Kátia, o tio e o pai viajavam pela Bacia do Amazonas num barquinho capenga. Eles se revezavam na lata usada para jogar fora a água que não parava de entrar.
Bateu a fome e a menina sabia que havia três pedaços de peixe numa panela e queria o do meio. O pai adotou a psicologia infantil: quem esgotasse mais o barco poderia escolher primeiro.
Eu abaixei e meu cabelo enroscou no eixo do motor. Na hora que ele pegou, arrancou meu cabelo com couro e tudo. Para piorar, me jogou para [a parte de] baixo do barco, que estava cheia de água. O que sobrou do meu cabelo estava preso ao eixo e eu embaixo da água. Era tanto desespero que eu apertava o eixo com as mãos tentando fazer parar de girar. Elas ficaram em carne viva. Meu tio desligou o motor e jogou uma faca para meu pai. Ele cortou o que sobrou do meu cabelo para eu não morrer afogada. Levou minha orelha junto.
Alguém conseguiu uma voadeira (modelo de lancha rápida) e a garota chegou ao hospital de Lábrea (AM) em três horas. O médico jogou Kátia embaixo da torneira e esfregou a cabeça com uma escova.
"Eu gritava: 'Papai me tira daqui, papai me tira daqui'. E meu pai, chorando, não podia me tirar de lá".
Kátia Valério Batista da Silva tem 46 anos hoje. Sua história aconteceu em 1982. Mudou o século, e mulheres e crianças continuam a ter cabelos arrancados em acidentes com barcos na Bacia do Amazonas. Cássia Hellem da Gama Lima tem 15 anos e também não consegue contar sua história sem chorar. Ela sofreu escalpelamento ano passado.