Sem proteção

Morto por covid-19, técnico de enfermagem não pôde ler em CTI mensagem de despedida da noiva

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Herculano Barreto Filho/UOL
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Ele morava havia quatro anos com a noiva, a manicure Aline Pinto Maia. Ajudava a cuidar da mãe idosa, tinha duas filhas, três irmãs e muitos amigos. Mas morreu sozinho na noite da última segunda-feira (13), no CTI de um hospital particular de Campo Grande, na zona oeste do Rio, com sintomas de coronavírus. Médicos entraram em contato com a família hoje (15) para confirmar que o exame testou positivo para covid-19.

Com diabetes, hipertensão e obesidade, o técnico de enfermagem Jorge Alexandre de Oliveira Andrade, 45, estava no grupo de risco em meio à pandemia. Mesmo assim, seguiu com a sua rotina de trabalho no Hospital Municipal Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca, até a noite de 6 de abril.

Horas antes da sua morte, Aline tentou entregar um bilhete ao noivo: "Amor, estamos bem, orando por você. Nós te amamos muito. Fique tranquilo".

A ideia era mostrar que ele não estava sozinho. Que a família estava por perto, para apoiá-lo. Jorge não chegou a ler a mensagem, escrita em um pedaço de papel.

Aline, que ainda guardava o recado na bolsa durante o enterro dele, ontem (14) à tarde, no Cemitério de Santa Cruz, pediu ao hospital que o bilhete fosse entregue, mas a unidade de saúde se recusou dada a gravidade do estado de saúde do técnico em enfermagem.

Segundo o Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), que investiga o caso, já são 19 mortes de profissionais de saúde que testaram positivo para a doença e outros dez óbitos suspeitos ainda em análise no país.

Foi uma cerimônia discreta, com a presença apenas da noiva, de um pequeno grupo de colegas de trabalho e de duas irmãs, que também são profissionais de saúde. Todos usavam máscaras de proteção.

"O Jorge era o cara que tirava sempre um sorriso da gente. Todo mundo no hospital está sofrendo com a morte dele. Do médico ao faxineiro", desabafou a técnica de enfermagem Marcia Dimas, colega de trabalho de Jorge por 16 anos.

Uma das irmãs dele, a enfermeira Catia Maria de Oliveira Andrade, 53, se aproximou do caixão, tirou os óculos para enxugar as lágrimas e sussurrou: "Não era assim que eu queria te ver". De luvas, a técnica de enfermagem Eliane de Oliveira Andrade Duarte, 47, também irmã de Jorge, acariciava a tampa de plástico que deixava o rosto à mostra em um caixão fechado, para minimizar o risco de contágio.

A gente sabe que, se fosse possível, esse cemitério estaria lotado de pessoas para poder falar do meu irmão. Ele abraçou a profissão porque gostava do que fazia. Meu coração está dilacerado

Eliane de Oliveira Andrade, irmã de Jorge

Na saída do cemitério, Catia Maria relembrou o último diálogo com o irmão antes da internação. "Ele me disse: 'Se a gente não se encontrar aqui, a gente se encontra no outro lado'".

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Dos primeiros sintomas à morte em 6 dias

Num intervalo de apenas seis dias, Jorge Alexandre de Oliveira Andrade evoluiu de um quadro de tosse, dores no corpo e falta de ar para um diagnóstico irreversível. Segundo o atestado de óbito, ele morreu às 20h30 de segunda-feira (13), em decorrência de pneumonia e de uma síndrome respiratória aguda grave.

Na ocasião, os médicos falaram aos parentes que os sintomas estavam relacionados ao coronavírus. Hoje, a família foi informada do resultado do teste, positivo para covid-19.

Na linha de frente no combate ao coronavírus, Jorge disse à noiva que não queria mais falar sobre a pandemia. "Ele dizia que era uma doença ingrata. E não queria mais falar sobre o assunto, porque tinha visto muita gente passando mal [por causa do coronavírus]", relembra Aline.

Na noite de 6 de abril, o técnico de enfermagem trabalhou pela última vez no Hospital Municipal Lourenço Jorge. No dia seguinte, sentiu os primeiros sintomas —falta de ar e muita tosse.

No dia 8, foi à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Campo Grande. Segundo parentes, saiu de lá com diagnóstico para infecção urinária. Mas o estado de saúde dele se agravou na última quinta-feira (9). Na sexta (10), foi a uma clínica particular, onde ouviu pela primeira vez que estava com suspeita de covid-19 e foi orientado a ficar em repouso.

Ele ficava deitado, com muito cansaço. Estava ofegante. Não conseguia falar, não conseguia comer. Foi tudo muito rápido

Aline Pinto Maia, noiva de Jorge

No sábado (11), o quadro se agravou. Jorge passou a vomitar e a ter diarreia.

No domingo (12), foi internado com 25% dos pulmões comprometidos. Por volta das 15h, foi submetido a novos exames e, às 20h, encaminhado para o CTI do hospital.

Com a piora do estado de saúde, Jorge não resistiu e morreu na segunda-feira (13). E, em seus últimos momentos, não teve a chance de estar com os parentes, já que estava isolado por causa dos sintomas de covid-19.

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No hospital, colegas apontam falta de equipamentos de proteção

Colegas de trabalho do técnico de enfermagem reclamam de falta de EPIs (equipamentos de proteção individual) no Hospital Municipal Lourenço Jorge, na Barra da Tijuca.

"Faltam capote, macacão, máscaras. O profissional da área de saúde está desesperado. A situação está fora de controle", lamentou a técnica de enfermagem Marcia Dimas. "Ainda não chegaram os testes para os funcionários. Em casa, a gente consegue se proteger. No trabalho, não", completou a colega Monica Nunes.

Irmã de Jorge, a técnica de enfermagem Eliane de Oliveira Andrade Duarte também se queixou. "O profissional da área de saúde dá a cara a tapa e não tem condições de trabalho. Muita gente nos hospitais está sem EPI para trabalhar. Foi o caso do meu irmão", criticou.

"Eu sou hipertensa. E só não estou trabalhando hoje [ontem, dia 14] porque o meu irmão morreu", desabafou a enfermeira Catia Maria de Oliveira Andrade.

Ontem à tarde, Marcelo Crivella (Republicanos), prefeito do Rio, anunciou a chegada de 180 toneladas de equipamentos médicos. Segundo ele, a primeira remessa chegará no dia 27 de abril. O restante do material será entregue até 27 de maio, disse Crivella. "Estão vindo 3 milhões de máscaras. Virão, também, óculos e luvas", disse.

O UOL procurou a Secretaria Municipal de Saúde sobre as críticas ao hospital Lourenço Jorge, mas a pasta ainda não se manifestou.

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Hospital tem 60 profissionais afastados, dizem funcionários

Uma funcionária do Hospital Lourenço Jorge, que optou pelo anonimato, diz que ao menos 60 profissionais da unidade de saúde foram afastados das suas atividades por causa do coronavírus. O grupo é formado por pessoas com mais de 60 anos, doenças crônicas e por profissionais com covid-19 ou sintomas da doença.

"Também temos 11 pessoas internadas com covid-19 e outras cinco entubadas", disse.

Ela contou que o auxiliar de enfermagem Jorge Alexandre de Oliveira Andrade tinha contato com pessoas infectadas. "Ele convivia com esses pacientes. Assusta ver um colega indo embora por ter sido infectado dentro do hospital."

Beatriz Oliveira, uma das filhas de Jorge, postou um texto com um desabafo em seu perfil no Facebook.

Quando vocês vão entender que isso é de verdade? Quando vão parar de fazer festa, de bater perna, de viver de futilidades? O cara que morreu hoje não é apenas um número na estatística. É um pai, um amigo, um profissional que tava trabalhando pra cuidar da vida das pessoas

Beatriz Oliveira, filha de Jorge Alexandre

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde ainda não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem.

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Morte é investigada por conselho de enfermagem

O caso envolvendo o técnico de enfermagem Jorge Alexandre de Oliveira Andrade está sendo monitorado pelo Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), que já fiscalizou 3.772 unidades de saúde no país.

Em entrevista ao UOL, o enfermeiro Eduardo Fernando de Souza, do comitê gestor de crise da entidade, disse que o caso pode até ser encaminhado ao Ministério Público ou ao Ministério do Trabalho.

O Jorge tinha histórico de diabetes e continuava trabalhando. Ele se enquadrava no grupo de risco. O Ministério da Saúde recomenda o afastamento de todos os profissionais nessas condições

Eduardo Fernando de Souza, do Cofen

Segundo Souza, o técnico de enfermagem também poderia ter sido desviado de função. "Ele deveria ser readaptado em funções administrativas, sem contato direto com os pacientes. Mas ainda estamos estudando o caso para tomar a medida mais adequada".

Em apenas cinco dias, o Cofen recebeu mais de 1.600 denúncias anônimas repassadas por profissionais da área de saúde envolvendo falta de EPIs ou más condições de trabalho. "Apesar do anonimato, o profissional de saúde ainda tem medo de fazer a denúncia e sofrer represália. Nós estamos deixando de receber denúncias porque o funcionário tem medo de perder o emprego", explicou.

O Cofen contabiliza os profissionais afastados —casos confirmados (351) e suspeitos (2.742)—, internações (127) e óbitos em decorrência da pandemia. São 19 mortes de profissionais que testaram positivo para a doença e outros dez óbitos em investigação.

Somados, os estados do Rio e São Paulo contabilizam 54,6% dos profissionais afastados de suas funções e em isolamento social por estarem com sintomas compatíveis com a covid-19. O Rio registra 759 afastamentos, e São Paulo, 738 casos. Santa Catarina aparece em terceiro lugar, com 254 registros.

Reprodução da internet

No hospital, oração, aplausos e 1 minuto de silêncio

Colegas de Jorge Alexandre no hospital postaram homenagens nas redes sociais e organizaram uma espécie de sepultamento virtual em frente ao hospital onde o técnico de enfermagem trabalhou por 16 anos.

"Não podemos ir ao enterro. Então, nossa homenagem e reconhecimento será dessa maneira, no mesmo horário do sepultamento. Obrigada por você existir, amigo", postou uma colega, no Facebook, na legenda de uma foto com mais de 30 funcionários do Lourenço Jorge, com balões brancos em frente à unidade.

O grupo também gravou um vídeo, com oração, aplausos, lágrimas e um minuto de silêncio.

Em outra foto, dentro do hospital, profissionais de saúde uniformizados seguravam cartazes para compor uma mensagem. "Jorge Alexandre, nosso amigo da enfermagem. Sentimentos, saudades. Que Deus conforte os corações em luto. Descanse em paz. Homenagem de seus amigos".

E, em seguida, retomaram a rotina de trabalho. A luta contra o coronavírus continua para quem está na linha de frente do hospital.

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