Nação in Vitro

Hungria estatiza clínicas de fertilização para aumentar população local e preencher espaços de imigrantes

Jamil Chade colaboração para o UOL, em Budapeste (Hungria) Lennart Nilsson/Reuters

Quem desembarca em Budapeste logo se depara no aeroporto com enormes cartazes em diversas línguas: "Hungria, amiga da família". Neles, um pai, uma mãe e três crianças.

Mais que uma promoção de turismo ou um convite às férias com crianças, a publicidade é uma declaração política da extrema-direita que colocou, como objetivo, evitar a queda de natalidade do país. O mantra é direto: a nação precisa de "procriação, não imigração".

Para isso, o Estado húngaro pôs em andamento um plano: comprou as maiores clínicas de fertilização do país, e pretende assim facilitar o tratamento aos casais. Na prática, é como uma estatização da fertilização in vitro.

Hoje, a taxa de natalidade é ainda de 1,48 criança por cada mulher húngara, metade do que era em 1950. Sem mudança, a atual população de 9,8 milhões de pessoas cairá para 8,3 milhões em 2050.

Enfrentando essa perspectiva, o governo ultranacionalista europeu deixou claro que não aceitará que essa falta de mão de obra seja preenchida por imigrantes.

Enquanto erguia muros, atacava refugiados sírios e denunciava uma suposta operação do Islã para "invadir" a Europa, o governo de Viktor Orban decidiu proliferar medidas de incentivos para que as famílias húngaras tivessem pelo menos três filhos.

Subsídios foram criados, assim como redução de impostos para a compra de carros e de casa. Programas especiais foram estabelecidos para famílias que optem por ter mais de três filhos, e a mulher com mais de quatro filhos está isenta de todos os impostos para o resto de sua vida.

A resposta de Budapeste para a questão demográfica ecoa uma das teorias da extrema-direita europeia. Nela, o argumento é de que existe um risco real de que a população branca e cristã da Europa seja, nas próximas décadas, substituída por pessoas não-europeias, não-brancas e não-cristãs.

ATTILA KISBENEDEK / AFP ATTILA KISBENEDEK / AFP

"Existem forças políticas na Europa que querem substituir a população por motivos ideológicos", alertou Orban, em uma conferência sobre demografia, em 2019. O mesmo evento contou com a presença da ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, que defendeu uma aliança de governos que tenham uma postura "pró-família".

Budapeste é apenas a ponta de lança de um movimento que encontrou no filósofo francês Renaud Camus seu ideólogo. Num livro publicado em 2011, Grand Remplacement ("Grande Substituição", em tradução livre), ele usa termos relacionados à Segunda Guerra Mundial e chama de "ocupantes" todos aqueles que não tem descendência europeia e que estejam no continente. Para ele, há ainda uma elite europeia que estaria facilitando essa substituição de populações e deveria ser chamada de "colaboracionistas".

Em seus textos e entrevistas, ele convoca os europeus a uma "revolta anticolonial" e à "liberação do território".

Sua tese ganhou adeptos, principalmente entre supremacistas brancos da Europa, mas também em outros continentes. Brenton Harrison Tarrant, o autor do ataque terrorista na Nova Zelândia contra uma mesquita em 2019, justificou a morte de 51 de muçulmanos com um panfleto que deu o nome de "Grand Remplacement", numa referência direta ao livro de Camus.

Rapidamente, o filósofo condenou a violência. Mas reafirmou que uma "contrarrevolta" precisaria ocorrer frente ao aumento da população não-branca.

No mesmo ano, ele lançaria uma lista de candidatos para concorrer às eleições para o Parlamento Europeu. Mas acabou abandonando depois que a segunda pessoa na lista, Fiorina Lignier, apareceu em uma foto com uma suástica. Ela justificou que foi uma "brincadeira da juventude".

Marko Djurica/Reuters Marko Djurica/Reuters

Na Hungria, porém, evitar a troca populacional ganhou forma de estratégia nacional.

Ainda que os casamentos tenham aumentado em 24% em 2019, a taxa de natalidade continua a cair. Nos dez primeiros meses do ano passado, o número de nascimentos foi reduzido em 1,6%, em comparação aos dados de 2018. Em outubro, por exemplo, foram apenas 7,7 mil crianças registradas, cem a menos que no mesmo mês de 2018.

Para acelerar o plano, a opção escolhida foi a de nacionalizar as seis maiores clínicas de fertilização e reprodução in vitro do país. Até 2022, a meta é de que 4.000 novos húngaros surjam dessa operação política. O cálculo é feito diante da constatação que cerca de 150 mil casais na Hungria hoje não conseguem ter filhos. Agora, controladas pelo Estado, essas clínicas darão tratamentos gratuitos.

Uma parcela do governo acredita que, se todas as famílias que queiram ter filhos possam ter acesso ao tratamento, a questão do encolhimento da nação estaria resolvido.

Inicialmente, um programa nacional de reprodução humana iria se concentrar em atacar a infertilidade dos homens. Mas Budapeste optou por ampliar a estratégia. A partir do dia 1 de janeiro de 2020, remédios e exames usados em tratamentos de fertilidade passaram a ser distribuídos gratuitamente.

Um mês depois, teve início o oferecimento de serviços gratuitos para a fertilização in vitro e Orban designou a iniciativa como uma sendo de "importância estratégica nacional".

O dinheiro investido, segundo o governo, é justificado. Afinal, a nação depende de sua população. "Ter crianças é um assunto público, não privado", declarou László Kövér, presidente do Parlamento e aliado de Orban.

A nacionalização das clínicas, porém, aprofundou o debate no país sobre o direito que o governo poderia ter em entrar na vida privada de casais e no próprio papel da mulher.

Yves Herman/Reuters Yves Herman/Reuters

A morte é o termo usado pelo governo de Orban para atacar aqueles que defendem o "direito de escolha" durante a gravidez. Em uma recente entrevista ao site Breitbart, a secretária para a Família, Katalin Novák, chamou o movimento que defende o aborto, "pró-escolha", como sendo "pró-morte".

Assim que assumiu o governo, Orban tentou mudar a Constituição para criminalizar abortos. Mas não conseguiu. Na Hungria, o aborto é regulado por uma lei de 1992 que estabelece critérios e condições.

Na prática, uma mulher pode conseguir realizar um aborto até a 12ª semana de gravidez, se passar por alguns passos.

Mas as campanhas do governo têm conseguido reduzir os números e as autoridades avaliaram medidas para dar recursos a hospitais que se recusem a praticar abortos. Em 2014, o país contabilizou 32 mil abortos oficiais, metade do que ocorria no início do século e o menor desde 1954.

Se parte do governo insiste que as leis de aborto não são suficientemente duras e que isso estaria contribuindo para a queda da população, os críticos alertam que existem outros fatores que pesariam mais. Um deles é a emigração de 1 milhão de húngaros para fora do país em apenas dez anos, segundo a OCDE.

O êxodo acabou levando a uma falta de mão de obra. Mas o governo se recusa a preencher esse espaço com estrangeiros.

Parte da aposta, agora, é com a fertilização in vitro. "Compramos todas as empresas que estão operando nesse mercado", disse Orban. Na prática, Budapeste criou um monopólio no setor e, na lei, qualquer empresa privada que queira entrar no mercado terá de conseguir uma autorização do Estado para operar.

Mas o líder da extrema-direita deixou claro que não recomenda que investidores se aventurem em seu terreno. "Não haverá nenhuma permissão", concluiu.

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