Falou, morreu

Ex-milicianos viram testemunhas da Justiça e acabam assassinados de maneira brutal na Baixada

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio

Eles fizeram parte de grupos ligados à maior milícia do país, que se expandiu da zona oeste do Rio à Baixada Fluminense. Mas entraram para a lista negra da "Firma" porque resolveram falar.

A reportagem do UOL teve acesso a vídeos com relatos de dois ex-milicianos assassinados. Em depoimentos à Justiça, eles confessaram participar de crimes como extorsão, organização criminosa e corrupção ativa.

Atormentados pela morte de colegas e perseguidos nas quadrilhas, decidiram revelar, em detalhes, o funcionamento de um grupo infiltrado na polícia e até na política local.

Em território afastado das autoridades, milicianos circulam impunemente com armas de grosso calibre em plena luz do dia, expulsam rivais e criam uma rotina de terror, com casos de esquartejamento de vítimas e ocultação de cadáveres em cemitérios clandestinos.

A "Firma" cria franquias em um modelo empresarial, segundo denúncia do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro). A quadrilha chefiada por Wellington da Silva Braga, o Ecko — na lista dos criminosos mais perigosos do país divulgada no fim do mês pelo Ministério da Justiça — recruta membros de grupos menores e autoriza que eles usem o seu nome. Em troca, exige pagamentos.

Mas milicianos também usaram o nome de Ecko para agir sem pedir autorização.

Ex-miliciano depõe e detalha execuções

Punidos à bala

Dois delatores da milícia e o mesmo fim: mortos a tiros

André Vitor de Souza Corrêa, ex-integrante do grupo e um dos homens que figurou na lista negra da "Firma", depôs em setembro de 2018 na sede do MP-RJ em Itaguaí (RJ), um dos municípios da Baixada mais afastados da capital fluminense.

Segundo ele, Ecko mandou matar dois integrantes da organização por supostamente usarem o nome dele para extorquir dinheiro de moradores em um condomínio do programa federal 'Minha Casa Minha Vida'. Com o auxílio do depoimento, o MP-RJ denunciou 44 milicianos por organização criminosa. Entre eles, o próprio Ecko.

Em fevereiro de 2019, o corpo de André foi encontrado no porta-malas de um carro com marcas de tiro.

Investigado por homicídio, um outro ex-miliciano firmou termo de delação premiada e contou como agia um grupo chefiado por um policial militar da ativa.

Com base nas informações fornecidas por Rodrigo Felisbino Moreno, a Justiça autorizou a quebra do sigilo telefônico de suspeitos de envolvimento com a quadrilha.

Em julho de 2017, Celso Humberto Almeida da Silva, então subtenente da PM-RJ (Polícia Militar do Rio de Janeiro), foi preso, acusado de usar a estrutura do 39º BPM para impedir a aproximação de traficantes em sua área de atuação, em Belford Roxo (RJ). Na época, foram emitidos 27 mandados de prisão contra acusados de integrar a milícia.

Em julho do ano seguinte, horas depois de contar o que sabia em uma audiência no Fórum de Nova Iguaçu (RJ), Rodrigo foi morto a tiros na porta de casa.

O relato do ex-miliciano André Vitor ao MP-RJ indica quem eram os encarregados pelas decisões do grupo.

Danilo Dias Lima, conhecido na maior milícia do país como Tandera, é o responsável direto pela criação das franquias da organização criminosa chefiada por Ecko. Segundo as autoridades, ele é o segundo homem na hierarquia do grupo. E, assim como Ecko, também integra a lista dos criminosos mais perigosos do país, divulgada pelo Ministério da Justiça.

O depoimento de André também revela quem eram os outros chefões do grupo em Itaguaí (RJ).

A decisão de matar dois integrantes da quadrilha que estariam abrindo "franquias" sem a bênção do chefe teria sido do próprio Ecko, em ligação telefônica a Antônio Carlos de Lima, então sargento da PM (Polícia Militar), preso em agosto de 2018.

A ordem foi repassada a outro homem com formação militar: o ex-PM Carlos Eduardo Benevides Gomes, conhecido no grupo como Benevides ou Bené, um dos criminosos mais procurados no Rio de Janeiro.

Ainda de acordo com o depoimento, outros dois milicianos participaram diretamente do crime: Diego Silva Nobrega, o DG, e Ruan de Oliveira Dias, o Trakinas. Eles também foram apontados por André como membros do braço armado do bando. "DG era o homem que matava. Era conhecido como o homem da guerra. O Ruan guardava as armas da quadrilha".

'Ele esperava ser transferido para cadeia sem facção'

O promotor Jorge Luiz Furquim, membro do Gaeco/MP-RJ (Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público do Rio de Janeiro) que registrou o depoimento, disse que André tinha condenação por envolvimento com o tráfico de drogas e era acusado pelo crime de organização criminosa por causa da ligação com a milícia. Mas não denunciou o grupo em troca de liberdade.

A narrativa dele ganhou força porque batia com as informações da investigação. Ele não quis fazer delação premiada. Se ficasse na rua, sabia que poderia ser assassinado, pois estava jurado de morte. No presídio, a milícia poderia pagar alguém para matá-lo. Ele esperava ser transferido para uma cadeia sem facção, para ficar seguro.
Jorge Luiz Furquim, promotor do MP-RJ

As pessoas citadas no depoimento de André fazem parte de uma lista de 44 denunciados pelo Gaeco/MP-RJ, que os acusa de integrarem uma estrutura de poder paralelo armado, com esquema de cobrança de dinheiro por "taxa de segurança".

PMs dão cobertura à milícia, revelou delator

O ex-miliciano viveu os seus últimos dias como um homem marcado para morrer.

Presenciou a execução de dois comparsas em Itaguaí (RJ) e colocou os corpos na caçamba de um carro. De lá, os cadáveres foram carregados para um cemitério clandestino da milícia. O local, aliás, foi descoberto graças à colaboração de André com as autoridades.

"Ele apontou onde era o cemitério clandestino. Lá, foram encontradas seis ossadas. Mas só conseguimos identificar uma das vítimas. Não há registro de desaparecimento, porque as pessoas não registram mais queixa, com medo de morrer", lamenta o promotor Jorge Luiz Furquim.

Foi o capítulo final de sua atuação na milícia, conforme o depoimento. André também revelou a suposta parceria de pessoas ligadas ao grupo com homens fardados, investigada pelo MP-RJ.

No depoimento, citou, por nomes ou apelidos, quem eram os policiais na folha de pagamento do crime.

Todo o final de semana, eles ganhavam dinheiro. Apareciam fardados, na viatura. Quando viam a gente, viravam a câmera para o lado, paravam mais à frente e desciam para apertar a nossa mão. Se eles apreendessem arma do tráfico, nos vendiam. Se pegassem algum traficante, também nos vendiam [para serem executados]. Curtiam festa, churrasco com a gente.
André Vitor de Souza, ex-miliciano assassinado

O ex-miliciano também explicou como funcionava a suposta cooperação dos agentes de segurança nas ações promovidas pela milícia.

Ele revelou, ainda, uma suposta cooperação de policiais militares em guerras travadas entre a milícia e traficantes rivais. "Eles foram com as viaturas, deram cobertura. Entraram, pra espantar os caras. Depois, a milícia entrou e dominou".

Sentenciado

Assombrado pelas mortes dos comparsas, André disse ter tido pesadelos. Resolveu contar o que viu para a namorada, como desabafo. Mas ela acabou comentando a história com uma amiga.

Os milicianos descobriram e se preparavam para matar André, que fugiu após ser alertado por outro integrante do grupo.

Enquanto se refugiava em uma região afastada, acabou sendo preso em flagrante, por porte ilegal de arma. Não se sentiu protegido da organização criminosa nem mesmo quando estava atrás das grades. Ouviu a sua "sentença" da boca de um miliciano.

Ele foi agredido por outros detentos. Disse que foi ameaçado quando se recuperava dos ferimentos no hospital da cadeia. Um miliciano disse que iria matá-lo
Jorge Luiz Furquim, promotor do MP-RJ

Sem alternativas, André decidiu contar o que sabia às autoridades.

Em janeiro de 2019, a prisão preventiva foi anulada pela Justiça. André, então, precisou enfrentar o que mais temia: a volta às ruas.

No fim daquele mês, prestou outro depoimento em uma sala especial no Rio. No dia 28 de fevereiro, um mês depois do novo relato, foi encontrado morto no porta-malas de um carro roubado estacionado em uma rua de Itaguaí (RJ), com marcas de tiro pelo corpo. O caso é investigado pela DHBF (Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense).

A polícia ainda não identificou suspeitos de envolvimento no assassinato.

Executado na porta de casa

O acordo de delação premiada feito pelo ex-miliciano Rodrigo Felisbino Moreno ajudou o MP-RJ a denunciar a atuação da maior milícia de Belford Roxo (RJ). Um ano depois, ele detalhou tudo o que viveu, em audiência no Fórum de Nova Iguaçu (RJ).

Quando eu era criança, eles [milicianos] atuavam como grupo de extermínio. Depois, vieram com esse negócio de milícia. Aí, cobravam taxas de moradores e comerciantes. Toda vez que alguém começava a vender drogas, o Celso [Celso Humberto, então PM da ativa e chefe da milícia] mandava os moleques lá pra acabar com o tráfico. Ele fazia contato com o batalhão. Os caras iam lá e matavam
Rodrigo Felisbino Moreno, ex-miliciano assassinado

Celso Humberto, citado por Rodrigo na audiência, foi preso em julho de 2017, com o auxílio de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça que revelaram como ele comandava um esquema de extorsão a moradores e comerciantes da região.

Em seu depoimento, Rodrigo disse que fazia parte do grupo.

"Eu andava junto com eles [milicianos]. Todos sempre armados. Quando iam no comércio cobrar, eu ia com eles. Mas faziam muita covardia. Depois de um tempo, matavam os caras que andavam com eles. Mataram dois amigos meus. Enterraram os corpos e nunca mais acharam. Aí, dois caras de touca ninja tentaram me matar. Me balearam. Depois disso, me afastei".

Apesar de denunciar um dos grupos mais violentos do Rio, Rodrigo não demonstrou preocupação. "Ele disse: 'Não, tá tudo bem. Já me resolvi com os caras'", relembra a promotora Elisa Ramos Pittaro Neves, responsável pela denúncia.

Horas depois de depor, Rodrigo foi morto a tiros na porta de casa.

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