Tommaso Protti/UOL

É começo da noite e jovens se esquivam de postes ao final da rua. Mãos treinadas fecham baseados finos como cabo de carregador de celular. O cigarro é diferente por fora e por dentro da seda. O efeito nada tem a ver com o da maconha comum.

Renato* é uma vitrine do que acontece com quem usa K9 —também conhecida como K2 ou spice—, uma nova droga que se espalha como praga pelas ruas da cidade de São Paulo desde o fim de 2022.

O rapaz de 22 anos vai ficando com a voz empastada até perder a faculdade da fala. Os olhos traduzem o estado catatônico. Como a boca, estão semiabertos e parecem desligados. Dormir de olhos abertos soa esquisito, mas a cena é chocante porque Renato adormece de pé. Como um zumbi.

Ele está desfalecido, mas não imóvel. Os ombros pendem para a frente e o tronco inclina de forma lenta para a esquerda. A impressão é que o cérebro entrou em stand by e deixou o corpo sem controle.

Parece questão de segundos para ele desmoronar na calçada —às vezes acontece.

*Os usuários citados nesta reportagem tiveram suas identidades protegidas por nomes fictícios.

Renato mora na Cohab II, na zona Leste de São Paulo. A droga que fumou está nas ruas da capital desde antes da pandemia, mas o consumo aumentou exponencialmente no começo do verão.

Na cidade de SP, 102 pessoas foram atendidas este ano por casos suspeitos de intoxicação por canabidiol sintético até o dia 15 de março. Nos 12 meses de 2022, foram 73 internações. Os dados são da Secretaria Municipal de Saúde.

Pelo menos um jovem sofrendo delírios e desorganização psíquica por K9 é internado diariamente em um centro de atendimento para adolescentes da zona norte da capital, segundo uma funcionária que se diz assustada com a situação.

Em Guarulhos, a nova droga também já preocupa.

"Cerca de 50% dos casos são de pessoas de 12 e 17 anos. Outros 25% dos atendidos têm até 25 anos. E 80% deles são homens", diz a coordenadora do Centro de Informação Estratégica de Vigilância em Saúde da Prefeitura de Guarulhos, Fernanda Mata Carmo.

"Quando a gente observa as apreensões, [o K9] está na cidade inteira", diz o delegado Fernando Santiago, do Denarc. Como consequência disso, a curva de notificações por intoxicação causada pelo consumo de substâncias ilícitas, que vinha em queda desde 2019, inverteu-se.

Números da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo apontam que o crescimento de internações por drogas em janeiro foi 60% ante o mesmo período do ano passado —1.600 contra mil. Mas o órgão não crava que a causa seja o K9.

Ainda não há estudos científicos publicados detalhando as consequências do uso a longo prazo e seu poder viciante, mas todos os usuários relatam um "efeito zumbi".

A situação leva familiares a achar que a droga tem crack na composição, o que não é verdade. As consequências, no entanto, se assemelham: pessoas fora de si que se tornam maltrapilhas e dispostas a qualquer coisa pela próxima tragada.

O coração dá murros no peito na tragada do crack. A fumaça na mente é a ignição da euforia e da sensação de poder. Os efeitos do K9 vão por outra direção. A sensação é a desaceleração do corpo. Tudo vai ficando lento, braços e pernas amolecem e a consciência apaga.

Esse estado é chamado nas ruas de "piripaque do Chaves".

O UOL presenciou esses sintomas ao acompanhar o trabalho da ONG Gente de Perto, na praça da Sé, no centro de São Paulo.

Do alto de seus 12 anos, Caetano sentou na escada com sua tatuagem de palhaço na panturrilha direita. Por causa do cigarro na mão esquerda, a conversa é curta.

O menino tem tempo de dizer a idade e explicar que um cadarço serve de cinto porque perdeu muito peso desde que passou a fumar K9. A voz começa a ficar pastosa quando o assunto envereda para família.

Ao falar de seus oito irmãos, Caetano fica com as sobrancelhas pesadas e o pescoço dobra, aproximando o queixo do peito. "Tem a Claudia, a Sabrina...", a cabeça inclina para frente. Caetano perde a consciência.

Os jovens da Sé comentam que o "sem futuro" caiu no sono. Os adolescentes gostam de usar esta expressão. Acham que o termo contém ironia e verdade.

O K9 é uma substância criada em laboratório para imitar os efeitos da maconha, explica Alexandre Soares, diretor do Núcleo de Exames de Entorpecentes do Instituto de Criminalística. Ele age no mesmo receptor do THC (substância psicoativa da maconha), mas o efeito é muito mais intenso.

A droga em si é um líquido que os traficantes borrifam em pedaços de papel, chás, ervas, tabaco e especiarias (spice em inglês). É possível usar colocando embaixo da língua ou fumando. A matéria-prima são substâncias químicas compradas pelos correios da China e Índia. Outra possibilidade é desviar insumos de hospitais.

Esses produtos chegam na mão de traficantes que cozinham o líquido em laboratórios improvisados.

No começo, o K9 não fazia os usuários perderem a consciência. O estado vegetativo surgiu após traficantes investirem em aprimoramentos visando aumentar o barato.

"É como se isso fosse um calmante. Não em comprimido, mas em droga", explica Jessica, garota de 22 anos que começou a fumar em 2019 na praça da Sé.

O diretor do Instituto de Criminalística suspeita que a fórmula atual contenha opiáceos, como a heroína. Ele diz que derivados do ópio diminuem a atividade cardíaca e respiratória, o que explicaria os casos de overdose. No mês passado, um garoto de 12 anos morreu de overdose em Diadema.

O K9 se espalhou primeiro no sistema prisional, conta o delegado Fernando Santiago, do Denarc. A possibilidade de esconder a substância no tabaco, chá e papel facilitava o contrabando em cadeias.

Consagrada nos presídios, a droga foi levada para a rua e hoje faz parte do "kit biqueira" junto do crack, cocaína, maconha e lança-perfume. O delegado diz que o K9 é voltado para o público de baixa renda. Por R$ 3 se compra um saco do tamanho de um chá, suficiente para um cigarro. Um pino sai por R$ 10 e um saco para vários baseados custa R$ 20.

O perfil consumidor é principalmente de homens jovens. Áreas vulneráveis, muitas delas de ocupações, são locais de grande concentração de usuários. Mas um traficante que conversou com o UOL duvida que o K9 se restringirá às quebradas.

Ele cita o exemplo do crack, associado inicialmente à figura do homem pobre, mas que hoje tem consumo generalizado. "Tem Barbie que fuma igual ao [Bob] Marley", ironiza, projetando uma repetição do cenário para o K9.

A forma de fabricação da "maconha de laboratório" é um facilitador. Um quilo do líquido consegue abastecer uma cidade inteira. A polícia não crava que o PCC está envolvido no processo de produção e no tráfico, mas existe uma forte suspeita.

O delegado do Denarc conta que a facção tem a hegemonia do tráfico e nada é vendido sem anuência dos líderes. "O grande problema não é fazer a droga, mas distribuir."

A ocupação territorial da praça da Sé, marco zero de SP, obedece à lei do crime. O crack nunca teve vez no local —o PCC impede a venda e o consumo.

A parte de baixo da praça é de alcoólatras e sua cachaça em garrafas de plástico. Na área de cima, ao redor da catedral, fica a tribo da maconha, cocaína e thinner (solvente).

Apresentado na rua como uma "supermaconha", o K9 se inseriu ali, na parte alta da Sé. Para bancar o vício, usuários desrespeitaram a regra local que proíbe roubo com faca. O castigo por parte de traficantes foi uma surra homérica.

O corretivo manteve intocada a lei sobre armas brancas, mas o K9 fez a violência na praça aumentar. Grupos de adolescentes espancando uma pessoa que entregou o celular sem oferecer resistência se incorporaram à rotina da Sé. O mesmo vale para gente dormindo em pé.

Jessica contava um bolo de dinheiro miúdo na mesa escadaria da Sé quando foi convidada a dar entrevista ao UOL. A garota não aceitou falar sobre aquele monte de notas de 2 e 5 reais. A respeito do K9, nenhuma restrição.

Começo a ficar lesada, ficar mole, é uma brisa gostosa. E do nada, quando eu vou ver, eu tô dormindo. Acordo num lugar que eu não sei. Vou ser sincera com você, a gente parece um zumbi usando essa droga.
Jessica

Ela começou a fumar antes da pandemia, quando estava grávida do segundo filho. Jessica diz que era época do K2, uma versão mais fraca da droga de laboratório. "Ela é brecada [proibida] em todos os lugares de São Paulo". Em substituição, surgiu o K9.

"A K2 dá para andar fumando, você faz várias coisas da atividade diária fumando ela. Mas a K9 não! Ela te trava, ela te deita. Você tem que fumar e ficar num lugar. Se você levantar, você pode cair."

Jessica fuma 80 baseados por dia e tem consciência que está em um estado avançado de dependência.

"Eu sou uma usuária tão forte da K9 que eu durmo e acordo no meio das madrugadas com baseado do lado, dou um trago e volto a dormir. Tomo banho fumando ela, uso banheiro para fazer minhas higienes fumando ela, antes de comer, para fazer tudo eu tenho que usar ela."

O corpo carrega sinais físicos do vício: língua e dentes amarelados e feridas por toda a pele. Jessica conta que a brasa é venenosa e provoca queimaduras químicas. A garota tem sete manchas purulentas no braço esquerdo, mas o grau de alienação se revela numa queimadura nas nádegas.

Ela estava fumando e entrou no estado catatônico. O cigarro caiu da mão, e depois foi a vez de Jessica despencar. Anestesiada, nem percebeu que estava sentada no baseado em brasa.

Caetano, o menino de 12 anos que desligou por causa da K9 enquanto falava com o UOL na praça da Sé, reaparece quase meia hora depois. Ele se despede dizendo que precisa trabalhar e se adianta à expressão de interrogação do repórter.

"Já vai dar cinco horas tio. O povo sai do serviço e nós sai pra roubar."

A expansão do mercado de qualquer droga coincide com dramas familiares. Moradora da Cohab II, Kamilly Marcele dos Santos, 20 anos, está tão acostumada ao caos que narra situações extremas sem mudar o tom de voz.

Em janeiro, um ultrassom mostrou que ela precisava ir para a maternidade induzir o parto. Mas era impossível passar em casa para pegar seus pertences. O marido tinha uma faca e sangue nos olhos, porque Kamilly não havia dado dinheiro para comprar K9.

A situação na Cohab II está tão fora de controle que mães criaram um grupo de apoio no WhatsApp. Hoje tem 40 inscritas. As famílias se mobilizam pois sabem as consequências do K9.

Joice Aparecida Matheus, 41 anos, foi marcada em um vídeo no Facebook que mostrava o filho babando em estado vegetativo nas imediações do metrô Artur Alvim, zona Leste de São Paulo. O homem que gravou tirava sarro "do gordão do K9".

A lógica do sofrimento também vigora em outras cidades. Coordenadora do Centro de Informação Estratégica de Vigilância em Saúde da Prefeitura de Guarulhos, Fernanda Mata Carmo procura alternativas para lidar com 147 intoxicações por droga registradas apenas este ano.

Ela diz que o uso de K9 está aumentando e a lista de consequências é preocupante: taquicardia, vômitos, crises convulsivas, infarto e AVC. Há ainda manifestações psiquiátricas como delírios, alucinações, ansiedade, depressão e até psicose.

Otávio conhece os efeitos do uso prolongado do K9. Fumou pela primeira vez em 2019 e rapidamente o vício escalou. Passava mal quando não usava a droga. Ao acordar, precisava fumar antes de escovar os dentes. A vontade vinha mesmo sabendo os efeitos das tragadas.

Mas o sentimento de abandono demonstrado pelo filho de 4 anos mexeu com ele, que perdeu quase a metade do peso nos últimos anos. Ele estava sem consumir K9 havia uma semana quando topou falar com a reportagem.

Eu sentia meu corpo formigando como se os órgãos tivessem vibrando. Parecia que a qualquer hora ia dar um piripaque. Eu era um celular tocando. Vruuuummm, vruuuuumm. Quando não, o coração palpitava que parecia querer sair pela boca.

Otávio

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