma dissimulada, já que o denunciado marcou um encontro prévio com a agredida, ocultando sua intenção de matar".

A Justiça aceitou e decretou a prisão preventiva. O processo está em andamento e deve ser julgado até o fim do ano.

Procurado pelo UOL, o advogado de Elaine, Bianor Filho, disse que o processo está adiantado e que espera que Vinícius vá a júri popular ainda neste ano pelo crime de tentativa de feminicídio.

Já o advogado do agressor, Caio Conti, disse que só vai se manifestar em juízo.

Além de espancar a paisagista, Serra já havia sido denunciado à polícia pelo próprio pai, Zacarias Batista de Lima, depois de agredir o irmão Diego, que é deficiente. A agressão ocorreu em fevereiro de 2016.

De acordo com a queixa, o pai foi despertado por gritos durante a madrugada. Ao chegar ao quarto dos filhos, viu que Serra estava em cima do irmão aplicando golpes de jiu-jítsu.

Ainda de acordo com o pai, a razão da agressão era a suspeita de que o irmão tivesse pegado R$ 1.200 que pertenceriam a Serra. Na briga, ele acabou acertando um golpe no rosto do pai. A quantia estava numa caixa de remédios que a mãe havia jogado no lixo.

Na delegacia, Zacarias contou que o filho era faixa roxa de jiu-jítsu e andava "muito destemperado". O caso chegou ao Juizado Especial Criminal, mas o pai desistiu da denúncia contra o filho.

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