O que os olhos veem e sentem

Seis negros relatam que andar por São Paulo é caminhar sob olhares de desconfiança, medo e até irmandade

Guilherme Soares Dias Colaboração para o UOL, em São Paulo André Lucas/UOL

Como é, para você, andar pelas ruas? Que tipo de olhares e comentários você ouve?

É evidente que as respostas para essa pergunta serão sempre pessoais, mas há um denominador comum que influencia essas experiências: a cor da sua pele.

Se você é branco, provavelmente não terá vivenciado os relatos que ouvimos de diversas pessoas em São Paulo.

A reportagem conversou com um homem hétero, uma mulher lésbica, um homem gay, uma pessoa não-binária, uma mulher e um homem trans contando sobre suas experiências sobre ser negro em um país em que os brancos são 70% entre os mais ricos, e os negros, 75% entre os mais pobres.

As histórias vão desde olhares desconfiados, de objetificação, de hiperssexualização até o sentimento de irmandade com outras pessoas negras —cada vez mais crescente— que gera sorrisos, cumprimentos entre desconhecidos e até amizades.

Heitor Salatiel/Colaboração para o UOL

"Na quebrada, meu corpo causa menos medo do que no Centro"

Rodrigo Portela, 31, videomaker, homem, negro, cis, hétero

"Sou de São Mateus, na zona leste de São Paulo. Quando eu estou na minha quebrada, sou um corpo negro que não amedronta tanto as pessoas quanto no centro, onde pedestres começam a atravessar a rua, seguram as bolsas, guardam o celular.

Dentro das várias possibilidades, é preciso que você entenda quem é você e que todos os locais pertencem a você. É ser uma prova a cada minuto que você existe, que você resiste e que você potencializa os outros. Esse medo que as pessoas acabam tendo desse corpo negro, pelas pessoas não negras, não deveriam te atingir. Eu não gasto minha energia com isso.

Uso dreads, tatuagens e acabo virando ponto de referência: 'ah, tá perto do negão de dread'

Também sou visto como maconheiro, malandro. Há estereótipos em relação a isso e eles são negativos.

Mas também tem um movimento de irmandade: ao ver outro preto na rua, você olha, dá um sorriso, balança com a cabeça. É um reconhecimento de pessoas que estão se achando e viram outros iguais a ele. Cumprimento estranhos na rua, por conta disso, principalmente no metrô. E, quando senta para conversar, vira melhor amigo de infância depois de cinco minutos, pois temos sempre muito em comum.

Na rua, tem muita gente que é família. Chama de irmão não de forma aleatória, mas porque há essa vontade de que aquela pessoa esteja bem também."

André Lucas/UOL André Lucas/UOL

"Na rua, recebo olhares de medo"

Joseph Rodrigues Siqueira, 26, DJ, palestrante e ativista, homem, trans, pansexual

"É ser um corpo que as pessoas sempre vão desconfiar do seu trabalho, da sua resposta. Sempre vai precisar ser dez vezes melhor.

Na rua, recebo olhares de medo. Medo de que eu faça alguma coisa, que tenha alguma reação violenta.

Sempre somos olhados com receio, com medo. Sou trans, mas a raça sempre vem na frente. Sou visto como um cara negro.

Quando vejo uma outra pessoa negra, a gente se olha. Às vezes, dá risada e não é mais um desconhecido. É um irmão que está revendo.

E quando há alguém negro no mesmo espaço, há uma atração natural, de conversar. E, geralmente, é alguém cisgênero, o que comprova que a raça vem primeiro. Depois, a gente vai discutir se sou trans, não binário.

Sinto falta do povo preto nos lugares de poder, na área da saúde, na música, nos lugares de decisões políticas. Enquanto homem negro da periferia e trans é o que espero na sociedade.

A arte ainda é elitizada e intimida quem está fora dessa realidade. Precisamos hackear e ocupar todos os espaços de fato."

André Lucas/UOL André Lucas/UOL

A 'branquitude' é uma estrutura tão forte que, às vezes, a gente é invisível, mesmo que tenha dinheiro para pagar alguma coisa

Joseph Rodrigues Siqueira

Heitor Salatiel/Colaboração para o UOL

"Sentia-me constrangida de sair com qualquer roupa"

Raquel Luanda Santos, 29, cientista social e produtora de eventos, mulher, negra, cis, hérero

"É complexo. Varia de rua, de dia. Atualmente moro na Santa Cecília, região central de São Paulo. Tem sido uma experiência interessante, pois sou um dos poucos corpos negros na rua.

A primeira reação foi de recusa desse lugar. Tinha vergonha, achava que não era o meu lugar. Sentia-me constrangida de sair com qualquer roupa. É um bairro muito hipster e muito branco, então, tinha uma tentativa de estar sempre à altura.

Estou no processo de me sentir confortável. Sou muito fechada quando estou na rua. Ando rápido, de cara fechada. Não sei se não ouço, mas não sinto os homens me paquerando. Talvez eu não seja o perfil de mulher negra hiperssexualizada. Eu tenho dread, minha pele é escura.

O que é bem irritante é as pessoas perguntarem de onde eu sou. Respondo que sou daqui, mais do que ela, pois sou como 53% da população brasileira, que se declaram negros.

Tem uma coisa da beleza diferente, de me colocarem num lugar mais do exótico, do que do sexual. Eu gosto de frequentar lugares bons.

Sou chamada de preta pobre patrícia. Fico feliz de ver outras pessoas pretas nesses espaços. Fico triste com o discurso de 'esse lugar não é para mim'.

Precisamos estar em todos os espaços. Não é agir como branco. Mas é ser a gente mesmo nos lugares que são nossos por direito. É não ter vergonha de ter possibilidades de acesso

Quando encontro outra pessoa negra, eu aceno com a cabeça, a gente troca olhares e segue. É bom, é reconfortante. Isso dá uma sensação de que você pertence. Mas, em alguns casos, esse olhar de reciprocidade também é de disputa. A nova geração preta tem que se reconectar. Não é disputa de looks, de fama nas redes sociais. Sou preta, você é preto. Estamos no mesmo lugar e, se algo der errado, estamos um pelo outro. É uma construção que precisa ser feita. Sinto-me fortalecida quando vejo outra pessoa negra na rua, mas nem sempre os olhares são positivos de volta."

André Lucas/UOL André Lucas/UOL

"Ser lésbica me emancipa de muitos padrões"

Micha Nunes, 35, analista de recursos humanos e percussionista, mulher, negra, cis, lésbica

"Primeiro, há a questão de ser uma mulher negra. Mas ser lésbica me emancipa de muitos padrões. Eu não tenho que atender um padrão heteronormativo feminino.

Tenho pensado muito sobre essa estética e não ter esse apego com a feminilidade. Eu saio com a roupa que eu quero. A minha sexualidade me ajuda nisso, pois uso roupas confortáveis e não dentro de um padrão que esperam para mim. Uso boinas, roupas mais justas.

Quando estou indo para academia e estou mais largada, as pessoas me olham de forma mais estranha. Nunca mexeram comigo na rua de forma ofensiva por conta da minha sexualidade a não ser quando estou com a minha companheira. Já rolaram assédios, de caras perguntarem se não queríamos que ele participasse da nossa relação.

A gente acaba vivendo em uma bolha. Quando estou em bairros mais nobres, as pessoas ficam mais confusas. Mas, em geral, são reações mais positivas do que negativas. As pessoas mexem mais comigo quando estou mais feminina, por incrível que pareça. Principalmente os homens. Chama atenção por ser contraditório, quando estou de vestido e cabelo curto."

André Lucas/UOL André Lucas/UOL

É muito agressivo quando estou usando um vestido, saia, que performa uma feminilidade maior porque, fatalmente, um cara vai mexer comigo, mesmo com o meu cabelo curto, eu não estando disponível

Micha Nunes

Heitor Salatiel

"Para as pessoas negras, a gente é um reflexo"

Monna Brutal, 22, empreendedora e rapper, mulher, negra, trans, hétero

"É dolorido, mas é motivador. Na rua é onde temos a possibilidade de converter aquilo que chega até nossos corpos como um retorno, seja por meio da arte ou por ação física, para combater alguma fobia que é muito normal nos nossos cotidianos. A rua é perigosa.

Recebo olhares que me hiperssexualizam, de ódio, de zombação, mas também de identificação e de empatia. Esse é um olhar de pessoas negras que cruzo e há algo na estética das pessoas pretas que faz elas se entenderem e se enxergarem uma nas outras a partir do que elas pensam.

Para algumas pessoas, a gente é um corpo estranho. Mas para as pessoas negras, a gente é reflexo e mesmo sem palavras o olhar de identificação é motivador, pois é um olhar de amor próprio, que vem acompanhado da admiração. São muitas sensações que a rua tem a nos oferecer.

Eu moro em Guarulhos, na Grande São Paulo. Lá é muito racista e esses olhares mais tortos são mais presentes. É mais difícil conviver lá do que em São Paulo, por exemplo. Independente da roupa que eu esteja, é uma afronta eu estar na rua.

Eu tenho síndrome do pânico e tenho ciência que é um afronte tamanho estar na rua, ir a padaria ou ir a um show. Eu tenho medo, pois esse é um lugar em que somos mortas frequentemente. Além de fazer um tipo de arte que me faz ser perseguida também."

André Lucas/UOL André Lucas/UOL

"Sofro violências também de negros que não se identificam como tal"

Albert Magno, 31, cantora, homossexual, preta, não-binária

"Ser um corpo negro na rua, sendo bicha, preta, afeminada, não-binária, é difícil pela resistência e pelo policiamento do meu corpo o tempo todo. Na rua, por ser afeminada e preta. No trabalho, o ambiente é misógino, muito masculino, racista ao extremo.Sofro várias violências, tanto das pessoas brancas quanto de algumas pessoas negras que não se identificam como negras. Ainda sofremos preconceito dentro da nossa comunidade apesar de esperarmos apoio de pessoas que são seus semelhantes.

A parte negativa, para mim, é mais forte, mas a parte positiva ocorre em lugares em que há outros corpos negros iguais ao meu. Quando estou com aquele look bem bafo, me elogiam com olhares e comentários de 'linda', 'maravilhosa'."

André Lucas/UOL André Lucas/UOL

Recebo muitas cantadas quando estou montada em trajes femininos. Há uma objetificação, já que meu corpo não serve para ter relacionamento sério, só para fetiche ou sexo rápido

Albert Magno

Heitor Salatiel/Colaboração para o UOL

"Nas farmácias, sou perseguido: acham que vou roubar"

Felipe Fernandes Silva, 34, comunicador, homem, negro, gay, cis

"Depende do lugar e dos horários, os olhares são variados. Nas farmácias, sempre sou perseguido, acho que as pessoas pensam que vou roubar. Na rua, eu presto menos atenção. Mas em bairros nobres, os olhares são outros. As pessoas olham de forma intrigante. Você não sabe se é medo, se é curiosidade. É um misto. Mas não é um olhar receptivo. É algo como 'você não deveria estar aqui', 'quem é esse aqui?', 'o que essa pessoa está fazendo aqui?', 'quem é esse corpo?'

Rola reciprocidade do olhar, que diz "achei alguém, um irmão. Achei um meu".

No Recife, de onde venho, tem uma negritude maior na rua, então esse sentimento de ser diferente, de receber olhares, é menor, pois a comunidade negra é mais espalhada."

Na região em que eu morava, havia poucos brancos, então, eu era mais um. Todo mundo era basicamente igual. Mas quando precisava ir para bairros mais brancos, os olhares que recebia são parecidos com os que recebo em São Paulo."

Mas também sempre há um cumprimento com os irmãos pretos, principalmente nos lugares com maior concentração de brancos

Felipe Fernandes Silva

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