Poder a serviço do crime

Milícia do Rio se infiltra na polícia e na política para expulsar rivais em meio à expansão de território

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Medo e Demência/UOL

A maior milícia em atuação no país conta com o apoio de agentes de segurança e de membros infiltrados na política. Com "sócios fardados", a antiga "Liga da Justiça", hoje "A Firma", já articulou até operações para expulsar traficantes das suas áreas de domínio nas cidades da Baixada Fluminense, segundo o MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro).

Levantamento feito pela reportagem do UOL revela os detalhes sobre a atuação de cinco chefões infiltrados na segurança pública e com conexões na política local. Segundo investigações conduzidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro e pelo MP-RJ, esses setores estão interligados com a milícia que se expandiu da zona oeste carioca para os municípios da região nos últimos três anos.

Ainda sobre a expansão dos paramilitares para a Baixada Fluminense, o UOL já mostrou como funciona o ritual de iniciação da organização criminosa, que inclui assassinato, esquartejamento e ocultação de cadáver em cemitérios clandestinos.

Informações obtidas com exclusividade junto ao MP-RJ apontam que 319 pessoas foram denunciadas pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) no ano passado por crimes relacionados à milícia . Entre elas, 31 eram policiais ou ex-policiais.

A PM-RJ (Polícia Militar do Rio de Janeiro) também registrou números expressivos em seus boletins internos relacionando servidores da ativa com as ações ilícitas dos paramilitares. Em 2019, pelo menos 18 policiais foram submetidos ao Conselho Disciplinar da corporação por denúncias envolvendo a atuação deles com a milícia na região metropolitana do Rio.

Dez deles foram investigados por suspeita de ligação com grupos de Queimados e Nova Iguaçu, na Baixada.

Para autoridades e especialistas, os números embasam uma preocupante constatação: em uma área com menor efetivo policial, o cenário de impunidade impulsiona a participação de servidores e até de políticos na milícia.

A milícia é a organização criminosa mais difícil de combater pela proximidade com o poder público. Em funções de gerência, os policiais ligados ao crime organizado buscam informações privilegiadas
Fabio Corrêa, promotor do Gaeco

O tripé polícia, política e milícia

Autor de estudos sobre o avanço das milícias no Rio de Janeiro, o sociólogo Ignácio Cano acredita que a ligação entre a milícia e a política também pode estar relacionada à atuação dos grupos de extermínio na Baixada. "A expansão da milícia para a Baixada é favorável porque a região fica em um território ignorado, com baixo policiamento e distante do centro de poder do Rio. Lá, há infiltração de grupos de extermínio na política há décadas e nunca ninguém se mobilizou contra isso", analisa.

Capitão reformado do Bope, a tropa de elite da PM-RJ, o antropólogo Paulo Storani acredita que a combinação entre a formação policial e a participação na política pode ser explosiva em áreas onde há a forte atuação de grupos paramilitares. "Esses criminosos se tornam conhecidos, mobilizam a opinião pública e acabam eleitos. São pessoas que conhecem como o Estado funciona e usam da influência que têm para impedir investigações".

O MP-RJ aponta que o subtenente Celso Humberto Almeida da Silva, preso em julho de 2017, usou a estrutura do 39º BPM para impedir a aproximação de traficantes em sua área de atuação, em Belford Roxo (RJ).

Escutas telefônicas autorizadas pela Justiça naquele ano revelaram uma rotina de agiotagem e cobranças feitas a comerciantes a mando do policial militar de 57 anos nas comunidades de Nova Aurora, Bela Vista, Shangri-lá e Terra Branca. Com base nos grampos telefônicos, 24 suspeitos de integrar o grupo foram denunciados à Justiça.

Domerice dos Santos José, conhecido como Dito ou Devagar, é apontado pela investigação como o "sócio" de Celso, conhecido no grupo paramilitar como Mais Velho. Segundo o MP-RJ, o miliciano Wagner Cardoso Rosendo, o Waguinho, era o responsável pela ponte entre eles.

Homicídios e ligação com político, diz polícia

Celso não foi o único policial militar a serviço do crime no batalhão de Belford Roxo. Em novembro, uma operação em conjunto entre o MP-RJ e a Polícia Civil do Rio de Janeiro apontou o envolvimento de seis policiais e cinco militares, acusados de integrar o grupo.

Entre eles, os PMs Carlos Vinicius Gomes do Nascimento e Alex Bonfim Lima, que também atuaram no 39º BPM. O vereador Eduardo Araújo (PRB) foi alvo de mandado de busca e apreensão. A polícia investiga se há ligação entre o político e o grupo, que acordo com as investigações foi responsável por dezenas de homicídios cometidos na região em 2019.

Chefes da milícia na política

O policial militar reformado Manoel Cabral Queiroz Júnior já foi candidato a vereador de São João de Meriti (RJ) pelo PTC nas eleições de 2016.

Marcio Cardoso Pagniez, o Marcinho Bombeiro (PSL), foi vereador e presidente da Câmara Municipal de Belford Roxo. Ex-secretário de Defesa Civil de Queimados, Davi Brasil Caetano foi vereador eleito pelo Avante. Em comum entre eles, a criminosa ligação entre as forças de segurança, a política e as milícias na Baixada Fluminense.

Apontado como o chefe de uma das milícias mais violentas da região, Davi Brasil foi preso em julho do ano passado. Entre 2016 e 2018, a quadrilha atuava como o grupo de extermínio conhecido como "Caçadores de Ganso", em referência à gíria policial usada para se referir a traficantes.

Nesse período os seus integrantes usavam as redes sociais para divulgar listas de pessoas juradas de morte. Em seguida, publicavam fotos para comprovar o assassinato.

O grupo também adotava um ritual de iniciação para novos membros, que incluía sessões de tortura, assassinato, esquartejamento e ocultação de cadáveres, segundo o MP-RJ. A Polícia Civil atribui mais de 20 assassinatos aos "caçadores" e ainda identificou um cemitério clandestino onde as vítimas eram enterradas.

No dia 22 de outubro de 2019, a DHBF (Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense) prendeu Marcinho Bombeiro, acusado de ser o mandante de dois homicídios e de chefiar uma milícia conhecida como "Trupe do Marcinho", que agia em Belford Roxo. De acordo com a investigação, as vítimas foram assassinadas em abril de 2017 porque estavam fumando maconha dentro de uma casa. Uma das vítimas foi amarrada junto a uma grade de um campo de futebol antes de ser executada.

O PM reformado Manoel Cabral Queiroz Júnior era dono de uma firma de segurança privada e era suspeito de chefiar uma milícia que aterrorizava os moradores dos condomínios do programa habitacional "Minha Casa Minha Vida" no bairro Venda Velha, em São João de Meriti. Quando se candidatou para o cargo de vereador do município, se identificava para os eleitores como Cabral da Venda Velha, relacionando o seu sobrenome com o bairro de origem.

Com mandados de prisão por organização criminosa e corrupção ativa, ele foi preso no dia 25 de outubro do ano passado.

Encontro com a morte

Levantamento feito pelo UOL aponta ataques a policiais, ex-policiais ou políticos na Baixada em 2019

7 de janeiro, Japeri

Homens em um veículo atiraram na direção do carro do policial militar Miquéias Marinho Ribeiro, de 31 anos, que iria ao trabalho. A Polícia Civil suspeita do envolvimento da milícia, já que a vítima tinha uma loja de gás e se negava a pagar propina aos paramilitares.

23 de janeiro, Belford Roxo

O policial militar Francisco Fernandes Souza estava voltando de uma festa com a esposa quando dois homens se aproximaram em uma moto e o renderam. Em seguida, chegou um comparsa com o rosto coberto por uma camisa e disse: "É esse aí mesmo?" O PM foi atingido por 11 tiros.

11 de abril, Magé

O ex-vereador Darcy Gomes dos Santos Filho, o Darcizinho, foi morto a tiros no centro da cidade. Em setembro, um homem foi preso preventivamente, suspeito de envolvimento no crime. Segundo a Polícia Civil, três matadores de aluguel foram contratados para matá-lo. O assassinato teria sido motivado por uma disputa pelo domínio do jogo do bicho na região.

Refúgio para os chefões

Um dos municípios da Baixada mais afastados do Rio, Itaguaí tem uma rotina típica de cidade pequena. As pessoas usam a bicicleta como meio de transporte em uma de suas principais ruas. Lá, pouco se escuta o barulho de buzinas de veículos, sempre em baixa velocidade. Os motoristas param antes da faixa de segurança, dando preferência aos pedestres.

A poucos metros dali, uma mensagem em tinta preta no muro dá indícios da existência de um poder paralelo: "Proibido roubo na favela". Naquele ambiente pacato, vans costumam reduzir a velocidade nos locais de maior movimento, com um sujeito projetando o corpo para fora da porta, à procura de passageiros.

Contrastes entre a aparente calmaria local e a ação do grupo chefiado pelo ex-PM Carlos Eduardo Benevides Gomes, um dos milicianos mais procurados do Rio.

Segundo as autoridades, o transporte alternativo é explorado pela milícia na região há pelo menos 15 anos. Em 2006, uma decisão judicial obrigou a prefeitura a fazer a licitação desse tipo de transporte para regularizá-lo. Em 2013, o governo municipal passou a responder pelo crime de responsabilidade por não ter cumprido a determinação. Mas a prefeitura conseguiu impedir na Justiça a obrigatoriedade de licitar as cooperativas.

Um cenário propício para que os paramilitares ligados ao grupo criminoso da zona oeste do Rio seguissem explorando o serviço e intensificassem a sua ação no município nos últimos anos, diz o MP-RJ.

A milícia é administrada como uma empresa, com hierarquia, troca de turnos e especializações. Há equipes que integram o braço armado. Outras são especializadas na gestão do comércio e condomínios. O grupo que atua em Itaguaí funciona como uma franquia autorizada a usar o nome da milícia da zona oeste do Rio
Promotor Jorge Luiz Furquim, do Gaeco

A ampla área rural favorece a atuação dos paramilitares em Itaguaí. Há cerca de dois anos, um sítio na região foi usado como esconderijo para o miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefão da "Firma", segundo informações da Polícia Civil e do MP-RJ.

A geografia local também já foi explorada para a ocultação de cadáveres em cemitérios clandestinos e para estocar armas de grosso calibre, apontam investigações.

Em agosto de 2018, seis corpos foram encontrados em um terreno baldio a apenas cinco quilômetros da área central da cidade. De acordo com levantamento feito pelo MP-RJ, há mais de 30 pessoas desaparecidas no município entre 2014 e 2016.

Quando anoitece, milicianos armados e com facas na cintura surgem nas vias da cidade para fazer abordagens nos veículos. "Os moradores não estavam acostumados com esse tipo de situação. Antes, as pessoas podiam andar tranquilamente. Agora, a população passou a ter medo de sair de casa à noite", relatou um morador, que pediu para não ser identificado.

Apoio da PM e franquia do "Bonde do Ecko"

A Polícia Civil e o MP-RJ investigam a extorsão da milícia a todo o tipo de comércio em Itaguaí. Nos últimos meses, um empresário entrou ofegante na delegacia da cidade. Disse ter recebido uma ligação com uma ameaça e uma espécie de cartão de visitas da milícia.

Do outro lado da linha, um homem exigiu pagamento de taxa de segurança e disse ser do "Bonde do Ecko".

"O miliciano ainda disse que, se o comerciante não pagasse, iria sofrer as consequências. Ele veio à delegacia para denunciar. Mas não teve coragem de registrar a ocorrência. Isso é muito comum quando a milícia está envolvida. Qualquer autônomo pode ser vítima de extorsão da milícia", afirmou o delegado Marcos Santana Gomes, titular da 50ª DP (Itaguaí).

Para Jorge Luiz Furquim, promotor do Gaeco, a expansão da milícia em Itaguaí só é possível por causa do apoio de milicianos de farda. "Existe sempre um acordo prévio com a PM. Antes de invadir um território, fazem um contato prévio com o policiamento local. Os milicianos entram como se fossem integrantes de forças especiais. Passam nos comércios para dizer que a bagunça acabou. Depois, fazem atrocidades. Matam algumas pessoas de forma aleatória para se impor pelo medo".

A origem do crime

Itaguaí faz parte dos primórdios da integração entre a milícia da zona oeste do Rio e a Baixada. E, desde o início, essa atuação contou com a participação de policiais e ex-policiais.

Em 2008, o hoje ex-PM Luciano Guinâncio Guimarães foi denunciado pela atuação no município. Ele é filho de Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, um dos primeiros chefões da milícia. Condenado a 38 anos e um mês pelos crimes de extorsão, homicídio qualificado e organização criminosa, Luciano cumpre pena no regime semiaberto desde maio de 2019.

Em maio de 2016, o ex-policial militar Julio César Ferraz de Oliveira, que chefiava a milícia local, foi preso em uma operação de fiscalização da PRF (Polícia Rodoviária Federal), na Rodovia Rio-Santos, acusado de crimes como homicídio, lesão corporal e extorsão.

Com a captura dele, Carlos Eduardo Benevides Gomes, outro miliciano com passagem pela PM-RJ, passou a chefiar o grupo paramilitar de Itaguaí.

Ele integrou uma lista de 48 denunciados pelo MP-RJ por integrar a organização criminosa.

A falsa sensação de segurança no QG de Benevides

No bairro Chaperó, reduto da milícia em uma região afastada de Itaguaí, paramilitares exploram os moradores de condomínios do programa habitacional "Minha Casa Minha Vida", do governo federal. Para quem circula por lá, há uma falsa sensação de segurança, já que os roubos são proibidos pela milícia. Quem quebrar a regra, paga com a vida.

Nos últimos meses, um adolescente foi assassinado por causa de uma foto, onde aparecia fazendo um sinal de apologia a uma facção criminosa do Rio. Para o tribunal da milícia, a pena também é de morte para o uso de drogas ou o assédio a mulheres casadas.

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