O normal mascarado

Brasil ultrapassa 150 mil mortes enquanto aprende a conviver com a covid-19

Carolina Marins, Cleber Souza, Felipe Pereira e Marcelo Oliveira Do UOL, em São Paulo Andre Porto/UOL

Pouco mais de 200 dias depois da primeira morte por covid-19 ocorrer no Brasil, o país atinge agora 150 mil óbitos pela doença. Nesse período, estados e municípios decretaram quarentena, e alguns optaram pelo fechamento completo para conter o avanço do vírus. Ainda assim, o país somou números altos: mais de 5 milhões de infectados e o segundo país em mortes no mundo.

Se há sete meses a mensagem era "fique em casa" e São Paulo tentava alcançar 60% de isolamento social, hoje estados avançam rumo a aberturas de comércio, espaços de lazer e escolas. Nesse período, mais de 8 milhões de pessoas aderiram ao trabalho remoto, enquanto mais de 10 milhões foram afastadas do trabalho. O trabalho informal e o desemprego aumentaram.

Com as flexibilizações, as praias já lotam, São Paulo tem trânsito em vésperas de feriado e, aos poucos, o brasileiro volta a frequentar bares e restaurantes de forma "segura". Mas há quem ainda tenha medo de se infectar e contaminar seus entes queridos e, por isso, segue em isolamento. Outros, porém, não tiveram a opção de se isolar.

"As pessoas se acomodaram. A vida tem que seguir, mas com todo o cuidado. Eu estou na rua por necessidade, para levar o pão e o leite pra casa. E me cuido. Até a minha 'magrela' [bicicleta] eu higienizo", conta o entregador de aplicativo Humberto Luiz, de 41 anos.

"Sou uma das pessoas que, se não fosse o trabalho, o sustento da família, não sairia de casa. Tenho uma mãe com 68 anos, o medo de levar a doença pra dentro de casa é enorme. Tô me cuidando como posso", diz o vendedor de doces Daniel Silva, de 42 anos, que trabalha no Brás, região de comércio popular, e vê o movimento por lá aumentar.

Com tanto tempo de isolamento, o brasileiro tenta manter a saúde mental e busca maneiras de ver os amigos novamente, tomar um sol no parque ou só caminhar na rua. "Ouvi críticas duras quando foi o momento de cuidar da saúde mental e desci para a praia. Todavia, de sujeitos que passaram 'a quarentena' trabalhando em indústrias lotadas, pegando transporte lotado", conta Aelon Santos.

Mil mortes diárias

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Em 19 de maio, o Brasil registrou pela primeira vez mais de mil mortes confirmadas em um intervalo de 24 horas. Com pequenas oscilações para mais ou para menos, manteve-se nesse patamar até o início de setembro. Desde 15 de setembro, o país não registra mais de mil mortes confirmadas em um dia, segundo dados do Ministério da Saúde.

Segundo os dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil é até o momento o país que apresentou um dos platôs mais altos e por mais tempo no mundo. Além do país, somente Estados Unidos e Índia estabilizaram em mil mortes diárias. Enquanto EUA tiveram 55 dias de platô acima de mil, Índia tem até o momento 36 dias. O Brasil manteve essa média de mortes por cerca de 106 dias.

Após um prolongado período de quarentena, os cenários das cidades e o comportamento das pessoas mudam e tentam se adaptar a uma fase de aprendizado de convívio com uma doença para a qual ainda não há cura ou tratamento.

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Divisórias e recuperação

No centro de São Paulo, Roberto César Ribeiro, 54, que administra o restaurante Green Chef, foi além das regras básicas de aumentar a distância entre os móveis e medir a temperatura dos clientes —ele instalou uma divisória de aço e plástico transparente nas mesas. "Eu mesmo criei o modelo e instalei", conta, orgulhoso.

Após três meses só com delivery, o salão reabriu em junho. Antes da pandemia, servia até 350 refeições ao dia; hoje, de 70 a 90 —o ritmo de quando abriu, há três anos. "Estamos nos recuperando."

Alexandre Battibugli/Divulgação

Presidentes das ruas

"Enfrentamos a resistência e a falta de entendimento de que o vírus iria chegar na comunidade. Achavam que era uma doença de rico", conta Gilson Rodrigues, 36, líder comunitário em Paraisópolis. Uma das iniciativas da União de Moradores e do Comércio para ajudar moradores foi criar grupos de presidentes e vice-presidentes das ruas. São responsáveis por orientar vizinhos, distribuir cestas básicas e produtos de higiene e limpeza, além de ajudar crianças nas aulas remotas e identificar suspeitas de covid-19. Cada dupla "presidente e vice" cuida de cerca de 50 famílias. Hoje, a rotina está sendo retomada na comunidade.

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O papel do síndico

Síndico em dez condomínios de alto padrão e consultor em outros quatro, Luís Lopes, 58, atende cerca de 750 moradores nas zonas norte e oeste. Na quarentena, teve que fazer um "trabalho forte" também com os colaboradores. "Moradores não abriam a porta e nem pegavam nada das mãos deles. Era medo", conta. "Muitos funcionários andam de transporte público, um fator de risco. Mostrei a eles o quanto são importantes." Agora, os espaços de lazer dos condomínios foram liberados "com regras rígidas". A máscara e o álcool em gel são obrigatórios. "Como síndico, faço a minha parte."

Acervo Pessoal

Isolamento em casa

Debora Crocomo, 32, até hoje faz distanciamento social dentro de casa. Biomédica, desde março não abraça os pais, com quem vive, pois são do grupo de risco. Recentemente, passou a levar a mãe para caminhar em um parque, sem contato com ninguém e de máscara. Também se reúne os tios e primos para bingos e gincanas, sempre virtuais, além de lives com histórias da família. Até hoje, ninguém foi diagnosticado com a covid-19.

A gente que está levando mais a sério o isolamento se sente meio tonto, trouxa, ao ver todos vivendo normalmente. Mas aí surge que alguém faleceu e nem saía de casa e a gente pensa: 'Estou fazendo tudo certo, estou cuidando dos meus'.

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Reinvenção na pandemia

"Entendi que não era a única vítima da pandemia, estava difícil para todo mundo. E entendi que precisava fazer alguma coisa." O personal trainer Bruno Calado, 34, ficou abatido no começo da quarentena, depois de perder 90% dos alunos. Foram os pais e a noiva que o motivaram a encontrar novas formas de trabalhar. Organizou grupos de WhatsApp e deu aulas de graça para 500 pessoas por um mês. Ganhou visibilidade e patrocinadores. Hoje, faz publiposts de grandes marcas e criou um app. Tem fila de espera de clientes.

Reprodução Instagram

Fiscalização

O pai de Rebecca Momo, 25, mudou de casa no começo da quarentena, porque continuou trabalhando em um restaurante e não quis colocar a família em risco. "Meu pai parecia que ia para a guerra, um clima muito pesado. Fiquei com raiva. Briguei pelo Instagram com quem furou a quarentena." Há dois meses, ela se pegou confrontada pelo próprio discurso. Tinha se comprometido a dar aulas de inglês, como voluntária, na Tanzânia. Embarcou após o exame negativo. "Senti pouco de culpa, mas as crianças precisavam muito da minha ajuda."

Divulgação

Rotina restrita

Não entro no mar desde o ano passado. E a última vez no calçadão foi em março.

Morador de Santos, o escritor, professor e psicólogo Marcus Batista, 46, teve que abandonar a praia e a caminhada. Ele e a mulher, Beth, são do grupo de risco para covid-19. Ele é diabético, ela tem lúpus. Ficaram em casa, com os filhos de 18 e 10 anos, por três meses. Há quatro, só saem para o mercado e a farmácia, ou para ver os pais. Uma rotina que cabe num raio de 1,5 km.

Sem o mar, Marcus mergulhou na ficção. Escreveu 70 minicontos sobre a pandemia, que viraram o livro "(mini) histórias de uma gripezinha".

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"Saídas seguras"

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Apesar de o Brasil ter estacionado em números muito altos de casos e mortes, o isolamento social é cada vez menor e as "saídas seguras" vão se tornando comum. Para o neurocientista e coordenador do comitê científico do Consórcio Nordeste, Miguel Nicolelis, esse discurso é temerário.

A gente está, basicamente, normalizando a situação e criando riscos muito grandes. Porque no momento em que você começar a fazer esse tipo de coisa, você começa a baixar sua guarda e se expor a riscos que em sã consciência ninguém quer tomar. Nunca o país perdeu 150 mil pessoas como resposta a um único evento em sete meses.
Miguel Nicolelis, neurocientista

Segundo especialistas, a quarentena no Brasil em nenhum momento foi feita de maneira eficaz —com exceção de algumas regiões do país— e isso reflete nos números. Ainda assim, o movimento atual tem sido o de cada vez mais banalizar a doença e suas mortes.

Parte das pessoas, fundamentalmente as autoridades, banalizaram a epidemia. Como se essas mortes fossem normais, mas não são. Ainda mais quando a gente considera o fator mais grave que é que parte das pessoas que estão morrendo são as mais vulneráveis: idosos, a população negra, a população pobre, as populações indígenas.
Bernadete Perez, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

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Paixão por pães

Muita gente aprendeu a fazer pão na quarentena. A pesquisadora UX Lilian Rega, 34, já sabia —e fez disso uma nova profissão. Trabalhando em casa, onde mora com os pais, ela não sai "para algo normal" desde março. Para ocupar a cabeça, retomou uma paixão antiga e virou padeira. "Além da renda extra, é um jeito de lidar com o isolamento", diz.

Todas as questões referentes à Lila Bakery são resolvidas online depois do expediente. Aos sábados e domingos, ela vai para a cozinha. As entregas são feitas por um motoboy de confiança. "Fim de semana passado foram 400 pães", comemora.

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Geraldo Viana, 60, vive de sua arte há quatro anos. No vão livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo), faz esculturas de madeira. No seu "cantinho" —um palete de madeira coberto por uma lona—, guarda um caderno de anotações, ferramentas de trabalho e troncos de árvores que viram novas obras. Ele diz que, agora, as pessoas passaram a olhar mais para suas peças, e as vendas estão aumentando.

O vírus não me atrapalhou em nada. Vivo um turbilhão há um tempo, tô na rua em busca de um objetivo e vou alcançá-lo. Só preciso de um lugar para trabalhar e montar meu ateliê.

Acervo Pessoal

Resolução

Débora Dacanal, 34, ficou fechada em casa por quase um mês. Rompeu o isolamento por causa da Safira, uma mistura de vira-latas com salsicha. Não adiantou usar máscara, álcool em gel, manter distância. Um dia, caiu feio na rua, quebrou os dentes, precisou de pontos. E voltou do hospital com covid-19. "Não chegou a evoluir, ter sintomas mais graves. O resultado demorou a sair e, quando veio, eu já estava melhor."

Tomei uma decisão: todo ano acaba acontecendo algo e não consigo fazer uma viagem maior. Depois de tudo isso, não vou deixar a próxima chance passar.

Momento de exaustão

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Autor de "A arte da quarentena para principiantes" (ed. Boitempo, 2020), o psicanalista e colunista do UOL Christian Dunker avalia que a quarentena prolongada "já exigiu demais das pessoas", o que faz com que tenhamos chegado a um momento de exaustão. "Além das mortes, houve demissões, falências, fins de casamento. E as pessoas não puderam viver o luto."

"A quarentena exigiu e ainda exige sacrifício, mas a vida não é um elástico que com um jeitinho a gente consegue esticar mais. As pessoas simplesmente existem. E, quando só existem, não têm energia para tomar precauções", afirma.

Esse ambiente fez crescer a ansiedade, "e as pessoas com sintomas pioraram". Houve um aumento, segundo Dunker, de 98% de casos de depressão e ansiedade.

Na esfera social, avalia Paulo Silvino Ribeiro, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), "há um desgaste natural do isolamento na medida em que toda nossa socialização pregressa vem do contato com os outros".

A sensação de perigo, avalia, diminuiu com o crescimento de uma visão negacionista da realidade, "alimentada por empresários e por diferentes representantes do poder público quando a doença ainda estava no seu auge". Mas também por conta do desespero de viver uma situação prolongada. "O indivíduo pensa: Quer saber? Eu vou sair de máscara, mas vou sair porque não aguento mais."

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