Navegando pela dor

Mulheres escalpeladas em acidentes de barco na Amazônia perdem o cabelo, a saúde e o amor próprio

Felipe Pereira Do UOL, em Belém Lucas Lima

Kátia, o tio e o pai viajavam pela Bacia do Amazonas num barquinho capenga. Eles se revezavam na lata usada para jogar fora a água que não parava de entrar.

Bateu a fome e a menina sabia que havia três pedaços de peixe numa panela e queria o do meio. O pai adotou a psicologia infantil: quem esgotasse mais o barco poderia escolher primeiro.

Eu abaixei e meu cabelo enroscou no eixo do motor. Na hora que ele pegou, arrancou meu cabelo com couro e tudo. Para piorar, me jogou para [a parte de] baixo do barco, que estava cheia de água. O que sobrou do meu cabelo estava preso ao eixo e eu embaixo da água. Era tanto desespero que eu apertava o eixo com as mãos tentando fazer parar de girar. Elas ficaram em carne viva. Meu tio desligou o motor e jogou uma faca para meu pai. Ele cortou o que sobrou do meu cabelo para eu não morrer afogada. Levou minha orelha junto.

Alguém conseguiu uma voadeira (modelo de lancha rápida) e a garota chegou ao hospital de Lábrea (AM) em três horas. O médico jogou Kátia embaixo da torneira e esfregou a cabeça com uma escova.

"Eu gritava: 'Papai me tira daqui, papai me tira daqui'. E meu pai, chorando, não podia me tirar de lá".

Kátia Valério Batista da Silva tem 46 anos hoje. Sua história aconteceu em 1982. Mudou o século, e mulheres e crianças continuam a ter cabelos arrancados em acidentes com barcos na Bacia do Amazonas. Cássia Hellem da Gama Lima tem 15 anos e também não consegue contar sua história sem chorar. Ela sofreu escalpelamento ano passado.

Religião, urgência e perigo

Cássia Hellem e Kátia não foram vítimas ocasionais — 60% dos escalpelados são crianças, de acordo com a Marinha.

Elas também tem o perfil mais comum das vítimas porque eram pessoas do sexo feminino e moram em localidades ribeirinhas nos fundões da Amazônia. Gente com o modo de vida tão adaptado ao rio que vive em casas sobre palafitas para evitar inundações na época da cheia. Pessoas que se criam sobre um barco feito nos fundos de casa porque dependem dele para ir à escola, igreja, banco, visitar parentes ou qualquer outro deslocamento.

A explicação é de Darci Lima, presidente da Orvam (Organização dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor), com sede em Belém. Ela acrescenta que tratam-se de mulheres quase sempre evangélicas que não cortam o cabelo por motivos religiosos.

"Os ribeirinhos tem no rio o meio de sobreviver. Eles ganham dinheiro com a pesca e, nas férias, transportando gente para a Ilha de Marajó (PA). São pessoas que vivem em lugares isolados, [a uma distância de] dias de barco de um centro urbano".

Darci e os outros integrantes da Orvam fazem um trabalho de conscientização com esta população e contam com apoio da Marinha. A instituição doa e instala coberturas nos eixos dos barcos, anulando as chances de acidente. Foram fixadas 299 coberturas neste ano, informou o Comando do 4º Distrito Naval.

"A cultura de risco propicia que os ribeirinhos, no geral, não percebam o risco eminente de não instalar o equipamento de proteção", explicou a comunicação social da Marinha.

Existe uma lei de 2009 que obriga a usar a proteção, mas ela é ignorada. A presidente da ONG diz que muitos ribeirinhos não fazem a adaptação porque o reparo faria eles ficarem sem o barco por três ou quatro dias, algo complicado para quem depende do rio. O outro motivo é de segurança. Um barco pode ser reconhecido, um motor, não.

"Quando eles terminam de usar o barco, tiram o motor. Se por a cobertura, não tem como fazer isso. Os bandidos levam o barco, destroem em alguma margem de rio e levam o motor para colocar em outra embarcação."

Dor e mais cirurgias

A exposição dos eixos continua e os acidentes também. Às vezes, sobrancelhas e orelhas também são arrancadas.

As mulheres logo aprendem que terão décadas de convívio com a dor. A recuperação começa com partes das costas e coxas retiradas para enxerto. A vítima se torna íntima da sala de cirurgia. "Eu me achava forte. Mas fiz quatro operações e na última deu um frio na barriga na hora de entrar para sala de cirurgia. Medo de não voltar mais", confessou a garota Cássia Hellem.

A presidente da Orvam explica que é muito raro alguém morrer no acidente ou em consequência dele. Mas sequelas e sofrimento são certezas. Cássia Hellem estava a sete horas de barco da Ilha de Marajó (PA) quando sofreu escalpelamento.

Pedindo o absurdo

Ivanete Ramos da Gama, 38, é mãe de Cássia Hellem e achou que a filha ia morrer no barco. Ficou com o coração apertado vendo a filha desorientada de tanta dor e a única coisa que pode fazer foi colocar uma camiseta sobre a cabeça dela.

Com Kátia foi diferente. Ela não prestava atenção aos ferimentos da cabeça. Sentia dores lancinantes nas mãos por ter tentado parar o eixo com elas. Chegou ao ponto de fazer uma proposta indecorosa ao pai.

Como minha mão doía muito, eu pedia para o meu pai atorar minhas mãos. 'Papai, se você me ama, atora minhas mãos'. Eu falava isto o tempo inteiro no hospital. Foi a maior dor que senti na minha vida.

Recuperando o couro cabeludo

Depois que a lesão do escalpelamento cicatriza, vem a parte de tentar recuperar o couro cabeludo. As mulheres inserem uma bolsa de silicone por baixo do que restou de pele no topo da cabeça. A técnica se chama expansor.

A cada semana, elas bombeiam soro fisiológico para inflar a bolsa e exigir que a pele estique. Na parte final do tratamento, a bolsa é retirada e os centímetros ganhos cobrem uma fração do crânio. O procedimento dura anos e recruta toda capacidade das vítimas em lidar com a dor.

Vergonha, bullying e raiva

As vítimas de escalpelamento usam touca, chapéu, boné ou peruca para esconder a cabeça sem cabelos. Infecções no couro cabeludo ao longo da vida são comuns. Muitas mulheres evitam biquínis e roupas curtas para não mostrar as cicatrizes nas costas e coxas por causa do enxerto.

A pessoa não se reconhece no espelho. Considera o reflexo uma versão avariada de si mesma. O isolamento é uma consequência.

Cássia Hellem não queria voltar para sua cidade por vergonha de reencontrar familiares. Ir para escola apavorava a adolescente. "Eu preferia ficar no hospital. Não gostava de sair na rua. Todo mundo me olhava e eu tinha vergonha. Pensava que já iam fazer bullying comigo".

Kátia tem 46 anos e uma trajetória que torce para a garota não repetir. Ela cansou de ser chamada de "careca", "pelada" e "cabeça de mamão murcho". A escola se tornou um martírio e foi deixada de lado.

"Desisti com 14 anos. Todo dia precisava cantar o hino nacional e os meninos ficavam na fila falando 'te pego, hoje eu te pego, depois eu te pego'. Na sala de aula, eu ficava imaginando o que ia sofrer no recreio. Eles roubavam minha touca, batiam na minha cabeça. Eu chorava muito, tinha medo, pavor".

O sofrimento floresceu o sentimento de vingança em Kátia. Ela se armou de uma Gillette e reagiu a importunação cortando o nariz de um colega. A sede de vingança continuou. Kátia subiu numa árvore e acertou outro menino com uma pedra.

Foi parar com o pai na delegacia. Na época, ela nem ligou. Queria causar mais dor. Demorou a mudar de opinião.

Tentativa de suicídio e submissão

A vida adulta de Kátia seguiu desumana. Aceitou a violência doméstica do marido durante 20 anos porque achava que nenhum outro homem aceitaria uma mulher escalpelada. Ela escondia as marcas de agressão. Também cortava o pé para ter desculpa de não sair à rua.

O medo de ficar sozinha, combinado com não se achar merecedora de afeto, fazia comprar amigos com mimos. Enganava a solidão se cercando de interesseiros, mas a dor do espírito só fazia acumular. A rotina ficou insuportável e Kátia radicalizou: "Me mato e pronto", falou para si mesma.

Pegou uma corda de varal, amarrou no lustre do quarto e pulou. "Minha salvação foi minha sobrinha. Ela foi na minha casa pegar uma forma para fazer bolo. Quando me viu, gritou. Ela pegou uma faca e cortou a corda."

Kátia já tinha tentado o suicídio. Resolveria tentar a sorte.

Um nascimento inusitado

O escalpelamento é um problema tão presente no Pará que existe um dia de combate e prevenção a estes acidentes.

Em 2011, houve uma campanha na Praça da República, a principal de Belém, e duas mulheres pediram para a assistente social escrever uma carta para Gugu. Elas queriam do programa duas perucas de silicone e um computador para Orvam, ONG que dava os primeiros passos naquele ano.

A instituição vingou. Tanto que chegou aos ouvidos de Kátia no Amazonas que a Orvam trabalha em parceria com a Santa Casa de Belém, oferecendo tratamento clínico e apoio psicológico. Foi a primeira vez nos 37 anos desde o acidente que Kátia teve acesso a uma assistente social e psicóloga.

No dia que falei por telefone, não acreditei. Quando a esmola é demais, o santo desconfia. O tratamento é muito bom e também vi que existem outras pessoas com este problema. Antes, eu falava que parecia um monstro. Eu me libertei.

Trabalhando de graça

Se a Orvam mudou a vida de Kátia é porque Gugu leu a carta e fez mais do que o solicitado. A produção do programa entendeu que enviar perucas era pouco e mandou um profissional especialista em confeccionar perucas para ensinar as mulheres da Orvam.

Escolheram Luiz Crispim, dono de um dos melhores melhores salões do Brasil e que atende artistas com Anitta, Ivete Sangalo e Marina Ruy Barbosa.

"Eu confesso que chegando lá fiquei preocupado achando que elas não iam aprender. A maioria delas eram mulheres que se escondiam. Tanto que eu tive de fazer um trabalho de psicologia. Atendi cada uma delas dentro do banheiro, porque não tinha sala. Pedi para elas tirarem a peruca e conversei para entender quem eram e descobrir quais tinham a autoestima preservada. Estar com o psicológico abalado dificulta muito o aprendizado".

O cabeleireiro tinha somente 10 dias e percebeu que não seriam suficientes. Bancou do próprio bolso mais 10 dias em Belém para ensinar o básico. Deixou a cidade sabendo que fez o bem, mas achando que podia fazer mais.

Sensibilizado com a situação das mulheres que jamais teriam os cabelos de volta, Luiz Crispim aproveitou uma promoção de passagem aérea para convidar uma das mulheres da Orvam para passar um mês em sua confecção de perucas aprendendo o ofício. Balbina Barbosa Figueiredo Neta baixou em São Paulo em setembro de 2011.

Balbina é um símbolo


A escolhida foi vítima de escalpelamento e não costura perucas como alguém que executa um trabalho. Balbina tem a exata noção do que as perucas representam para as mulheres acidentadas. .

Ela voltou a Belém para cumprir uma missão.

Uma pessoa tímida não pode ter cabelão de festa. Ter um visual igual ao de antes do acidente ajuda a se reconhecer. Balbina repassou os ensinamentos às colegas e ficou na Orvam até o começo deste ano.

Em 2019, mudou para São Paulo e trabalha com o antigo professor. Agora, o papel de Balbina é diferente — maior. Ela representa a volta por cima. As pessoas falam com admiração da mulher escalpelada que recuperou o amor-próprio, ajudou as demais e hoje está num dos melhores salões de perucas do Brasil.

Cássia Hellem conhece a história e não vai desistir da escola, de se formar em Direito e ser delegada. Por muito tempo, as mulheres escalpeladas não tiveram sequer esperanças. Hoje, elas têm mais que isso.

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