'Nasci em uma seita'

Três mulheres que cresceram em A Família foram isoladas e abusadas --e só agora entendem o que aconteceu

Heloísa Barrense Do UOL, em São Paulo

Aviso: este texto contém linguagem forte e relatos de abuso sexual, que podem servir de gatilho.

Eu nasci numa seita. Meus pais tinham 17 e 18 anos quando entraram para A Família. Para eles, esses movimentos eram interessantes, pois estavam inspirados pela revolução de Jesus. Uma coisa meio hippie da época, de mudança de vida e estrutura social, com uma questão musical forte. Eles tinham uma banda, todos tocavam violão e cantavam."

Alyssa Veiga, hoje com 28 anos, era a caçula de sete crianças e cresceu na seita fundada pelo californiano David Berg, em 1968, no auge da contracultura. Ela passou a infância entre o México e o Rio de Janeiro até que viu, aos 3 anos, uma casa que pertencia à sua avó ser transformada em um "lar".

Não qualquer lar, mas um "lar" para até 35 pessoas ligadas ao grupo A Família —que antes se chamava Os Meninos de Deus e que depois viraria A Família Internacional.

Demorou anos para que ela descobrisse que existia, do outro lado dos muros da comunidade, uma sociedade muito diferente daquela que ela conhecia. Foi aos 14 anos que ela pisou em uma escola pela primeira vez. E demorou mais uma década para que ela conseguisse minimamente compreender a violência a que foi submetida.

Mas ela não estava sozinha.

Era em um desses lares, em Santa Catarina, que moravam os pais de Andressa e Priscila Zgoda, outras duas mulheres da seita, que hoje têm 32 e 29 anos, respectivamente.

Elas não se conheciam na época e moravam a quilômetros de distância, mas perceberam agora, adultas, que viveram experiências semelhantes de isolamento e abusos sexuais.

Assim como os pais de Alyssa, os pais das irmãs Zgoda viram na seita uma oportunidade de conexão com Deus em um momento "meio hippies, muito cristãos", contam.

"Acreditaram em toda aquela promessa de vida envolvendo santidade sem um método tradicional. Até hoje eles não chamam de seita", explica Priscila.

O que só hoje as três mulheres conseguem entender mais claramente é que o grupo religioso buscava uma "revolução espiritual antes do apocalipse" e, para isso, associava Deus a sexo.

Ao UOL, a Família Internacional disse que a estrutura organizacional foi desmantelada em 2010 e funciona hoje como uma rede online com cerca de 1.300 pessoas, com uma política de tolerância zero com a violência desde 1986. Diz que se opõe ao abuso de menores "de qualquer forma, seja físico, sexual, educacional ou emocional".

Alyssa Veiga quando era criança e vivia n'A Família

Alyssa Veiga quando era criança e vivia n'A Família

"Deus vai curar"

Em comum, Alyssa, Andressa e Priscila tinham uma rotina rigorosa, isolada da vida em sociedade e marcada por ideologias extremas.

O grupo, por exemplo, era contra vacinas e cuidados médicos, obrigava que todos os estudos fossem feitos em casa, com livros doados e sem ordem cronológica nem pedagógica, proibia TV e impunha o inglês como idioma predominante.

Da infância, se lembram do momento de devoção, da oração bíblica e das leituras das doutrinas contidas nas Cartas de Mo —o Moses David, pseudônimo do líder David Berg, que morreu em 1994.

A partir dos 8 anos, surgem memórias das idas à rua com outras crianças para pedir doação, vender CDs ou participar de corais. As crianças só saíam da comunidade para "pregar a palavra".

Foram duas ou três vezes na infância inteira que lembro de ter tido contato com parentes. Uma vez, caí do beliche e quebrei o braço. Só fui levada ao hospital 24 horas depois, com muita dor, porque os líderes diziam que Deus ia me curar. Ou diziam que não era nada. Faziam isso com todos."
Priscila Zgoda, que passou os primeiros 15 anos pulando de lar em lar

O fundador da seita, David Berg, em material de divulgação do grupo

O fundador da seita, David Berg, em material de divulgação do grupo

"Pesca sedutora"

Depois de passar anos estudando confinadas, a orientação era ir para a rua aplicar aquilo que tinham aprendido nas cartilhas, especialmente um dos ensinamentos religiosos das cartas de Berg: o "flirty fishing" (pesca sedutora, em tradução livre).

Ou seja, seduziam para atrair sexualmente pessoas de fora para a seita e angariar fundos para a comunidade —parte do valor arrecadado era enviado diretamente para os líderes, muitas vezes em outros países.

A tática era demonstrada nas apostilas, usando inclusive imagens sexuais de crianças, denunciou reportagem do Fantástico, da TV Globo, de 1978, que teve acesso ao material da época.

Morávamos em mansões, e alguém conseguia desconto no aluguel flertando com o proprietário. Quando fiquei mais velha, com uns 12 anos, o discurso era: 'Você precisa dar a alma para isso. Tem de flertar com os homens para ganhar almas para Cristo. Tem de sorrir, fingir que está apaixonada'."
Andressa Zgoda

Embora elas contem que nunca sabiam onde estava ou o que faziam com esse dinheiro, havia bonificação por seguidores aliciados.

Esse contato com sexo era uma coisa comum. Tínhamos livros com desenhos de sexo e víamos as pessoas muito sensuais o tempo inteiro. Mas eu sabia que não estava confortável com a situação e questionava por que faziam aquilo. Aí ouvíamos sobre alguém que foi excomungado, outro que foi abusado. Era uma educação muito severa, de castigos físicos, que deixavam cicatriz. Lembro de perguntar algumas coisas aos líderes e eles dizerem que meu questionamento era armação do diabo."
Priscila Zgoda

Imagens com conteúdo sexual nas 'Cartas de Mo'

Imagens com conteúdo sexual nas 'Cartas de Mo'

Documentos foram exibidos no 'Fantástico' em 1978

Documentos foram exibidos no 'Fantástico' em 1978

"Deus é amor, amor é sexo"

Quando Alyssa pisou pela primeira vez em uma escola, percebeu que a vida que levava "não era normal" e que aquele contexto de hipersexualização estava condicionado à "normalização de muita coisa errada".

Era uma ideia de 'Deus é amor, e amor é sexo'."
Alyssa Veiga

A comunidade usava as relações sexuais para, segundo os líderes, expressar a devoção a Deus. Em outras palavras, sexo era "coisa de Deus" e não poupava as crianças de abusos em nome da fé.

Não se falava em consentimento ou em reprimir as violências. Pelo contrário, qualquer questionamento era mal visto e considerado "diabo no corpo", relatam.

Foi isso, acreditam elas, que as impediu de perceber os abusos que estavam sofrendo.

Todo mundo foi vítima de pedofilia. Não consigo nem contar quantas vezes foram, porque era no cotidiano, na nossa casa. Os adultos saíam do banho e deixavam a toalha cair no chão. Os mais velhos agarravam, passavam a mão, faziam piadas. Aos 7 anos, ouvia comentários como 'você vai crescer e ficar gostosa'. Mas tinha de ser educada. Todas as adolescentes que eu conheci, sem exceção, foram abusadas."
Alyssa

Agora, adultas e fora do isolamento, elas conseguem nomear as práticas: estupro de vulnerável (ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos).

Nos levava para um quarto [da soneca]. Fazia de uma forma que não tivesse penetração, para não deixar vestígios, com a mulher dele [de um integrante, encarregado de cuidar das crianças] consentindo. Na verdade, ela meio que nos raptava. Eu não entendia o que estava acontecendo, se era certo ou errado. Ele dizia que era sonho e que, se eu contasse para os meus pais, eles me abandonariam. Então, fingia que nada acontecia."
Priscila

Andressa lembra do mesmo homem —e de outros. "Eu tinha entre 10 a 11 anos, ele não chegou a encostar em mim, mas ficava se masturbando na minha frente enquanto eu e a esposa dele dormíamos na cama", conta.

Já Alyssa tem lembranças nítidas de abusos semelhantes praticados por quatro pessoas.

Aos 7, também foi violentada pelo responsável pelas crianças da comunidade e por um adolescente, de cerca de 16. Depois, aos 12, lembra de um homem de 22 anos e de um homem mais velho que morou na mesma casa que ela dos 5 aos 13 anos.

Era nosso cuidador: organizava nossas rotinas e, quando eu chegava de atividade ou ficava em casa sem meus pais, ele tinha mais acesso. Tudo era colocado como carinho, eu não entendia que estava sendo molestada."
Alyssa

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Como procurar ajuda: Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia.

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