Mudanças no Enem

Discussões sobre reformulação da prova avançam junto às preocupações com a implementação do novo ensino médio

Ana Carla Bermúdez Colaboração para o UOL ADAILTON DAMASCENO/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Principal porta de entrada para o ensino superior no Brasil, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) completará 25 anos em 2023. O exame, que já teve uma grande reformulação ao longo de sua história, passará por mais uma mudança estrutural em breve.

A primeira remodelagem da prova aconteceu em 2009, 11 anos depois da criação do Enem, em 1998. Antes, o exame tinha como objetivo avaliar a qualidade do ensino médio no país. Com a mudança, o Enem passou a ter cara e conteúdo de um vestibular unificado e nacional, estrutura que foi sendo amadurecida até chegar ao que se conhece da prova hoje.

Mais de dez anos depois desta primeira grande modificação, o Enem será reformulado novamente. A medida é consequência direta da reforma do ensino médio, que institui uma nova organização para o currículo desta etapa de ensino e à qual o Enem também deve, portanto, ser adaptado.

A reforma passa a valer na prática a partir deste ano e deve estar integralmente implementada em todas as escolas de ensino médio do país até 2024. As modificações no Enem devem respeitar o mesmo limite de prazo.

"O novo ensino médio se baseia na flexibilidade curricular, na diversificação e na interdisciplinaridade. Esses três eixos precisam ser respeitados, considerados e ajustados no novo Enem", afirma Maria Helena Guimarães de Castro, presidente do CNE (Conselho Nacional de Educação) e ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pela aplicação da prova.

As discussões para a construção de uma nova estrutura já foram iniciadas, mas caminham a passos lentos. Especialistas ouvidos pelo UOL alertam que, para uma reformulação como essa, o tempo pode acabar sendo curto e apontam ainda uma série de desafios a serem enfrentados no percurso —entre eles, as recentes limitações orçamentárias para a educação, a crise no Inep e a realização das eleições presidenciais em outubro deste ano.

Gabriel Moreira/UOL Gabriel Moreira/UOL

A reforma do ensino médio e o impacto no Enem

Apresentada por meio de Medida Provisória, a reforma do ensino médio virou lei em 2017, no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB). Norteado pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular), o currículo do novo ensino médio prevê, entre outros pontos, a organização das disciplinas em quatro áreas de conhecimento, que são:

  • Linguagens e suas tecnologias;
  • Matemática e suas tecnologias;
  • Ciências da natureza e suas tecnologias;
  • Ciências humanas e sociais aplicadas.

O objetivo é que, neste modelo, as disciplinas que antes eram trabalhadas de forma individual agora sejam estudadas e exploradas de forma conjunta e interdisciplinar. É o caso, por exemplo, de biologia, física e química, que integram a área de ciências da natureza e suas tecnologias.

Esta é, portanto, uma das mudanças que deve ser aplicada no Enem. Uma proposta inicial é que o primeiro dia do Enem tenha uma prova de abordagem interdisciplinar, sem divisão por matérias, para avaliação da formação geral do aluno. A ideia é que também seja aplicada neste primeiro dia a prova de redação.

Apresentado pelo CNE, este plano já recebeu o apoio do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação). O MEC (Ministério da Educação) e o Inep ainda não referendaram a proposta, mas sinalizaram que devem trabalhar neste sentido.

A reforma prevê, ainda, o oferecimento de itinerários formativos. É a sua principal inovação: uma parte mais flexível do currículo, em que o aluno pode escolher a área em que deseja se aprofundar no ensino médio.

Pela lei, pelo menos 40% da carga horária total do ensino médio deve ser dedicada aos itinerários, que são divididos em cinco grandes áreas: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e sociais e formação técnica e profissional. Cada rede de ensino ou escola particular pode ter diferentes itinerários, sendo obrigatório oferecer ao menos duas opções para os alunos.

É justamente nesta etapa que aparece, hoje, a maior dificuldade para a construção de um novo modelo para o Enem.

"Como é que você faz um exame de seleção em nível nacional, e que precisa ser justo, sendo que existe uma diferença entre todas as redes em termos de currículo e de opções que são dadas aos alunos?", questiona Vitor de Ângelo, secretário de Educação do Espírito Santo e presidente do Consed. "[É preciso] criar uma forma de equalizar essa nota, de equalizar os alunos no mesmo nível, e isso é muito difícil", diz.

Nas discussões para a reformulação do Enem, realizadas principalmente entre MEC, Inep, Consed e CNE, uma proposta para o segundo dia do exame é que o aluno possa optar entre quatro provas diferentes, estruturadas a partir das competências e habilidades relacionadas aos itinerários formativos. É cogitada a possibilidade de haver questões discursivas nesta etapa.

O CNE sugeriu, ainda, a criação de um bônus na nota dos alunos que optarem pelo itinerário profissionalizante no ensino médio. Até o momento, no entanto, não há consenso sobre o formato a ser adotado no segundo dia do Enem.

André Porto/UOL

Desafios no caminho

Se a construção de um novo modelo para o principal exame de seleção para o ensino superior no país já não é fácil, há ainda uma série de obstáculos a serem enfrentados no caminho.

Um deles é o questionamento da própria reforma do ensino médio. Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que "a reforma tem encontrado uma série de desafios para ser implementada porque ela é descolada da realidade educacional, da realidade dos investimentos e da própria infraestrutura das escolas".

Parte da comunidade escolar, além disso, classifica a reforma como "autoritária" pelo fato de a medida ter sido apresentada por meio de uma Medida Provisória.

João Marcelo Borges, professor e pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas), defende a necessidade da reforma, mas afirma que a percepção —a seu ver, correta— de que a medida foi algo "mais imposto do que discutido" prejudica a implementação do novo currículo e limita o debate sobre o novo Enem, que acaba ficando na mão de poucos especialistas.

Não é algo simples, porque o Enem é a principal porta de entrada para o ensino superior. É uma política que já foi reformulada outras vezes e que agora é ainda mais central no processo de avaliação entre a educação básica e o ensino superior. Então, ela não pode ser feita às pressas e muito menos sem um debate de gestão democrática dessa política."

Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Letícia Mutchnik/UOL

Restrições no orçamento e crise no Inep

Outra preocupação é o cenário de restrição nos investimentos ligados à educação —um dos principais alvos de cortes no Orçamento de 2022, o MEC perdeu recursos estimados em R$ 800 milhões.

Em meio a esse cenário, aparecem ainda as limitações do atual Banco Nacional de Itens do Enem e a crise no Inep. No ano passado, mais de 30 servidores do instituto entregaram seus cargos às vésperas da realização do exame e assinaram uma carta coletiva citando a "fragilidade técnica e administrativa da atual gestão máxima do Inep". O presidente do instituto, Danilo Dupas, foi acusado pelos servidores de assédio moral e de tomar decisões sem critério técnico.

"Temos um órgão de certa maneira paralisado, cujos principais especialistas se sentem desmotivados ou, então, silenciados", afirma Borges. Somado à falta de investimentos necessários para a pesquisa e construção do novo modelo da prova —incluindo a elaboração de novas questões—, esse cenário, segundo ele, pode comprometer a qualidade do novo Enem.

"Se a gente não tiver uma mudança, uma reestruturação e um fortalecimento do Inep como um órgão de assessoramento do Estado, que é um órgão técnico, sério e científico, a gente pode ter problemas nas próximas edições do Enem", concorda Pellanda.

Ilton Rogerio/Getty Images/iStockphoto Ilton Rogerio/Getty Images/iStockphoto

Eleições no fim do ano e corrida contra o tempo

Em meio ao planejamento para o novo o Enem, o país passará por um processo eleitoral que determinará se haverá ou não uma nova gestão federal em 2023.

Para o presidente do Consed, é preciso atentar para que eventuais trocas no Inep ou no MEC, mesmo em caso de reeleição do atual governo, não atrasem ainda mais o planejamento do novo modelo do exame.

"O que não pode acontecer é que se perca a cadência desse processo", diz ele, que afirma já estar preocupado com o ritmo atual das discussões. "Que horas vamos começar a produzir as matrizes, a elaborar as questões, a fazer os testes necessários das perguntas?", questiona.

Borges também demonstra essa preocupação. "Se o Brasil tiver que fazer, em 2024, um novo Enem com duas etapas, provas discursivas e um novo banco de itens totalmente desenvolvido para essa estrutura, vamos ter que correr muito —e mal vamos testar essas metodologias antes de expôr os alunos a elas", afirma.

O Enem foi implantado em 1998, sofreu uma mudança em 2009 e para 2024 vai ter uma outra. Acho que faz parte de um processo de adequação, atualização e de compromisso do Enem com as mudanças do nosso século. Não dá para manter o Enem com aquele desenho de 1998, nem com o desenho atual."

Maria Helena Guimarães de Castro, presidente do CNE e ex-presidente do Inep

ADAILTON DAMASCENO/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO ADAILTON DAMASCENO/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Linha do tempo do Enem

  • 1998 - Primeira aplicação do Enem. Exame tinha 63 questões objetivas interdisciplinares e uma redação, aplicadas em um só dia de prova
  • 2005 - Primeira edição do Prouni (Programa Universidade para Todos), que oferece bolsas de estudo em instituições privadas de ensino superior com base no desempenho dos candidatos no Enem
  • 2009 - Primeira grande reformulação da prova. Com 180 questões objetivas divididas entre quatro áreas de conhecimento e a redação, o Enem passou a ser aplicado em dois dias (sábado e domingo). A TRI (Teoria de Resposta ao Item) também passou a ser utilizada
  • 2010 - Primeira edição do Sisu (Sistema de Seleção Unificada), que oferece vagas em instituições públicas de ensino superior de todo o Brasil a candidatos que fizeram o Enem
  • 2017 - Após a realização de uma consulta pública, o Enem deixa de ser realizado em um só fim de semana e passa a acontecer em dois domingos consecutivos
  • 2024 - Prazo limite para a adequação do Enem às mudanças no currículo do ensino médio
Topo