Julgada pelo PCC e absolvida

Acusada de matar integrante da facção entra em "Tribunal do Crime" e é sequestrada, mas escapa de condenação

Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, em Maceió André Toma/UOL

Era 17 de julho de 2017 quando Ventania* (nome de guerra) foi chamada à casa de seu padrinho no PCC (Primeiro Comando da Capital), de alcunha Miguel Oião. Na residência dele, no bairro Maraponga, em Fortaleza, foi informada de que era acusada de participar de um assassinato e seria julgada pela organização criminosa.

Ali começava um calvário de quatro dias à espera de uma sentença.

O UOL teve acesso a esses detalhes em uma denúncia feita em 3 de dezembro de 2018 pelo MP-CE (Ministério Público do Ceará) em que acusa dez pessoas pelo envolvimento no sequestro e julgamento de Ventania. A investigação descobriu detalhes sobre como ocorre um julgamento de um membro dentro da maior facção do Brasil.

A reportagem pediu uma entrevista com um dos quatro promotores do MP-CE responsáveis pela denúncias, mas assessoria do órgão informou que eles decidiram não falar sobre o tema.

André Toma/UOL

A acusação

Ventania foi acusada da morte e decapitação do "irmão" (como se chamam os membros do PCC) Band, ocorrida no bairro José Walter, em Fortaleza, dias antes.

À época, o PCC estava no auge de em uma guerra sangrenta contra o CV (Comando Vermelho) no Ceará, e as decapitações eram a forma de o grupo inimigo mostrar força sobre o rival.

Faccionada havia dois anos, Ventania passou três dias trancada em um apartamento à beira-mar na cidade vizinha de Caucaia à espera do veredito.

Para o professor de sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo) Gabriel Feltran, especialista em PCC, o caso ocorrido no Ceará não é excepcional.

"Debates como esse, para ver quem está certo ou errado em uma situação de conflito, são muito comuns no mundo do crime e em especial no PCC", diz. "Os debates no PCC são mais ou menos complexos, a depender do caso em questão. Podem se resolver em minutos com pouca gente envolvida, ou levar dias de discussão."

A reconstituição do crime

A instância responsável pela sentença do "Tribunal do Crime", como é conhecido, é o "resumo da disciplina".

Antes de ser julgada, as integrantes do PCC Naguine e Caninana levaram Ventania até o local exato do homicídio, onde foi feita uma reconstituição. Um relatório foi elaborado e enviado ao "resumo da disciplina", com áudios e vídeos. Ali, ela apresentou sua defesa.

Autor do livro "Cobras e Lagartos, a Verdadeira História do PCC", o jornalista Josmar Jozino afirma que esse tipo de julgamento é normal na facção. "O PCC é dividido em setores, como os departamentos de uma empresa. Para você ter ideia, eles têm até corregedoria para analisar as atitudes no grupo", explica.

Trancada por 3 dias

Ela foi levada no dia 18 de julho de 2017 para um apartamento onde ficou sob vigília de duas integrantes do PCC: Dominadora e Naguine.

O cárcere privado era necessário até o fim do "julgamento", já que apenas dessa maneira o grupo criminoso conseguiria garantir o cumprimento de uma sentença condenatória.

Jozino diz que o "Tribunal do Crime" não usa apenas a pena de morte como condenação. "Tem também o gancho, que são 90 dias de afastamento, e a expulsão", afirma.

Apoio da externa

Dois dos integrantes do grupo, apelidados de Federal e RDM, exerceram a função de "apoio da externa". Segundo o MP, esse setor é responsável pelo controle e disciplina dos integrantes que se encontram nas ruas e pelos criminosos que ainda não possuem registros de crimes ou passagem pelo sistema prisional.

O jornalista Josmar Jozino afirma que, após os ataques em São Paulo, em 2006, o PCC se descentralizou e criou vários tipos de sintonias (como são chamadas as lideranças) pelos estados.

"São elas que tomam as decisões. Mas, no caso de julgamento, se eles virem que algo pode dar problema, sempre passa pelo 'resumo geral' em São Paulo. Eles não podem sair matando assim, tem regras deles. Tudo no PCC é discutido", diz.

Geral da rua

Outro integrante do PCC, batizado como Panda, atuou na função de "geral da rua". Ele tem a responsabilidade da aplicação, em consenso com outras células do PCC, das sentenças e pelo controle e disciplina dos membros que se encontram nas ruas.

Já o núcleo de "esclarecimento de ideias" teve a função de ouvir as declarações da acusada e realizar questionamentos.

Jozino afirma que é comum nesses julgamentos haver tortura, física e psicológica. "Além disso, quando há a punição, eles querem uma prova do que foi feito. Querem que se mande foto, querem ouvir no celular, querem que transmitam a morte."

"Pau no gato"

Pelo fato de a acusada ser mulher, outras duas integrantes do PCC --Caninana e Cristal-- ficaram responsáveis pelo "resumo feminino". Segundo relato de Ventania ao MP, "ficavam o tempo todo instigando que fosse dado o 'pau no gato', ou seja, que a vítima fosse executada".

Autor do livro "Irmão, uma História do PCC", Feltran explica casos de morte levam a debates longos que envolvem muitos "irmãos".

"Eles analisam minuciosamente o que ocorreu e chegando ao que seria certo ser feito, segundo os princípios de justiça interna adotados pela facção", afirma.

Resumo da disciplina

As opiniões dos núcleos, por sua vez, não eram definitivas e foram submetidas à apreciação de um terceiro quadro da organização criminosa, de hierarquia superior, conhecido como "apoio do resumo disciplinar", que funcionaria como uma assessoria dos juízes. Nesse caso no Ceará, era formado por sete pessoas.

Para o professor Feltran, esse modelo de "julgamento" tem uma vantagem para manter organizada a facção.

"Todos os sistemas de Justiça, legais ou ilegais, buscam entregar ordem e previsibilidade à vida cotidiana. No Brasil, esse sistema por vezes é a ordem também de territórios e comunidades inteiras. Em alguns casos, como em São Paulo, essa ordem reduz homicídios e aumenta outros crimes."

No caso do PCC, o pesquisador diz não se tratar de um sistema de regras duras, mas de "análise minuciosa de como cada um procedeu, caso a caso". "No PCC os 'disciplinas' têm a responsabilidade de organizar os debates internos e zelar pelos princípios da facção", afirma.

Libertada na praia

O julgamento durou até o dia 21 de julho de 2017. No fim daquela manhã, Ventania foi deixada pelas duas responsáveis pelo cárcere privado em uma barraca de praia no litoral do Icaraí, em Caucaia, no Ceará.

No depoimento ao MP, ela não soube informar a razão de sua libertação, pois acreditava ter recebido a "sentença de morte".

"No caso de Ventania, ela conseguiu provar por A + B que o cara que a acusou estava errado. E muitas vezes, além da acusada, eles punem também o padrinho, porque ele é responsável pelo membro", afirma Jozino.

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