O céu da pandemia

Quarentena leva moradores da zona leste de São Paulo a retomar o velho hábito de empinar pipas



Leonardo Martins e André Porto

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Inverno.
Menos chuva.
Céu claro.
Vento.


Em plena pandemia, essa combinação ajudou Thiago Martins, 33, o Mingau, a encontrar uma sensação de bem-estar diferente - que ele já conhecia, mas tinha abandonado há muito tempo. "Eu esqueço de tudo que acontece no mundo lá fora. É uma terapia. Depois de 15 anos, voltar a fazer isso é muito louco."

Mingau divide essa terapia com outros amigos de infância, nas ruas e vielas da Vila Invernada, na zona leste de São Paulo.

É fácil perceber que a "moda" se espalhou.

"Passou o Carnaval e começou a vender um atrás do outro. Pegou geral de surpresa", diz Danilo Jorge, 37, dono de uma loja de pipa no bairro. "Não tem mais nada. Tentei comprar de uma distribuidora do Rio de Janeiro, mas eles disseram que lá tá pior ainda."

Cesar Henriques, que tem uma loja no bairro de Piedade, no Rio, confirma. "Foi algo que nunca aconteceu. Igual cometa Halley: quem viveu, viveu. Quem não viveu, meu amigo, perdeu", conta, citando o cometa que passa perto da Terra a cada 76 anos —a última vez foi em 1986.

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O passatempo antigo do Mingau e dos amigos ganhou as ruas da Invernada.

É a "pipaterapia".

Mingau chamou o tio Marcos Martins, 49 anos, de volta à brincadeira. "Vinte e poucos anos que não brincava com pipa. O Thiago tava todo empolgado, me chamou e foi um sarro. Eu parecia um moleque de 14 anos correndo na rua atrás de pipa", diz Marcos.

Pipa, segundo o dicionário Aurélio, é um substantivo feminino. Mas, na quebrada, os pipeiros seguem as próprias regras de linguagem.

Em tempos de jogos online, cortar o dedo com a linha e manobrar a pipa no céu tinha virado coisa de velho. Aí veio a quarentena e todo mundo voltou a olhar para o céu.

Se o mês bom para empinar pipa sempre foi julho --por causa do clima e das férias--, em 2020, as pipas continuam subindo até agora.

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Dá para comprar pipa pronta, mas pipeiro raiz faz a sua e cria sua marca: é a pipa-padrão.

Quando ela sobe, os adversários já sabem quem está na brincadeira. "Eu tenho duas pipas-padrão. Uma preta, amarela e vermelha na horizontal. Tinha também uma que eu fazia branca e preta com a rabiola vermelha", conta Marcos. "Mas quando eu era pequeno e não tinha dinheiro, pegava papel de pão da vó, cola de arroz, cola de farinha de trigo e fazia pipa."

As pipas também trazem lembranças da infância do Mingau e do seu falecido pai, Paulo, que gostava da diversão.

"É muito louco. Desde o momento em que eu começo a fazer um pipa, fazer a rabiola, colocar no alto, você acaba passando um tempo que é só você. Essa terapia que é gostosa demais."

"Quando eu tô lá empinando, não penso em nada. Parece que eu tô em outro mundo. Fico desligado, relaxado", diz Marcos, que é administrador de suprimentos, chegou a fazer home office durante a quarentena e agora voltou para o escritório. "Durante a semana, fico no trabalho pensando no fim de semana, se o tempo vai estar bom, se vai ter vento bom."

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Desde maio, o governo estadual determinou o uso obrigatório de máscaras por causa da pandemia. Quando a reportagem esteve na Invernada, porém, ninguém usava o equipamento de proteção.

Os vizinhos chegaram a marcar um evento pelo Facebook em julho. Mas a informação vazou e, de repente, mais de 4 mil pessoas tinham confirmado presença.

Preocupado, um dos organizadores avisou:

"[Tem] gente ligando de Ribeirão Pires, Santo André, São Caetano. Resolvemos cancelar pra não queimar a quebrada. Porque aí aglomera, cola polícia e eles não deixam mais a gente empinar. Vamos marcar outro dia. Tá foda".

"Eu tava na pracinha com os moleques que tinham cinco ou seis anos, na minha época. Hoje, são tudo pai, com 35 anos, casado, empinando pipa. Eu empinava pipa com os pais deles", conta Marcos. "O que estraga é linha chilena, cerol, agora tem linha até da Indonésia. Essas linhas são crime, a gente sabe."

Linha chilena? Cerol? Linha da Indonésia?

Os pipeiros têm uma linguagem própria.

Glossário

  • Aparar - Quando uma pipa corta a outra e, logo depois, enrola a do inimigo na sua linha ainda no céu.
  • Arraia - Uma pipa grande e quadrada. Pode ser empinada sem rabiola.
  • Carretilha - Suporte onde se enrola a linha da pipa.
  • Cortante - É o famoso cerol -uma mistura de cola com cacos de vidro passada na linha para cortar as pipas que estão no céu. A venda e o uso de cerol são proibidos desde 1997 em São Paulo. Mesmo assim, ainda causa muitos acidentes.
  • Desbicar - Movimento em que a pipa dá um mergulho para baixo no ar. É considerado um ensinamento básico para ser pipeiro.
  • Linha chilena - É uma espécie de "cerol moderno". Uma linha cortante fabricada industrialmente e feita da mistura de pó de quartzo e óxido de alumínio. Corta até pensamento.
  • Linha envenenada - Quando a linha está com cerol/cortante.
  • Linha (da) Indonésia - É feita de nylon com pó de diamante e, normalmente, tem várias espessuras diferentes ao longo do fio. Leva o nome do país porque, lá, a pipa também faz parte da cultura e essa linha é frequentemente usada em campeonatos.
  • Linha limpa - Quando a linha está sem nenhum cerol/cortante.
  • "Manda buscar" - É um grito de provocação quando o pipeiro corta e apara o pipa do inimigo.
  • Mandado - Quando "o pipa tá mandado", ele foi cortado com uma linha com cerol ou chilena.
  • Marreco - É o pipeiro que não corta ninguém, só perde a pipa.
  • Peixinho - É uma pipa pequena e quadrada. Como a arraia, pode até ser empinada sem rabiola.
  • Relo - Quando um pipeiro perde seu pipa após ser cortado, levou um relo.
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Todo pipeiro sabe que o ideal é não usar cerol ou outra linha cortante, e brincar em campo aberto, longe de ruas movimentadas e fios elétricos.

A Enel, distribuidora de energia na capital e em mais 24 cidades da região, somou 1.560 incidentes de pipas na rede elétrica entre 16 de março e 30 de junho deste ano, que prejudicaram o fornecimento de luz. Foi um aumento de 205% em relação ao mesmo período de 2019. Além de interromper o serviço, o pipeiro ainda pode sair ferido.

Reportagem e texto: Leonardo Martins
Edição: Luciane Scarazzati
Fotos e vídeos: André Porto
Edição de foto: Lucas Lima
Edição de vídeo: Leonardo Rodrigues

Publicado em 13 de setembro de 2020