Desigualdade judicial

Garçonete condenada por carregar 4 gramas de maconha se pergunta: 'se eu estivesse na faculdade, seria presa?'

Marcelo Oliveira Do UOL, em São Paulo Lucas Lima/UOL

Em uma praça de Avaré (SP), a 265 quilômetros da capital, Irene* e dois amigos tinham comprado cinco gramas de maconha, o suficiente para cinco baseados, tinham fumado um dos cigarros e se preparavam para usar os quatro que sobraram em uma festa.

Era dia de folga de Irene, na época garçonete, e ela e os amigos repetiam uma cena que se vê todos os dias no país. Mas o desfecho não foi o que eles esperavam — nem o que, Irene e o advogado argumentam, aconteceria se a jovem estivesse em um bairro rico. Ou se fosse rica.

Um carro de polícia chegou, os três foram revistados e presos. Irene, então com 18 anos, entregou a droga, afirmou que era usuária, mas foi presa em flagrante.

De acordo com a legislação brasileira, usar drogas é ilegal, mas a conduta não é passível de prisão — essa pena é aplicável a quem vende, e não a quem consome drogas ilícitas.

Porém a legislação é omissa quanto ao que são quantidades ou circunstâncias que diferenciam uso pessoal e tráfico de drogas, o que abre espaço para subjetividade da polícia e da Justiça. A questão aguarda decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

No boletim de ocorrência, os policiais registraram que Irene traficava drogas, versão que ela nega.

Após o flagrante, em 26 de abril de 2017, Irene foi mantida em prisão preventiva por 45 dias na penitenciária de Pirajuí (SP) até que o advogado, Fernando Hideo Lacerda, conseguiu um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça. Irene, hoje com 21 anos, está livre deste então.

Mas corre o risco de voltar à prisão. Ela foi condenada em abril de 2018 em primeira instância por tráfico de drogas e associação para o tráfico e agora aguarda o término do julgamento em segunda instância.

A defesa quer a absolvição pelos dois crimes, e o Ministério Público (MP) pediu absolvição pela acusação de associação, redução da pena de tráfico e cumprimento em regime aberto. O término do julgamento está marcado para amanhã (31).

Enquanto aguarda, Irene vê aumentar a ansiedade e piorar a depressão, diagnosticadas após a prisão.

A seguir, os trechos sobre fundo negro são relatos de Irene. Os trechos sobre fundo branco são explicações da redação.

*O nome verdadeiro de Irene é outro, e foi alterado a pedido dela, que teme represália.

Lucas Lima/UOL

Da noite de folga à assinatura da minha confissão

"Quarta-feira era a minha folga semanal e eu estava curtindo com meus amigos. Compramos cinco 'parangas' [porção prensada de maconha], usamos uma num baseado e ficaram quatro.

Vimos a polícia chegar, e eu estava cansada de ver meus amigos serem esculachados, então sugeri ficar com a maconha. Geralmente não apareceria a policial feminina, por isso não me revistariam, e a história acabaria ali.

Mas a policial chegou. Eu disse que era usuária, tirei a droga do sutiã, dei na mão dela e fomos colocados no camburão. Nos levaram até a minha casa, os policiais reviraram a quitinete e não acharam nada. Fomos levados à delegacia — era a primeira vez que eu entrava em uma.

Prestei depoimento sem um advogado. A escrivã, o delegado e o PM estavam na minha frente. Disse a eles que estava com muito medo, que tinha comprado [a maconha] para usar e que ninguém era traficante nem bandido. Perguntei se eu iria presa. A escrivã disse que sim e eu falei que não assinaria o depoimento no qual constava a versão dos PMs. O PM falava que se eu falasse alguma coisa culpando os meninos, eu iria para casa.

Fiquei dois dias no xadrez da delegacia e, depois, trouxeram um monte de papel para eu assinar, falando que era a autorização da transferência para a penitenciária. Assinei sem ler, era muito papel e eles tinham pressa. Estava nervosa e acabei assinando a confissão."

Transferência, prisão e acidente

"Fui levada num carro azul e branco da Secretaria de Administração Penitenciária com mãos e pés algemados. Foram quatro horas de viagem, não tinha almoçado nem tomado café.

Chorei desesperadamente quando cheguei na penitenciária. Me mandaram tirar a roupa, e uma policial me mandou abrir a boca e forçou meu vômito. Pegaram um alicate para retirar o piercing que eu tinha na orelha e me machucaram.

Éramos cinco meninas numa cela para três. As mais novas dormiam no chão, em colchonetes bem finos, e as outras duas usavam o beliche de cimento.

Um dia, um carrinho de carga passou por cima do meu pé enquanto eu trabalhava na prisão e quase quebrei o dedinho direito. Eu limpava o corredor e entregava as compras que as presas faziam na loja da cadeia com o dinheiro que ganhavam do trabalho na prisão. Havia costura, limpeza e benefício de tabaco para cigarro de palha. Pagavam R$ 0,50 por pacote montado.

Fui levada para um pronto-socorro, e o médico fez um curativo às pressas, meio sem graça.

Na cadeia, não me deram os remédios que o médico pediu e eu não pude mais trabalhar, não conseguia pisar no chão. Passei a ser considerada preguiçosa. Meu dedo dói até hoje.

Também fiquei traumatizada com o banho gelado. Estava bastante frio naquela época e eu fiquei gripada.

Fiquei presa um mês e 15 dias. Saí em 9 de junho de 2017 graças ao habeas corpus."

Medo e trauma

"Na segunda-feira seguinte à libertação, voltei ao trabalho. O pessoal da lanchonete foi muito legal, e o tempo que estive presa foi lançado como férias na carteira de trabalho.

Em abril de 2018, saiu a primeira sentença, de oito anos e dez meses. A primeira sensação foi de desespero. Aos 18 anos, presa por fumar maconha?

Em Avaré, por ser uma cidade pequena, todo mundo sabe da história e eu reencontrava os policiais às vezes nos restaurantes em que eu fazia bicos nos fins de semana. Eles diziam: 'nossa, mas já saiu?'

Perdi trabalhos por causa disso. Os gerentes viam as cenas, perguntavam se eu tinha sido presa e não me chamavam mais. As opções começaram a ficar limitadas na minha cidade e me mudei.

Hoje namoro, mas tenho medo de me casar amanhã e ser presa depois. Eu tenho medo de começar uma vida aqui fora e depois acontecer alguma coisa. Eu queria o fim dessa história, que seria a absolvição e a cura da minha depressão.

Voltei a estudar e quero ser veterinária, como meu namorado. Estou fazendo uma experiência em um pet shop para aprender o ofício e quem sabe um dia ser sócia dele num negócio,

Nas horas vagas, vejo séries, como 'Olhos que Condenam', 'Orange Is the New Black' e 'Vis a Vis'. Todos tratam de prisões e injustiças.

A cada dois meses, volto à minha cidade. Saio pouco. Evito vários lugares por medo de reencontrar os policiais.

Resolvi contar minha história para que outras pessoas que passem pelo que passei não sintam mais medo, pois sempre vai existir alguém que vai acreditar na sua palavra."

Jornalista com 450 g foi solto, garçonete com 4 g foi condenada, diz advogado

O advogado de Irene, Fernando Hideo Lacerda, assumiu a defesa dela depois que um primeiro habeas corpus foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

"Precisamos recorrer até o STJ para que a ordem de HC fosse enfim concedido e Irene pudesse recorrer ao processo em liberdade", diz.

Ele afirma que trabalha gratuitamente no caso, pois se solidarizou com a jovem e a família.

"É uma tamanha injustiça, um tamanho absurdo. Alguém ser preso em flagrante por ter quatro gramas de maconha e ser acusado de tráfico e associação para o tráfico? É a própria criminalização da pobreza", afirma.

Para o advogado, Irene "foi presa e corre o risco de ser condenada por ser pobre". Ele diz que já obteve a liberdade de um jornalista preso com 450 gramas de maconha, por exemplo.

A situação seria diferente num bairro de classe média alta, ou se tivesse acontecido ao lado de universidades particulares

Fernando Hideo Lacerda, advogado

Segundo o advogado, Irene não deve ser presa após um eventual julgamento desfavorável, pois ainda haveria a possibilidade de apresentar embargos de declaração (último recurso em segundo grau) e, portanto, o caso não estaria concluído em segunda instância.

"Se houver prisão após o julgamento de quinta-feira, será ilegal e autoritária", afirma.

Descriminalização sai da pauta do STF

O Supremo retomaria em 6 de novembro o julgamento de um recurso que questiona a constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas. Mas o caso foi adiado e não há previsão de nova data para retomá-lo.

"O mais importante é que o STF defina critérios claros para definir quem é traficante e quem é usuário", afirma o advogado Fernando Hideo Lacerda.

Ele cita como parâmetro a ser seguido pelo Brasil países que passaram a diferenciar usuários de traficantes com base na quantidade de droga apreendida com a pessoa — o Canadá trata como usuário quem carrega até dez gramas, e a Espanha, 200 gramas, por exemplo.

No STF, o julgamento sobre a questão começou em 2015, e o placar é de 3 votos a favor da descriminalização do uso —mantendo-se a prisão para o traficante. Ainda faltam os votos de oito ministros.

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