Cada um no seu quadrado

Muro de Berlim caiu, mas barreiras -- físicas, ideológicas e econômicas -- estão se multiplicando pelo mundo

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra (Suíça) Guilherme Zamarioli/UOL

Semanas antes de cair o muro de Berlim, uma diplomata europeia conta que esteve numa reunião em Bonn, na antiga capital da Alemanha Ocidental para um encontro com o governo. Ao deixar a sala, um dos diplomatas alemães a chamou para seu gabinete e mostrou uma caixa de champanhe.

Quando ela perguntou qual era a ocasião, levou um susto. "É para quando o muro cair. Vamos ter de repensar o mundo", disse o interlocutor no governo alemão.

A queda da estrutura de concreto e aço não representou apenas a derrota de regimes autoritários. Enquanto os eventos ganhavam uma dimensão histórica nas ruas da cidade, serviços diplomáticos, líderes internacionais e entidades se debruçavam para entender que mundo estava sendo criado diante de seus olhos.

Nos anos que se seguiram ao colapso da Cortina de Ferro, uma nova arquitetura mundial foi construída, cimentando o fim da Guerra Fria, tirando a ONU de uma letargia de décadas e dando esperanças de que as tensões poderiam ser lidadas por diálogos políticos.

Mas aquele momento também revolucionou o capitalismo, abrindo uma janela inédita para a globalização, já em andamento.

Nos últimos 30 anos, o comércio mundial se multiplicou e a interdependência entre economias se aprofundou. Havia ainda uma enorme esperança de que aquele símbolo de Berlim representasse também um reconhecimento de que os muros não funcionariam.

Os muros se multiplicaram. O capitalismo favoreceu o acúmulo de riqueza na mão de poucos, e o diálogo... Bem, o diálogo tornou-se uma gritaria — qualquer um pode checar nas redes sociais.

JAVIER TORRES / AFP JAVIER TORRES / AFP

Mundo murado

Para alguns dos principais políticos europeus e acadêmicos, porém, o mundo criado após o fim da Guerra Fria pode ter se esgotado. E uma prova disso é a multiplicidade de muros construídos nos últimos anos. Alguns deles de cimento, outros com alta tecnologia e centenas de outros ainda na forma de leis, tarifas e recusa em até mesmo a fornecer atendimento médico a um estrangeiro.

Em alguns governos, a construção de muros se transformou em uma promessa de campanha e um apelo eleitoral. Donald Trump, nos EUA, é o exemplo mais claro da instrumentalização do muro para chegar ao poder.

Mas ele não é o único. Na Europa, estudos realizados pela entidade Transnational Institute, de Amsterdã, confirmam que os muros se multiplicaram desde 1989. Hoje, os países da UE e do Acordo de Schengen mantêm muros que somam seis vezes o tamanho do Muro de Berlim.

Desta vez, o foco é combater a imigração irregular. Mas profundamente enraizado em governos com uma agenda nacionalista e com soluções visíveis ao eleitorado.

A tendência também é registrada pelo mundo. Um levantamento da Universidade do Quebec indica que, hoje, entre 70 e 75 muros estão em obras ou acabam de ser erguidos pelo mundo. Em 1989, as obras não chegavam a 15.

O cálculo da universidade aponta que, se todos os muros no mundo fossem alinhados num só local, completariam 40 mil quilômetros, o que seria suficiente para dar a volta ao planeta.

Jose Luis Gonzalez/Reuters Jose Luis Gonzalez/Reuters

É guerra

O nacionalismo também é econômico e traduzido não necessariamente em muros. Desde o ano passado, a guerra comercial iniciada pelos EUA contra a China conduziu a uma proliferação de tarifas aduaneiras, atingindo um total de US$ 400 bilhões.

Um dos resultados foi a queda na expansão do comércio internacional. Para 2019, as projeções da OMC é de uma expansão de apenas 1,2%, a terceira pior nos últimos 30 anos.

Trump insiste que sua guerra tem como finalidade redefinir as regras da participação da China na economia mundial e, assim, resguardar a economia americana. "A proteção conduzirá a uma maior prosperidade e força", prometeu.

Mas os indícios iniciais dos novos muros comerciais adotados por ele não confirmam sua tese de que o mercado deixado pelos chineses seria ocupado por empresas locais. Um levantamento da ONU revelou que, no primeiro semestre de 2019, dos US$ 35 bilhões de comércio afetados pelas barreiras americanas contra a China, o mercado acabou sendo preenchido por bens do México, Vietnã, Taiwan e até do Brasil, por um total de US$ 21 bilhões.

Ao UOL, um dos principais nomes da construção da UE depois da queda do muro, o francês Pascal Lamy, explicou que o evento em Berlim em 1989 "foi o fim da Guerra Fria, uma importante vitória do capitalismo sobre o comunismo e que abriu uma nova era de expansão para o capitalismo".

Segundo Lamy, essa foi "uma nova fase da globalização, entendida como uma intensificação das trocas internacionais de bens, serviços, finanças e pessoas".

Para ele, porém, o que as tensões atuais no comércio representam é um alerta a todos de que "o fim do muro de Berlim não foi o fim da história". "A globalização nada mais é que uma nova versão do capitalismo de mercado e não muda seus fundamentos, que são: eficiência, instabilidade, dificuldades sociais para alguns, impacto negativo para o meio ambiente", disse o francês que foi o comissário de Comércio da EU, chefe de gabinete de Jacques Delors e diretor-geral da OMC.

"Mas a desglobalização à la Trump seria pior", alertou. "A rivalidade EUA-China está aqui para ficar e a guerra comercial iniciada pelos EUA é apenas uma faceta disso, e provavelmente nem sequer seja a mais importante", disse.

Xinhua/Tang Ke Xinhua/Tang Ke

Nova ordem

30 anos depois do fim da Guerra Fria, o que se vê é o início de uma nova era e de uma disputa pela hegemonia militar e política entre americanos e chineses.

Politicamente, a euforia do início dos anos 90 deu lugar a um impasse perigoso. Se em 1989 americanos e países da Europa Ocidental se uniram para lidar com a nova realidade e desenhar um novo sistema, hoje o cenário é radicalmente diferente.

Putin deixou claro que sua atuação no Oriente Médio fará parte da nova diplomacia regional, lidera hoje a realidade sobre a situação na Síria, invadiu parte da Ucrânia e não hesita em fazer ameaças ao Ocidente. O recado é claro: o Kremlin exige ser reconhecido como uma potência.

Do outro lado do muro, a Europa ainda tenta se recuperar de sua pior crise em 70 anos e se vê obrigada a lidar com Brexit, promessas nacionalistas, questionamentos internos e um vácuo de lideranças. Londres sequer sabe que destino seu país tomará, enquanto a Espanha vive o temor do separatismo e o populismo toma conta das agendas eleitorais.

Já na outra margem do Atlântico, Donald Trump segue com sua agenda de desmontar tratados internacionais, tanto aqueles feitos depois do colapso da União Soviética, como os mais recentes, como o Acordo de Paris.

Tom Brenner/Reuters Tom Brenner/Reuters

Há poucos meses, a Casa Branca anunciou que abandonaria o tratado que previa a eliminação de 3 mil ogivas nucleares entre americanos e russos. Outros tratados do início dos anos 90 que regulavam as relações militares entre Washington e Moscou também poderiam ser abandonados.

Até mesmo a aliança militar mais poderosa do mundo, a OTAN, parece sob ameaça. Trump tem liderado duras críticas contra os governos europeus que não estariam contribuindo de forma adequada para as finanças do programa de segurança coletiva.

Não por acaso, nesta semana, o presidente francês Emmanuel Macron declarou à revista The Economist que chegou a hora de a Europa desistir de contar com os EUA para se defender. "Estamos atualmente vivendo uma morte cerebral da OTAN", disse.

Questionado se o princípio da aliança de que o ataque a um membro significaria um ataque contra todos, o francês apenas respondeu: "eu não sei".

Na ONU, o entusiasmo dos anos que se seguiram à queda do muro também deram lugar a um profundo pessimismo.

Com a profunda divisão e os muros nas comunicações entre as potências, a entidade não consegue dar uma resposta a crises e guerras como a da Síria, Iemen ou Venezuela.

Se não bastasse, vive sua pior crise financeira em décadas e chega a ser obrigada a desligar elevadores e reduzir a limpeza para conseguir chegar ao final do mês. O maior devedor: o governo de Donald Trump, justamente o governo que espera enfraquecer qualquer tipo de instrumento internacional que o obrigue a estabelecer canais de diálogo permanente e, eventualmente, o fim dos muros.

Leia também

ANDREAS VON LINTEL/AFP

A nova encruzilhada

Após 30 anos da queda do muro de Berlim, democracia vive nova crise

Ler mais
BStU/Jungert

Fake news na Guerra Fria

Polícia secreta da Alemanha Oriental já usava notícias falsas como arma

Ler mais
Topo