Violência mental

Famílias negras e periféricas lutam para manterem a saúde psicológica depois de terem parentes assassinados

Gabriele Roza Do Data_Labe Data_Labe

Se a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, a cada 23 minutos uma família negra pode vir a desenvolver graves problemas psíquicos. O efeito da violência na saúde mental das pessoas negras e periféricas pode não ser percebido, mas também pode ser fatal, como foi com Janaína Soares.

Em 2015, Janaína viu o filho mais velho morrer após ser baleado por um policial em Manguinhos, na zona norte do Rio. Janaína passou três anos sofrendo de depressão e morreu em 2018, segundo os médicos por causa ''indeterminada''. Para os familiares e amigos, foi de tristeza.

A história de Janaína ilustra a consequência extrema da violência institucional na vida das pessoas pretas, mas será que é possível relacionar de forma mais ampla as doenças mentais com as violências que fazem parte do cotidiano das periferias?

O data_labe levantou dados no Sistema de Informação sobre Internações Hospitalares (SIH), do Datasus, para encontrar essa resposta. Foram analisadas todas as internações que ocorreram entre setembro de 2019 e setembro de 2020 por causas externas e agressões e também as internações por causas psiquiátricas. Como previsto, elas são mais frequentes nas áreas pobres da cidade e com Índice Brasileiro de Privação (IBP) mais alto.

O IBP foi criado pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde/Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para revelar o quão desfavorecidas as pessoas são no nível social e econômico, baseado em três medidas coletadas pelo censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010: renda, escolaridade e moradia. Quanto mais alto é o índice de privação, mais vulnerável a região é em relação a essas medidas.

Por que não olhamos os dados de violência policial?

As agressões físicas praticadas por policiais são diagnosticadas como Intervenções Legais e Operações de Guerra. Contudo, durante um ano de internação, os dados do Datasus mostram que o estado do Rio de Janeiro teve apenas três internações no SUS por essas causas. Segundo os dados, a polícia que mais mata e mais morre no país fez apenas três vítimas que necessitaram de internação durante um ano.

''O que ocorre em muitos casos é que notificar desta forma pode gerar uma investigação e sindicância na unidade de saúde. Muitas vezes, não por negligência, mas por medo, o profissional de saúde diagnostica como causa externa. Nem todas as causas externas acontecem por este caminho, mas um alto número de ocorrências dessas causas de agressão e/ou externas se dão por esta via'', explica Paulo Motta, coordenador de dados do data_labe e mestre em epidemiologia e ciência de dados pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O segundo passo foi checar se esses mesmos lugares com altas internações por causas externas e agressões também concentraram, durante o mesmo período, internações por causas psiquiátricas*.

O mapa a seguir evidencia a relação entre as duas internações que ocorrem nestes territórios. Moradores de bairros que possuem mais internações por agressão ou causas externas também possuem mais internações psiquiátricas. No município do Rio de Janeiro, a cada aumento de dez internações relacionadas à violência, existe um aumento de duas internações psiquiátricas.

Os bairros que apresentam um número mais alto de internação por agressão ou causas externas no período analisado são Santa Cruz (10.164), Bangu (951) e Realengo (945), bairros localizados na zona oeste, subúrbio do Rio de Janeiro. Já Taquara (1350) e Santa Cruz (304), ambos da zona oeste, e Botafogo (276), zona sul, são os bairros com mais internações psíquicas.

Neste link, você pode ver a quantidade de internações por violência e internações psíquicas de todos os bairros do Rio de Janeiro e a categoria em que estão incluídos (de muito alto, para bairros que apresentam os números mais elevados de internações, a muito baixo, para bairros com menor número de internações).

Taquara e Santa Cruz são os bairros com o maior número de internações violentas e psiquiátricas juntas. Taquara teve 45 internações violentas e 1.350 psiquiátricas, Santa Cruz teve 10.164 violentas e 304 internações psiquiátricas. Ambos são bairros periféricos do Rio de Janeiro.

No outro extremo, Cidade Universitária e Paquetá são os bairros com o menor número de internações violentas (Cidade Universitária teve uma e Paquetá duas) e psiquiátricas (Cidade Universitária teve três e Paquetá uma).

Apesar do volume populacional desses dois bairros ser maior, quando comparamos os bairros mais conhecidos e habitados da cidade percebemos a desigualdade territorial.

O bairro de Ipanema (42.743 habitantes, IBGE 2010) registrou apenas uma internação psiquiátrica no SUS, enquanto Realengo (180.123 habitantes, IBGE 2010) registrou 94 internações durante o período analisado. As internações com causas violentas em Ipanema foram cinco, contra 945 em Realengo.

Se o número fosse proporcional, de acordo com a população de cada bairro, Ipanema deveria ter apresentado 22 internações psiquiátricas e 224 internações por causas violentas.

Mônica Cunha, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia do Rio de Janeiro (Alerj) e liderança no movimento de mães de filhos assassinados pelo Estado, acompanha essa realidade há 20 anos.

Mas há 14 anos, quando o seu filho Rafael foi assassinado por agentes de segurança, ela passou a sentir na pele como é viver com a dor de perder um filho.

''Eu tenho síndrome do pânico e depressão, já tive câncer. Eu estou há anos me segurando com terapia e remédios, de tempos em tempos, para continuar viva.''

Data_Labe Data_Labe

No domingo (6), Mônica esteve presente no protesto contra a morte das primas Emilly Victoria, de 4 anos, e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, de 7 anos, baleadas e mortas na sexta-feira (4), na porta de casa, em Duque de Caxias, enquanto brincavam.

''Eu tenho muito medo de me suicidar, então eu vou para a rua porque eu sou covarde. É essa covardia que me mantém viva. Nesse fim de semana, fiquei me perguntando o que eu fiz nesses 20 anos. Você se dispõe a lutar e todo dia morre gente? Fiquei preocupada com essas duas mães que acabaram de nascer para a luta, duas famílias que vão passar o resto da vida com essa dor que eu tenho que sentir.''

Luciene Silva, 55, conhece de perto essa realidade. Há 15 anos perdeu o filho Rafael Silva Couto, que tinha apenas 17 anos, na Chacina da Baixada. Policiais militares mataram 29 pessoas nas ruas de Queimados e Nova Iguaçu, onde Luciene ainda mora.

Logo depois do assassinato, ela passou a participar de reuniões de mães que pediam justiça pela morte de seus filhos. ''Esse apoio de mães de filhos que morreram em outras chacinas fez muita diferença. Eu comecei a participar de alguns grupos de terapia e a fazer um trabalho como familiares de vítimas e foi aí que me identifiquei.''

Data_Labe Data_Labe

Nesses anos, Luciene conheceu diversas situações e pessoas que tiveram sequelas graves depois de vivenciar a violência.

''Temos mães que não conseguem dormir sem medicação, temos mães que já tentaram suicídio várias vezes, temos mães que não conseguiram voltar ao trabalho, não conseguiram ter uma vida normal com os seus companheiros. Eu mesma tenho um filho que, desde que o irmão faleceu, entrou num caminho da depressão e foi buscar alívio para a dor dele na cocaína. O irmão dele era tudo para ele, ele acabou se destruindo por conta da revolta de terem matado um irmão que não era envolvido com nada, não fazia nada de errado, ele não consegue lidar com isso.''

Luciane conta que a família inteira foi destruída com o assassinato de Rafael. Além do filho, a avó passou a ter diabetes e outros problemas de saúde e a outra filha passou a ter problemas psicológicos.

''Tive que levar minha filha para fazer um tratamento psicológico porque ela ficou tendo crises de ansiedade constantes e isso prejudicou muito a adolescência dela. Hoje ela está com 27 anos, mas ainda tem problemas psicológicos sérios porque, além de ter perdido um irmão, ela sofre há 15 anos com o outro irmão que é dependente químico.''

Acervo Luciane Silva

A psicóloga do Núcleo Ampliado de Saúde da Família no Rio de Janeiro Fany Chung explica que toda violência sofrida ou testemunhada fica registrada no corpo de uma pessoa, tanto na parte física quanto mental. Segundo Fany, as diversas violências que são sofridas fazem marcas, que talvez em um primeiro momento sejam imperceptíveis, mas podem gerar desde alterações de comportamento e de humor até sofrimentos psíquicos e emocionais.

Eu costumo dizer que a violência institucional é a pior das violências. Quando um cidadão chega em busca de algum atendimento de serviço de saúde ou é atendido por qualquer profissional que represente o poder do Estado e é tratado de uma forma violenta, não se tem mais esperança. Essa violência acontece das pequenas situações às mais graves, como por exemplo a violência policial
Fany Chung, psicóloga

Não é à toa que os territórios onde se concentram o maior número de internações por violência e de internações psíquicas, também são os lugares onde a renda e a escolaridade são baixas e a moradia é mais precária.

''A Baixada Fluminense já sofre violência há muito tempo. A violência brutal dos homicídios e desaparecimentos começa lá atrás'', lembra Luciane Silva. ''Você morar numa comunidade que o esgoto é a céu aberto, o transporte é caro e desgastado, não tem um hospital digno que funcione, não tem escola de qualidade, a violência já começa aí, retirando todos os direitos que essa população tem de viver dignamente. Essa violência toda é um trampolim para essas execuções e desaparecimentos forçados.''

Ou seja, a população negra e periférica está mais sujeita à violência. E os familiares das vítimas desta violência estão mais sujeitos às doenças mentais.

Com todas essas complexidades, Fany acredita que é necessário um melhor investimento do Estado nas políticas de saúde mental e na capacitação dos profissionais de saúde para um entendimento mais amplo sobre a saúde mental.

Mas o governo federal está indo na contramão dessas propostas. O governo Bolsonaro (sem partido) está preparando a revogação de cem portarias sobre saúde mental, o que atingiria diversos programas e serviços do SUS e ocasionaria um desmonte nas políticas de saúde mental da rede pública do país.

Acervo Mônica Cunha

''Nós temos uma política de saúde mental, neste momento, que está sendo ameaçada, com a possibilidade de extinção dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), por exemplo, e com uma proposta de retorno aos grandes manicômios. É um grande retrocesso, uma abordagem extremamente alienante e segregadora. O que precisamos é de uma abordagem ampla, aberta, diversa e comunitária'', explica a psicóloga.

Apesar de tudo, para Fany, as populações que vivenciam eventos traumáticos seguem resilientes, construindo redes de apoio e proteção. Ela explica que uma pessoa solitária, com uma rede de proteção mais frágil, tende a desenvolver mais sintomas de sofrimento emocional após situações de violência do que uma pessoa que tem uma rede de apoio capaz de apoiá-la em momentos difíceis.

"Na favela, as pessoas se relacionam o tempo inteiro e se apoiam. Em caso de calamidade, a população se mobiliza. Vira e mexe uma comunidade se une para fazer um tipo de manifestação... Você já viu a manifestação de algum condomínio? É muito mais raro. A população negra diante do racismo é a demonstração disso, um povo que sempre vivenciou uma violência racial, mas vem sabendo se defender e criar suas estratégias para que esse povo continue vivo."

* As causas psiquiátricas que levaram a internação e entraram no nosso levantamento foram: esquizofrenia, transtornos psicóticos agudos e transitórios, transtornos esquizoafetivos, transtorno afetivo bipolar, episódios depressivos, transtorno depressivo recorrente, transtornos somatoformes, transtornos específicos da personalidade e outros transtornos ansiosos.

Topo