Liberdade roubada

Histórias de pessoas presas por engano revelam o drama de quem foi punido por crime que não cometeu

Juliana Carpanez Do UOL, em São Paulo

"Eu sou inocente"

Antonio Carlos foi confundido com um assaltante do consulado da Venezuela, no Rio. Jefferson foi erroneamente apontado pelo irmão como autor de um roubo em Anápolis (GO). Claudete carregava o mesmo nome de uma mulher acusada de assassinato em Itanhaém (SP). Julio Cesar teve sua identidade usada pelo irmão, ladrão de ônibus em Porto Alegre.

Por falhas de investigação, essas quatro pessoas foram detidas e passaram dias repetindo um discurso batido entre a população carcerária e pouco eficaz diante das autoridades. Porém, em seus casos, real: "Eu sou inocente". Se conseguiram provar foi porque, do lado de fora das penitenciárias, seus familiares e amigos se mobilizaram até serem ouvidos pela Justiça, revertendo mandados de prisão em alvarás de soltura.

Não há dados oficiais sobre a quantidade de brasileiros presos por engano. Um facilitador para que isso aconteça, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, está nos altos índices de prisões provisórias. Elas chegam a 40% dos presos na justiça estadual, segundo o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

"Temos um sistema que funciona de forma disfuncional, usando a prisão cautelar de maneira abusiva. Ela deve ser a exceção, quando a liberdade durante o processo é a regra. E nunca pode se confundir com punição antecipada, justamente porque a Constituição diz que ninguém será tratado como culpado antes da sentença condenatória", afirma Cristiano Maronna, presidente do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

Coordenadora geral da organização de direitos humanos Justiça Global, Sandra Carvalho afirma: "Existe a construção dessa ideia que o Brasil é o país da impunidade, mas, na verdade, é muito punitivista. E seletivo também, porque a Justiça é desigual: pretos e pobres são a maioria dentro do sistema carcerário". Segundo ela, o fato de amigos e familiares terem papel tão importante na reversão de prisões equivocadas indica o acesso restrito à justiça e a falta de estrutura das defensorias públicas, que não são priorizadas.

Em julho de 2018, numa sexta-feira 13, o motorista de aplicativo Antonio Carlos Rodrigues Junior, 41, perdeu a hora. Ele, que geralmente saía para trabalhar às 5h, ainda estava lavando o carro em frente de casa, na Glória (RJ), quando o carro da polícia chegou, por volta de 7h. Os dois policiais tinham uma intimação com seu nome e pediram que Antonio os acompanhasse até a delegacia.

Minha esposa já estava chorando, minha sogra passou mal. Os vizinhos da rua onde sempre morei me viram entrando na viatura. Foi uma mistura de medo e receio, mas, como sabia que não tinha feito algo errado, eu fui."
Antonio Carlos Rodrigues Junior

No trajeto, ligou para amigos --entre eles a advogada Mitsi Rocha, que trata do caso-- e contou o que estava acontecendo. Na delegacia, depois do que Antonio calcula como "horas de espera", foi chamado por um inspetor que o informou sobre um mandado de prisão. "Mandaram eu tirar o tênis, o cinto e me levaram para a cela", lembra ele, que durante o dia não pôde falar com nenhum conhecido. O motorista não tinha antecedentes criminais.

Da cela só saiu para um interrogatório, quando perguntaram se era ele que aparecia na cena de um crime: o assalto ao consulado da Venezuela, no Rio, em 6 de junho de 2018. As câmeras de segurança registraram um homem negro e careca, de óculos escuros.

Diz o relatório da Polícia Civil: "Depois de exaustivas visualizações das imagens do vídeo do roubo e da análise das fotografias encontradas nos álbuns do Facebook de Antonio Carlos Rodrigues Junior, pude notar que as características físicas de Antonio Carlos Rodrigues Junior e do autor que estava, no momento do roubo, vestido de preto são muito semelhantes. Nota-se a semelhança na cor da pele, no formato do nariz, no formato da cabeça e que ambos são carecas. A orelha de ambos é grande e a parte superior da orelha [hélice] é um pouco pontuda e voltada para fora”.

DiVasca

Eu disse que eu não aparecia na foto do assalto e eles responderam que era eu, sim. ‘Quer ver como é?’ E mostraram minha foto do Carnaval, postada no Facebook meses antes, pela qual duas vítimas teriam me reconhecido. Simples assim."
Antonio Carlos Rodrigues Junior

De sexta até terça-feira, Antonio ficou sozinho na cela da delegacia, que ele calcula medir "11 passos por seis passos". Não tomou banho, nem trocou de roupa. Tinha de pedir água para beber e comeu aquilo que seus conhecidos levaram ("entregavam na hora que queriam"). Na segunda-feira, uma testemunha foi até o local e o reconheceu. Na terça, foi transferido para um presídio no bairro de Benfica: "Fui do ruim para o pior", resume.

No presídio, calcula ter dividido cela com 84 presos: "Sabe a casa da família Adams, que tem uma nuvem negra em cima? Tem essa nuvem em cima daquele lugar, com um clima pesado, uma carga negativa". Tomou banho com a água que saía de um cano no teto, em cima do boi (buraco no chão usado como sanitário).

Sobre a comida, constata: "É aquela da qual falam na TV, que todo mundo sabe que já vem azeda".

Eu dizia que era inocente, mas lá todo mundo diz ser inocente. Tive muito medo de não sair, pois sei como funciona a Justiça. Não desejo essa situação para meu pior inimigo."
Antonio Carlos Rodrigues Junior

Enquanto isso, do lado de fora, conhecidos, amigos, familiares e a advogada se mobilizavam para provar a inocência de Antonio. Tentaram, primeiro, com o extrato do aplicativo Uber, que indicava sua localização (bairro de Bonsucesso) no momento do assalto ao consulado (centro do Rio). Não funcionou.

Depois, encontraram no Facebook um vídeo amador, recente, que mostrava um homem deitado na rua, sendo preso no Rio de Janeiro. O ladrão era o mesmo que aparecia nas imagens do consulado da Venezuela -- ou seja: quando Antonio foi preso, o verdadeiro criminoso já havia sido detido por causa de outro assalto na cidade.

"Tivemos de fazer o trabalho da polícia", diz a advogada Mitsi Rocha. "Confirmamos com esse vídeo, encontrado por alguém da nossa rede de conhecidos, que o assaltante estava preso. Levamos a informação para a delegacia, onde chamaram novamente a testemunha. Ela foi até o presídio de Bangu e reconheceu o verdadeiro assaltante do consulado."

Mesmo com a confirmação de que Antonio era inocente, a advogada relata muita burocracia até a soltura, realizada na noite de sexta, uma semana após a prisão indevida do motorista.

Sua saída foi televisionada e, assim que saiu do presídio, Antonio tirou a camisa e a jogou no chão: não queria levar nada daquele lugar com ele.

Seu projeto agora é dar visibilidade a pessoas em situação similar, que foram presas injustamente --para isso, criou a página Não Fui Eu, frase também tatuada em seu braço. A advogada entrou com um pedido de indenização. Antonio nunca recebeu um pedido de desculpas das autoridades ou da mulher que o reconheceu erroneamente duas vezes: pela foto do Facebook e, depois, na delegacia.

Em fevereiro de 2007, a polícia de Anápolis (GO) deteve um jovem que havia cometido um assalto. Por volta de 22h, ele e outros três colegas pararam um pedestre e apontaram para a vítima uma arma, enquanto roubavam seu relógio, walkman e mochila, cheia de pertences pessoais.

Um único assaltante foi preso em flagrante: Jefferson Carlos Silva de Oliveira, nome informado à polícia pelo jovem que, na ocasião, não portava documentos. Ele teve liberdade provisória concedida em abril daquele ano e, em 2011, foi condenado a cinco anos e quatro meses de reclusão --não cumpridos, pois não foi encontrado pelas autoridades.

O que traz esse caso para a lista de pessoas injustamente presas é o fato de o assaltante ter mentido sobre sua identidade. Quando preso em Anápolis, Jackson Bezerra da Silva, 31, usou o nome de seu irmão Jefferson --que tem 33 anos e problemas mentais. Em novembro de 2017, Jefferson foi abordado pela polícia em frente à sua casa, no Recanto das Emas, Distrito Federal, e identificado pelo nome como sendo o assaltante de Anápolis. Passou 18 dias detido. 

Quando isso aconteceu, Jackson já cumpria pena por outros delitos. Quem conta é a costureira Tereza Maria Beserra, 58, mãe de nove filhos. Entre eles, Jackson e Jefferson.

Jackson era empacotador no mercado e trazia iogurte, dinheiro para casa. Pensava que era com seu trabalho, mas estava aprontando. Ele roubava carro quando era adolescente, foi preso aos 14 anos, visitei na Febem. Não sabia do assalto em Anápolis. Já o Jefferson não sai de casa, tem a mentalidade de uma criança com oito, nove anos, não machuca uma barata. Sabia que não tinha sido ele."
Tereza Maria Beserra

Tereza estava no trabalho, quando um conhecido telefonou contando que a polícia havia levado Jefferson. Os policiais viram pelo sistema que era o homem condenado em 2011 e o levaram à delegacia, para onde a mãe foi logo em seguida.

Di Vasca

Quando ele me viu, começou a chorar, parecia um animal preso. Fiquei doida, não gosto nem de lembrar. Disse que ele não era normal [por causa do problema mental], e o delegado afirmou que para ‘fazer besteira ele era normal’. Foi muita ignorância, não deixaram eu chegar perto dele."
Tereza Maria Beserra

Jefferson foi então transferido ao Complexo Penitenciário da Papuda, onde a mãe não pôde vê-lo. "Passei mal, disseram que eu só poderia voltar no dia de visita."

Com acesso a um funcionário, soube que Jefferson estava em uma cela com outras 29 pessoas. Pelos relatos feitos posteriormente pelo filho, os outros detentos diziam que ele fedia e queriam que tomasse banho o tempo todo. Chamavam Jefferson de "doidinho" e se aproveitavam de sua vulnerabilidade para que fizesse sozinho a limpeza na cela.

Em busca de ajuda, a costureira chegou à Defensoria Pública do Distrito Federal. "A família vislumbrou essa possibilidade, de o irmão ter dado o nome errado", conta a defensora pública Antônia Carneiro.

No processo de Anápolis, constavam as impressões digitais do assaltante (Jackson, passando-se por Jefferson), que Carneiro pediu para serem comparadas às impressões de Jefferson. "Foi feito um laudo, mostrando que as impressões digitais coletadas em Anápolis não eram de Jefferson. A prisão indevida também já estava sendo exposta na mídia, e ele foi solto. Ainda existe um processo para excluir seu nome do rol dos culpados e entramos com uma ação indenizatória", afirmou Carneiro.

A saída da cadeia não colocou fim ao drama da família, segundo Tereza, pois o filho não se recuperou: está mais rebelde, tem medos que antes não tinha (como o de a polícia levá-lo) e, às vezes, acusa a mãe por não tê-lo tirado da cadeia em menos tempo. 

O crime de Claudete de Oliveira foi ter o mesmo nome de uma acusada de homicídio, em crime registrado na cidade de Itanhaém (SP), em 1998. Por causa desse assassinato, a polícia foi com um mandado de prisão até a casa da empregada doméstica, em Realengo (RJ), em março de 2018.

"A burocracia a manteve presa por nove dias", resume Leandro de Oliveira, 33, filho da idosa detida por engano.

Os dois estavam em casa, quando houve a abordagem e Claudete foi levada até a primeira delegacia onde passou a noite. Seguiu, então, para a Polinter, responsável por crimes interestaduais, permanecendo lá por oito dias. Foi, depois, transferida ao presídio de Bangu, onde cumpriu mais um dia dessa pena pela qual não havia sido condenada.

Claudete foi solta no dia 24 de março, cinco dias após a Justiça de Itanhaém reconhecer que a identificação da presa não era a mesma da acusada. Segundo documento oficial do caso, datado de 19 de março, "embora a presa tenha o mesmo nome da ré dos presentes autos, o RG constante do mandado de prisão diverge do RG apresentado pela presa".

Três meses depois da soltura, Claudete enfartou. Ficou 27 dias em coma e morreu. Ela tinha 67 anos.

Di Vasca

Segundo Leandro, a mãe disse que aqueles nove dias foram equivalentes a "uma vida". Ela também contou ter sido bem tratada por outras detentas, talvez por ser mais velha. Sobre esse sofrimento durante a vida, o filho conta que Claudete foi abandonada quando nasceu, nunca conheceu os pais, foi criada em um educandário e só adotada para trabalhar em casa de família. "Ela estava cansada, prestes a se aposentar, quando foi presa."

Sua liberdade foi comemorada em diversos encontros, com muitos conhecidos.

Ela comeu o que queria, bebeu o que queria, falou com quem antes não conversava. Hoje, vejo que não eram apenas comemorações, mas despedidas

Leandro de Oliveira

Em 14 de agosto de 2012, dia em que completava 33 anos, o ajudante de pedreiro Julio Cesar Sanguinet foi preso em Porto Alegre (RS). "Eu tinha ido à casa do meu padrinho, que ia me dar um presente. Ele não estava e eu voltava para casa quando fui abordado por um policial, que disse ter um mandado de prisão contra mim", lembra. A acusação era a de assaltos a ônibus cometidos entre março e abril: testemunhas haviam reconhecido em fotos o autor dos crimes, identificado como Julio.

A empregada doméstica Maria Salete Sanguinet foi avisada da prisão do filho por telefone e correu à delegacia. Lá, os dois tentaram explicar a mesma história: o assaltante era Sandro, o mais velho dos cinco filhos de Maria, que havia sido assassinado no final de abril --ele estava foragido e chegou a se identificar à polícia como Julio, usando inclusive sua foto colada em um RG antigo do irmão.

Como resposta, mãe e filho ouviram do delegado que "morto não fala" e que Julio ficaria mesmo preso. Foi, então, levado ao Presídio Central de Porto Alegre.

Maria foi até o jornal Diário Gaúcho para denunciar o caso, onde conversou com a jornalista Letícia Barbieri. A então repórter, que abandonou o jornalismo e hoje trabalha no Ministério Público do Rio Grande do Sul, lembra: "Ligaram da portaria, dizendo que uma mãe queria falar sobre o filho preso por engano. Na hora, fui falar com ela. Nessa época, eu já estudava direito e me interessei pela história. Pedi ao meu editor para trabalhar no caso, pois eu não podia ficar com uma dúvida daquela [sem saber se Julio era inocente]".

Durante a apuração --que deu origem à reportagem "Homem é preso no lugar do irmão"--, a repórter obteve a foto do assaltante que foi mostrada às vítimas. Na imagem de Sandro, ficava evidente uma mancha no pescoço, que Julio não tinha. A partir daí, entrou em cena a Defensoria Pública, que acabou conseguindo a liberdade para ele em 24 de agosto.

Di Vasca

Eu não gosto da Justiça, por isso procurei o jornal. Quem correu atrás de tudo foi ela [a jornalista] e agradeço muito, porque conseguiu desvendar essa história."
Maria Salete Sanguinet

Enquanto esteve preso, Julio teve medo de não sair mais. "Fiquei desesperado, porque sempre trabalhei e meu irmão que tinha cometido o delito", contou ele, que também fazia bicos como caseiro e em uma oficina mecânica. Diz ter ficado quatro noites sem dormir, quatro noites sem comer. Na cela, instalou-se em frente ao local usado como sanitário, sobre um cobertor no chão. Teve medo de outro detento, veterano, que "não gostou de mim de jeito nenhum, ficava encarando e achei que acabaria brigando comigo".

É tudo sujo, tudo horrível, a comida é ruim, o lugar é ruim, a companhia é ruim. Me apavorei, entrei numa depressão desgraçada."
Julio Cesar Sanguinet

Passados seis anos, Julio ainda aguarda uma indenização pela prisão indevida. Sua vida só piorou desde então: fuma crack, vício que ele e a mãe dizem ter surgido após a detenção. Já passou por diversas internações, mas Maria afirma ter desistido: "Larguei mão, não adianta, é dar murro em ponta de faca". Sua entrevista foi feita no celular dela, com quem mora, pois Julio não tem um aparelho próprio. Virou catador de produtos recicláveis e usa o que ganha para sustentar o uso de drogas. "Fiquei muito depressivo. A cadeia não é lugar para ser humano."

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