Vidas secas

Banho de caneca, descarga com balde e louça acumulada: a vida de quem sofre com a falta de água em SP

Wanderley Preite Sobrinho Do UOL, em São Paulo Marcelo Justo/UOL

As reclamações de falta d'água na cidade de São Paulo não param de surgir em diversas regiões da cidade duas semanas depois de a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) aumentar o período em que ocorre redução da pressão da água fornecida à capital em razão da seca que atinge o estado.

Enquanto a falta de água incomoda nos bairros de classe média, na periferia o problema é mais grave: o banho é de caneca, os banheiros cheiram mal e a louça acumula sobre a pia.

Moradora o Jardim Promissão, em Santo Amaro, zona sul, a analista de cuidados em saúde, Elaine Andressa Veiga, 41, conta que desde o dia 23 de setembro a água é cortada ou tem seu volume diminuído a partir das 20h, uma hora antes do prometido. Como seu chuveiro não está ligado à caixa d'água, Elaine precisa improvisar o banho quando chega do trabalho.

"Simplesmente tenho que tomar banho no tanque com uma toalha úmida e rezar para no outro dia, a partir das 6 da manhã, quando o serviço é normalizado, eu consiga tomar um banho decente", diz ela, que cansou de reclamar na Sabesp.

Todos os canais de relacionamento estão só com atendimento eletrônico; não consegui falar com nenhum representante."
Elaine Andressa Veiga, analista de cuidados em saúde

Questionada, a Sabesp não respondeu sobre a dificuldade dos consumidores de conversar com seus atendentes. Ela afirma que a redução na pressão noturna ocorre entre 21h e 5h, uma "prática recomendada internacionalmente" para evitar perdas de água por vazamentos e rompimentos.

Imóveis com caixa-d'água com reservação para ao menos 24 horas, como determina o decreto estadual 12.342/78, não sentem os efeitos de manutenções ou da gestão da pressão. Torneiras e outros equipamentos hidráulicos devem estar conectados às caixas-d'água."

Sabesp, em nota

Wanderley Preite Sobrinho/UOL

Um prédio em pé de guerra

A falta de água também afeta a região central, principalmente os prédios antigos, com muitos moradores. É o caso do Condomínio Mara, na Santa Ifigênia, um antigo hotel transformado em prédio residencial na década de 1960 que está em pé de guerra desde que a água começou a faltar.

É o que conta a subsíndica do prédio, a advogada Lourdes Aparecida Zanardo, 55, que chegou a ser acusada por moradores de desligar propositalmente o fornecimento de água.

O problema, conta, é que desde que a Sabesp reduziu a pressão, os 115 mil litros de capacidade das duas caixas d'água do edifício, construído em 1941, são insuficientes para abastecer os 220 apartamentos do condomínio com seus mais de 800 moradores.

"Com a pressão baixa, a gente desliga os registros de distribuição porque se não a caixa não enche", conta. "São 12 horas para encher e quatro horas para acabar."

Irritado, o aposentado José Protoleo, 80, ameaça processar o condomínio. Ele recebeu o UOL da porta do apartamento. Estava com pressa porque precisava cuidar da esposa de 78 anos, acamada.

A situação é péssima. Preciso cuidar da minha esposa, mas nem água eu tenho. Mandaram eu comprar! Pago condomínio, é meu direito. Se precisar, eu processo."

José Protoleo, aposentado

Os dias mais difíceis no condomínio foram na quinta e sexta-feira da última semana de setembro, quando a água da rua não chegou, afirmam os moradores. A cozinheira Ana Maria Gomes da Silva, 47, precisou comprar um galão de 20 litros na quinta-feira (30) para preparar em casa as 20 marmitas encomendadas para aquele dia.

"Agora economizo o que posso. Ensaboo toda a louça antes de lavar e torço para ter água de manhã, quando tomo banho", diz ela enquanto caminha pela casa rodeada por baldes, panelas e garrafas com água.

Diante das reclamações e do "silêncio da Sabesp" aos contatos, a subsíndica decidiu arregaçar as mangas: instalou uma caixa d'água de 1000 litros no subsolo e pagou R$ 365 em uma bomba para retirar a água turva de um antigo poço desativado.

"Os moradores descem, enchem os baldes e levam para dar descarga e limpar a casa, enquanto os funcionários usam na limpeza das áreas comuns", diz dona Lourdes, que já avisou que passará em todos os apartamentos para regular a válvula das descargas e, assim, evitar desperdício.

Sobre o prédio, a Sabesp não comentou a baixa pressão da água durante o dia. Afirmou que no dia 29 de setembro "foi realizada manutenção emergencial em uma rede de água de grande porte na área da avenida Ipiranga, que pode ter tido impacto no abastecimento da região".

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

Água só de madrugada

Se para quem vive em regiões centralizadas a falta de água atrapalha, na periferia o problema é ainda maior. No bairro Pedra Branca, em Cidade Tiradentes, os moradores afirmam que a pressão da água é baixa o dia todo.

Nas últimas semanas, a dona de casa Maria José Reinaldo (foto), 65, precisou se adaptar. Se quiser a casa limpa e se dar ao luxo de lavar os cabelos no banho, ela precisa acordar cedo e fazer tudo antes das 10h30, quando a pressão diminui tanto que a água não chega ao chuveiro.

"É um fio de água na torneira", conta ela enquanto tenta lavar a louça do café. "Fica assim até as 20h. A água volta por uma hora e depois falta de novo."

Perto dali, a dona de casa Sonia Regina Souza dos Santos, 47, convive com a baixa pressão e boletos da Sabesp que passam dos R$ 300. Mãe de 12 filhos, nove morando com ela e o marido, dona Sonia dá banho nas crianças, limpa a casa e lava a roupa enquanto tem água.

"Junto toda a louça e lavo de uma vez", diz ela, enquanto anda pelo quintal com varais cheios de roupa. "A água chega aos poucos, depois das 17h."

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

Casa suja e banho de caneca

Se falta de água no bairro, na comunidade Pedra Branca 2, ali perto, o problema é grave.

Dono de um salão de beleza, o barbeiro Guilherme Bernardo de Lima, 27, diz que água da rua agora só chega depois das 23h, o que afugenta os clientes. Quando falta água durante um atendimento, ele corre na casa do pai, enche um balde e volta para terminar o serviço.

"Às vezes o cliente vai embora antes, diz que nem precisa lavar", lamenta. Pai de uma criança de dois meses, ele diz que o problema maior é esperar até o fim da noite para dar banho na bebê. "Sempre tinha água à tarde, agora nem isso."

Vizinho de Lima, o feirante Wellington Ribeiro Pontes, 44, resolve dois problemas de uma só vez: para economizar gás, esquenta um pouco de água em uma chaleira elétrica para tomar banho de caneca às 4h da manhã, quando vai trabalhar.

"Como não tem água e o gás está caro, a gente se vira", diz Pontes.

Bairro Pedra Branca, em Cidade Tiradentes: Informamos que os equipamentos que atendem o abastecimento da região estão funcionando normalmente

Sabesp, em nota

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

Sem água em ocupação

O drama é ainda maior entre os 122 sem-teto que há duas semanas ocupam um condomínio de prédios da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), também em Cidade Tiradentes, cujas obras estão há um ano parada.

Um dos líderes da ocupação, a feirante Daniele Santos (ao centro na foto coletiva), 36, conta que no dia 26 de setembro a Polícia Militar cortou tanto o fio que levava energia elétrica aos apartamentos em construção quanto o cano que ligava a água da rua ao condomínio, o que a PM nega.

"Ficou jorrando por uma semana", diz ela. "Só parou depois que eles usaram pedras para entupir a saída da água."

Vigiados dia e noite por uma viatura da polícia na frente e nos fundos da ocupação, como testemunhou o UOL, os moradores precisam recorrer à comunidade Pedra Branca 2, que decidiu ajudar mesmo com água apenas de madrugada.

Marcelo Justo/UOL

Há 35 anos na comunidade, a líder comunitária Veronice dos Santos, 50, conseguiu mobilizar seus vizinhos para ajudar os sem-teto.

"A gente não tem muito, mas se junta, consegue a água que pode e leva na ocupação", diz dona Nice, conhecida pelas festas que prepara para as crianças no Doze de Outubro e Natal.

É com a água armazenada em uma caixa de 3.000 litros (ao lado) que os moradores bebem água, limpam os banheiros e cozinham no fogão à lenha que improvisaram com tijolos.

"Muitos tomam banho de caneca", diz Daniele, que relata o frio na ocupação em razão do roubo das janelas por criminosos meses atrás. Nos dias mais frios, alguns correm para a comunidade, onde os moradores oferecem banho quente, disponível pelo menos de madrugada, quando a água finalmente ganha pressão.

Em nota, a PM afirma que "as afirmações são falsas", que seguiu "os protocolos de Direitos Humanos" e buscou negociar a saída dos moradores, mas não obteve sucesso. "Desde então, viaturas do 28º BPM/M realizam o patrulhamento pela área", diz.

A Sabesp disse ter sido informada pela polícia sobre um vazamento de água na obra e "fechou o ramal que estava sendo utilizado de forma irregular".

Já a CDHU diz que as obras estavam paradas desde que, em abril, "o empreendimento — com 85% das obras concluídas — foi invadido e vandalizado, com depredação e vários materiais já instalados suprimidos do local", confirmando o relato de Daniele.

A empresa estadual acusa os atuais ocupantes de "manterem os vigilantes como reféns por algumas horas" no dia da ocupação, o que os moradores negam.

"Isso não ocorreu", diz Daniele. "Os seguranças trabalharam no dia em que a gente chegou. Um dos seguranças deixou um carro cinza no lado de dentro do condomínio e, a pedido dos policiais, foi até a delegacia fazer um B.O (boletim de ocorrência). Depois ele voltou e pegou o carro. No outro dia, trocou o plantão, e trabalharam normalmente."

A CDHU diz ainda que a Justiça concedeu liminar para a reintegração de posse, embora a advogada Melissa Carla Silva, que auxilia os moradores, afirme que, "se existe alguma liminar, ninguém foi oficiado até o momento".

Para enfrentar a seca que atinge o estado, a Sabesp diz ter iniciado na região metropolitana a "integração do sistema de abastecimento (com transferências de água rotineiras entre regiões), ampliação da infraestrutura, campanhas para o consumo consciente e ampliação da gestão da pressão noturna".

As informações sobre os bairros atingidos pela pressão reduzida na água e os horários estão disponíveis neste site.

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

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