Realidade desvelada

O que aprendi ao ser barrada na Arábia Saudita por estar sem túnica e véu

Luciana Amaral Do UOL, em Riad* AFP / FAYEZ NURELDINE

Nos últimos anos, a Arábia Saudita promoveu reformas para dar mais liberdade às mulheres e garantir direitos que eram exclusividade dos homens por aqui, como a licença para dirigir e ir ao estádio de futebol — ainda que em arquibancada exclusivamente feminina.

Tive a oportunidade de visitar o país e ver de perto uma das grandes mudanças anunciadas nesse sentido.

Há menos de dois meses, o governo saudita anunciou que estrangeiras não precisam mais vestir a abaya (túnica que cobre todo o corpo, em geral, preta) e o hijab (véu sobre a cabeça e pescoço).

Mas nas ruas de Riad, a capital saudita, a aceitação a essas novas regras não é uniforme. Horas antes de retornar ao Brasil, depois de ter acompanhado viagem do presidente Jair Bolsonaro (PSL) ao país, fui barrada ao tentar entrar em um shopping center por não estar "devidamente vestida".

José Dias/PR

O primeiro choque cultural se deu no portão de embarque em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde fiz escala antes de chegar a Riad.

A esmagadora maioria dos passageiros era formada por homens: mulheres passaram a poder viajar para o exterior sem autorização de "responsável" só em agosto deste ano.

As restrições não se dão apenas no direito de ir e vir. Mas também no de interagir.

Na Arábia Saudita, homens não podem se dirigir a uma mulher que não seja sua parente. Muito menos encostar ou trocar apertos de mão.

Um efeito prático dessas restrições era sentida no voo. Nada de conversinha entre os passageiros. O voo para Riad foi, sem dúvidas, o mais silencioso que já peguei.

AFP

A situação das mulheres sauditas em relação à vestimenta é nebulosa.

Em Riad, um assessor do governo saudita me disse de forma empolgada que as mulheres estavam liberadas da obrigação de cobrirem a cabeça ou usarem a abaya, a túnica.

Ao ser questionado sobre quantas já havia visto sem a abaya, respondeu que só uma. O clima de entusiasmo se perdeu.

A Arábia Saudita vem empreendendo um esforço de se mostrar um país mais aberto e, consequentemente, atrair indústrias e turistas para não depender tanto da flutuação do preço do petróleo.

Na última noite resolvi abandonar um pouco a roupa típica, consciente de que não estaria infringindo a lei. Acabei sentindo na pele a pressão por parte da população - apenas homens, na verdade - para que tudo continuasse como era.

Luciana Amaral, sobre a tentativa de andar em Riad sem véu

Luciana Amaral/UOL

Mas, apesar das mudanças graduais, quem caminha pela capital do país percebe que a maioria das mulheres continua se vestindo e se portando de acordo com costumes inspirados na interpretação ultraconservadora da sharia, lei islâmica. Pelo menos em público.

É comum ver mulheres até com burca, vestimenta que cobre todo o rosto e tem apenas uma rede para que a mulher enxergue, ou com o nicabe, que deixa os olhos descobertos.

Acessórios como bolsas e relógios são os meios para se destacar e mostrar personalidade.

Perguntei a várias sauditas qual o critério para escolher entre o hijab, nicabe ou a burca. Elas afirmam que não há regra, que a escolha é pessoal. Mulheres de uma mesma família, por exemplo, podem usar véus diferentes.

Ao longo da semana em que estive no país, procurei andar com a abaya (a túnica) e o hijab (o véu).

Com outros dois jornalistas brasileiros, tentamos visitar o Museu Nacional da Arábia Saudita. Mas fomos avisados que seria preciso ter reservado um horário com jantar ao custo de R$ 450. Desistimos e resolvemos conhecer um dos shoppings da capital — num país desértico, shopping com ar-condicionado é a opção.

Apesar de ter abandonado o traje usado pela maioria das sauditas naquela noite, eu estava discretamente vestida: calça comprida preta e lisa e camisa social branca. Nem colo, nem braços estavam à mostra.

Em Riad, todo centro comercial tem um raio-x pelo qual é preciso passar antes de entrar.

Ao colocar a bolsa na esteira do equipamento, o segurança do local passou a reclamar em árabe. Não entendemos o que queria dizer. Até pensei que me repreendesse por não ter deixado meu amigo passar na frente - é costume que as mulheres deem passagem aos homens em filas.

A segurança no outro raio-x nada falou em relação à minha amiga, também sem a peça. Continuei sem entender a situação, até que fez gestos com as mãos referentes à minha roupa. Sem abaya, não entraria. Essa era a mensagem.

Falei que o uso da abaya não era obrigatório para mulheres estrangeiras. Mas, ele continuou a reclamar e dali não sairia um diálogo produtivo. Desistimos. Antes mesmo de entrar, fomos expulsos.

Luciana Amaral/UOL

Enquanto caminhávamos em direção à rua, uma mulher saudita vestida com abaya de um roxo intenso e véu sem cobrir todo o rosto nos abordou, mostrou indignação com a atitude dos guardas e pediu desculpas. "Talvez eles não estejam sabendo da nova lei", disse.

Neste momento, o segurança se aproximou gesticulando e reclamando com ela por estar falando conosco.

Nossa nova amiga não o rebateu, mas continuou conversando conosco e nos sugeriu um restaurante que estava a poucos passos. Topamos.

Mesmo diante de um trajeto curto, coloquei um véu preto cobrindo os cabelos. Ainda assim, pelo menos quatro motoristas - todos homens - buzinaram. Houve quem chegasse a abrir a janela do passageiro para poder nos enxergar mais de perto.

Finalmente, chegamos. Fomos para um espaço com mesas vazias, mas um garçom disse que teríamos de ir para outra ala do salão, um pouco mais cheio.

Havíamos sentado no local reservado a solteiros em que, na prática, só se veem homens. Como éramos duas mulheres e um homem, tínhamos que ir ao espaço família.

Menu analisado, prato escolhido, começamos a conversar com o garçom: um filipino há oito anos na Arábia Saudita. Contamos o ocorrido de instantes atrás, e ele demonstra empatia, mas não surpresa. Ele diz que nas Filipinas, as mulheres são independentes e ocupam posições de destaque.

Em meio à refeição, chega o gerente do restaurante. Um homem saudita. 'Mais um bronca', pensei. Mas estava errada.

Com as mãos entrelaçadas junto ao peito, disse:

"Eu estou sinceramente muito feliz, mas muito feliz mesmo, que estejam aqui em nosso restaurante do jeito que vocês estão".

Para se redimir por um episódio em que eles não tiveram envolvimento, nos presentearam com café árabe e um bolo com duas velas e a frase "Bem-vindos a Riad".

Faisal Al Nasser/ Reuters

Aos poucos, fui percebendo que a Arábia Saudita é um país complexo e cheio de contrastes.

Apesar da abaya em público, as sauditas se vestem 'normalmente' em casa. Em outro shopping, vi lojas de marcas internacionais com roupas que poderiam muito bem estar em qualquer cidade brasileira: shorts curtos, minissaias e vestidos decotados. Mas não havia provador feminino.

Uma loja de maquiagem estava cheia de mulheres com nicabe e burca. Outra de lingerie mostrava peças na vitrine que talvez só sejam vistas em sex shops no Brasil.

Ao entrar em um Uber, amigas jornalistas contaram ao motorista que eram brasileiras e foram 'homenageadas' com uma trilha sonora 'típica': um funk carioca com palavras impublicáveis.

São talvez pequenos esforços individuais para tentar burlar o sistema — embora pareçam ser mesmo iniciativas minoritárias.

Nos dias em que estive no país, só vi quatro mulheres dirigindo na capital. Uma amiga gravou uma reportagem sentada no banco do motorista e relatou reações de choque por parte de um grupo de sauditas.

Em visita ao clube de futebol Al-Nassr, um dos mais populares de Riad onde jogam três brasileiros, ouvi um motorista dizer que não entendia a ida das sauditas aos jogos, já que futebol não é para mulheres. Ao mesmo tempo, o próprio clube divulgou em uma rede social vídeo de uma das repórteres brasileiras jogando bola no campo. Impensável há até poucos meses.

No centro de ciência e tecnologia do governo, fomos recebidos por uma chefe saudita, responsável por pesquisas genéticas, relatadas com um inglês fluente.

Após explicar o trabalho, deu entrevista para uma colega. Como o horário estava apertado, um assistente pediu que apressasse a fala duas vezes. Nas duas, a pesquisadora mandou o assistente esperar. A atitude ousada veio seguida de uma explicação mais tarde: ela é princesa.

Apesar do episódio no shopping, fomos muito bem tratados em todo momento. Por trás de véus e códigos de costume diferentes, há um povo hospitaleiro que tenta entender como combinar costumes conservadores com a abertura para o turismo.

Ao se despedir de mim na partida de Riad, um dos motoristas me entregou a bagagem e, num gesto inesperado e meio sem jeito, pegou minha mão e a apertou. Com um sorriso de ponta a ponta, disse: "Foi um prazer". Saiu rapidinho envergonhado, mas exultante pela coragem.

Topo