Teto sem gente

Construtoras e imobiliárias ferem lei e concentram imóveis ociosos no centro de SP

Wellington Ramalhoso Do UOL, em São Paulo Simon Plestenjak/UOL

Um mapa dos imóveis sem uso

Um trabalho de cinco anos da Prefeitura de São Paulo revela detalhes dos imóveis considerados ociosos e em desacordo com as regras da função social da propriedade na capital paulista. Levantamento feito pelo UOL com base em dados públicos mostra quem seriam os donos destes bens na região central, considerada prioritária.

Prevista na Constituição, a função social da propriedade foi regulamentada na cidade em 2014, com a aprovação do Plano Diretor. Desde então, a prefeitura notificou 1.425 imóveis considerados ociosos (veja mais abaixo os critérios para se definir a ociosidade de uma propriedade) e passou a cobrar um IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) mais alto de 392 deles.

O trabalho da prefeitura teve início no centro por ser uma área dotada de infraestrutura e com boa oferta de empregos. Ou seja, ela é propícia para abrigar mais moradores. Assim, a Sé lidera com folga a lista das subprefeituras com imóveis notificados, com 819 propriedades consideradas ociosas.

Para identificar os donos destes imóveis, a reportagem cruzou dados públicos da plataforma GeoSampa e da base do IPTU - esta divulgada em 2016 --, ambas da prefeitura. No caso de propriedades de pessoas jurídicas, o ramo de atividade das empresas foi verificado na Junta Comercial de São Paulo.

De acordo com as informações disponíveis, as construtoras e incorporadoras, as imobiliárias e pessoas físicas formam a maioria -- mais de 70% -- dos proprietários do centro notificados pela administração por causa do descumprimento da lei (veja abaixo mais detalhes do cruzamento de dados).

Governo, bancos e até igreja têm propriedades ociosas

Com base nos dados, é possível verificar que 15 construtoras e incorporadoras constavam em 2016 como proprietárias de ao menos 280 imóveis que foram notificados por causa da ociosidade nos oito distritos da subprefeitura da Sé. Entre as empresas do setor imobiliário, 21 eram donas de pelo menos 50 imóveis.

Entre as pessoas físicas, três homens se destacam na lista. Eles apareciam como responsáveis por 37 propriedades ociosas na região.

A professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura de Urbanismo da Universidade de São Paulo) Erminia Maricato, que orienta uma pesquisa de doutorado sobre os imóveis ociosos no centro, afirma que o acúmulo de propriedades é um indício de que os donos tentam fazer especulação imobiliária, como é conhecida a prática de reter bens até que eles se valorizem, muitas vezes em função de algum investimento, inclusive público, feito nas imediações (leia mais abaixo a entrevista com a professora).

A relação de donos de imóveis ociosos na região central também inclui uma série de empresas e instituições pulverizadas em diferentes atividades e com quantidades menores. São seguradoras, bancos privados, indústrias, além de instituições de saúde, religiosas e uma universidade.

Constam como proprietários até mesmo o governo do estado de São Paulo; o Metrô, vinculado ao governo estadual; a Caixa, esta ligada ao governo federal; e a Igreja Católica.

O governo do estado, que tinha duas propriedades, disse que já vendeu uma delas. A outra é fruto de uma desapropriação para a construção da linha 6-laranja do Metrô, mas a obra está parada. O Metrô, que tem cinco propriedades em seu nome, diz que não foi notificado pela prefeitura. Afirma ainda que dois imóveis estão em fase de desapropriação e os demais já estão regularizados. "Toda área passa por avaliação imobiliária para um futuro processo de comercialização. O local é utilizado de forma temporária como estacionamento para viaturas policiais", diz a companhia por meio de nota.

A Caixa afirmou que vendeu quatro das seis propriedades que tinha em seu nome. Em relação aos outros dois imóveis, a instituição alega que um é usado como estacionamento de agência e o outro "está em fase de acertos documentais para possibilitar a sua oferta de venda por meio de licitação". O banco também informou que está em tratativas para instalar uma unidade em um imóvel ocioso situado no centro pertencente a um fundo imobiliário. Procurada por telefone e email, a Igreja Católica não se manifestou sobre os quatro imóveis que constam em seu nome.

Garagens representam ao menos um terço do total

Dos 819 imóveis ociosos notificados na subprefeitura da Sé, ao menos 272 são classificados como garagens, o que representa um terço. Há casos de edíficios-garagem com dezenas de vagas sendo que cada uma representa um registro imobiliário no cadastro municipal.

A arquiteta e urbanista Ana Gabriela Akaishi, que desenvolve na FAU-USP, sob a orientação da professora Erminia Maricato, uma tese de doutorado a respeito das propriedades ociosas no centro, chama a atenção para outra característica que pode ser observada na região central: há prédios em que somente o térreo possui algum tipo de uso -- em muitos casos, comércios ou estacionamentos rotativos --, enquanto os demais andares estão vazios.

Entre os 576 imóveis classificados como não utilizados há casos de edifícios desocupados. Ana Gabriela ressalta, no entanto, que esta lista também inclui um grande número de apartamentos, escritórios, garagens e lojas situados em prédios e com registros imobiliários individuais.

As notificações têm produzido efeitos. De acordo com a prefeitura, 139 proprietários da região deram uso ou edificaram a propriedade depois de serem notificados.

Número de imóveis vazios é maior

A identificação de imóveis ociosos pode estar longe do fim em São Paulo. A própria prefeitura tem uma relação com 104 imóveis considerados passíveis de notificação e outros 323 estão em uma lista de espera para vistoria.

Apesar de o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ter apontado uma forte redução do número de imóveis vazios na capital paulista, especialmente no centro, entre 2000 e 2010, os números destas "sobras de trabalho" da prefeitura podem ser só a ponta do iceberg.

No Censo de 2010, os pesquisadores do IBGE contabilizaram quase 20 mil propriedades fechadas somente na área da subprefeitura da Sé. Na cidade toda, eram 293 mil imóveis vazios.

Ao mesmo tempo, a cidade tem um déficit de cerca de 470 mil habitações. Reduzir a quantidade de imóveis ociosos seria, portanto, um elemento para ajudar a diminuir o déficit habitacional, mas estaria longe de eliminá-lo. Outras medidas teriam de ser tomadas até porque parte das propriedades ociosas não é adequada para servir de moradia.

Simon Plestenjak

Grandes proprietários fazem especulação imobiliária, afirma ex-secretária

Para a professora Erminia Maricato, o projeto anunciado pela Prefeitura de São Paulo de criar o parque Minhocão - por ora, barrado pela Justiça -- tem potencial para gerar especulação imobiliária no centro. "Você tem um aumento da especulação quando aumenta o investimento".

Ou seja, proprietários com quantidades maiores de imóveis poderiam estar à espera da valorização dos bens. De acordo o índice FipeZAP de maio, o preço médio do m² na área da subprefeitura da Sé está abaixo da média da cidade e muito aquém dos bairros mais valorizados. O valor é de R$ 8.092 ante R$ 8.914 na média paulistana. Em Cidade Jardim, bairro mais caro, o preço chega a R$ 25.181.

Ex-secretária-executiva do Ministério das Cidades (entre 2003 e 2005) e ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano na Prefeitura de São Paulo (entre 1989 e 1992), Erminia defende a aplicação de outros instrumentos para combater o acúmulo de imóveis ociosos e a especulação imobiliária.

UOL - Que avaliação a sra. faz da aplicação de medidas para o cumprimento da função social da propriedade em São Paulo?
Erminia Maricato - Isso é um começo da aplicação. Temos uma legislação urbanística muito avançada no Brasil, mas a gente não consegue aplicar [tanto] por causa do poder. O poder político no Brasil está ligado à propriedade da terra e de imóveis. A terra, especialmente a terra urbanizada, é um nó na sociedade brasileira. Ela regula as relações sociais.

A sanção [da lei] é leve. Você tem que por [o imóvel] no mercado. Se a gente conseguisse aplicar [este instrumento mais vezes] significaria uma nova era, uma nova correlação de forças. Mas não poderia ficar só nesse instrumento. Deveria ter outras medidas: efetivar as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) e trazer o IPTU progressivo para o segundo e terceiro imóveis [de um mesmo dono]. Tem que fazer uma discussão sobre o uso e o controle da ocupação do solo.

Por que é importante notificar os imóveis ociosos do centro?
Tem uma pressão de ocupação nas áreas de proteção ambiental. Isso não é firula, água é fundamental para a vida humana, é uma questão de segurança para essa metrópole. O mais interessante seria que a metrópole crescesse para dentro, e não para essas periferias que precisam ser protegidas.

O centro tem várias qualidades, uma rede de instituições, de equipamentos sociais, escolas, hospitais, museus, universidades, além da qualidade única em termos de mobilidade na cidade. Houve um investimento bárbaro, historicamente falando, no centro de São Paulo. Ele tem uma infraestrutura construída com dinheiro de toda a coletividade. Foi dinheiro público.

É possível dizer que parte dos donos faz especulação imobiliária?
Os grandes proprietários fazem [especulação imobiliária], sem dúvida. Essa coisa de retenção e investimento em imóveis parece ser uma aposta nacional. É muito forte no Brasil e em São Paulo.

Como a moradia é uma mercadoria especial, se você não controlar e não regular o uso do solo, o todo que se investe vai parar no preço da terra e dos imóveis.

Por que não ter instrumentos mais eficientes de captura da valorização imobiliária? Isso não é nenhuma visão socialista. Uma fundação norte-americana, o Lincoln Institute of Land Policy, dá cursos sobre como capturar as mais-valias produzidas pela coletividade. Tem possibilidades de negociar. Tem patrimônio que poderia gerar muita moradia.

Simon Plestenjak Simon Plestenjak

Combater ociosidade ataca lógica insustentável, diz pesquisadora

Na pesquisa sobre imóveis ociosos, Ana Gabriela Akaishi estuda uma área mais restrita do centro de São Paulo. Trata-se do perímetro da Operação Urbana Centro, aprovada em 1997 para receber um programa de melhorias.

Ana Gabriela vem de uma experiência direta com o tema. Ela trabalhou por dois anos como técnica do Departamento de Controle da Função Social da Propriedade, vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Urbano da prefeitura.

Na área objeto de sua pesquisa, as pessoas físicas se sobressaem como proprietárias de imóveis ociosos.

UOL - Como é feito o trabalho de identificação dos imóveis ociosos?
Ana Gabriela Akaishi - O trabalho até a notificação dos proprietários é bastante complexo e minucioso. A prefeitura trabalha com algumas bases de dados disponíveis e com estudos e pesquisas acadêmicas que identificaram prédios vazios no centro. A secretaria de Finanças fornece a listagem de imóveis que têm construções abaixo do mínimo definido pelo Plano Diretor. A prefeitura também tem acesso à base de dados da Eletropaulo, que fornece informações dos imóveis que estão com consumo mínimo ou desligado de energia por mais de um ano.

Com essas informações, os técnicos da prefeitura vão até o local do imóvel conferir se ele está mesmo vazio ou sem construções, tocam a campainha, falam com vizinhos e se certificam se o imóvel está de fato ocioso.

Que mudanças este trabalho da prefeitura pode provocar na cidade?
O maior objetivo é adensar as áreas mais consolidadas da cidade, aquelas que detêm infraestrutura de transportes, locais de trabalho e os serviços. Além disso pode-se prever uma redução no preço da terra com a aplicação ampla dos instrumentos. Em ultima análise, ela pode trazer uma maior democratização do acesso à terra em áreas bem localizadas.

A região central de São Paulo é uma área que possui infraestrutura, empregos, linhas de metrô, ônibus, mas é onde vemos também inúmeros edifícios e terrenos vazios ou subaproveitados, enquanto a maior parte da população mora nas periferias, em áreas de proteção de mananciais e tem de se deslocar por horas até seu local de trabalho. Combater a ociosidade de imóveis, sobretudo na região central, é importantíssimo para reverter essa lógica nada sustentável.

Com base nos dados que a sra. levantou até o momento na pesquisa, o que é possível dizer sobre os donos de imóveis ociosos no miolo de São Paulo?
A maior parte dos proprietários de imóveis ociosos do centro são pessoas que têm imóveis em nome próprio (pessoas físicas). Esses proprietários estão ligados principalmente a empresas do ramo comercial ou industrial, que representam um grupo característico, antigo e tradicional dessa área da cidade. Há proprietários que são espólios, com problemas de inventário. Entre as empresas, têm grande presença as imobiliárias, que administram imóveis, trabalham com compra, venda e locação. As instituições religiosas possuem também edifícios e terrenos vazios, por exemplo, no entorno da praça da Sé.

Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

Saiba o que é imóvel ocioso

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    Por que um proprietário de imóvel ocioso pode ser notificado?

    Porque a Constituição de 1988 estabelece a função da social da propriedade. Isto significa que todo imóvel deve ser usado em prol dos interesses da sociedade, e não apenas dos proprietários.

  • 2

    Que imóveis podem ser notificados em São Paulo?

    Os não edificados, os subutilizados e os não utilizados. São considerados não edificados aqueles com área superior a 500m² sem nenhuma edificação, os terrenos com área inferior a 500m² resultantes de desmembramento aprovado depois do Plano Diretor de 2014 e os terrenos contíguos de um mesmo proprietário que, somados, tenham área superior a 500 m². Os subutilizados são aqueles com área superior a 500 m², com coeficiente de aproveitamento inferior ao mínimo definido na área em que está situado. Os não utilizados são os que, embora possuam a edificação mínima exigida, têm, no mínimo, 60% de sua área construída desocupada por mais de um ano.

  • 3

    O que acontece depois da notificação?

    Os proprietários de imóveis não edificados ou subutilizados têm o prazo de um ano para apresentar um projeto de parcelamento ou de edificação do terreno. As obras deverão ser iniciadas em até dois anos contados a partir da expedição do alvará e concluídas dentro de cinco anos. Os proprietários de imóveis não utilizados têm um ano para dar uso ao imóvel.

  • 4

    E se os prazos não forem cumpridos?

    É aplicado o IPTU Progressivo no Tempo, ou seja o imposto será aumentado por cinco anos até o limite máximo de 15%. Depois do período de cinco anos, o imóvel pode ser desapropriado.

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