"Nossa pele tem rótulo"

Eles ajudaram uma vítima de roubo no Carnaval e acabaram acusados por ela

Marina Lang Colaboração para o UOL, no Rio Silvana Mendes/UOL

Foi no dia 9 de março, o sábado seguinte ao Carnaval deste ano. O artista plástico Pandro Nobã, 34, e o técnico de segurança do trabalho Jean Carlos Gomes da Silva, 41, curtiam o rescaldo da festa em um bloco no Aterro do Flamengo, na zona sul carioca, quando em meio à folia uma mulher teve o celular roubado.

Em vão, Pandro e Jean tentaram ajudá-la perseguindo o criminoso. Mas, em vez de gratidão pela ajuda, foram acusados pela própria vítima de serem os autores do crime.

Havia poucos negros no bloco e, segundo eles, a foliã os acusou pelo simples fato de terem corrido. Para Pandro e Jean, as marcas provocadas pelo racismo sofrido naquele dia permanecem.

A fim de provocar reflexão sobre o preconceito, eles decidiram contar a história no documentário Caixa Preta, de Nina Tauile, que discute o racismo no Carnaval de rua do Rio.

"A gente sabe que tem uma abertura [nos blocos de Carnaval], mas queremos entender por que os negros não chegam. A gente quer que os brancos que estão envolvidos se questionem também. Por que tem poucos negros?", questiona Jean.

No Carnaval, eles relatam ainda que é comum serem chamados de exóticos e "seguranças" —sempre por mulheres brancas. "É o rótulo, aquela coisa de querer rotular o negro alto. 'Ah, meu segurança'", acrescenta.

Em entrevista ao UOL, Pandro e Jean contam o preconceito sofrido no Carnaval —com a proposta de abrir um diálogo com foliões brancos— e falam sobre como o racismo estrutural afeta a vida deles.

"Comecei a ter crises de ansiedade e a fazer terapia. Mas isso foi depois de tantas coisas que aconteceram, que a gente não consegue filtrar e fica no nosso subconsciente", afirma Pandro.

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Pandro Nobã: "Tomei chute no joelho porque acharam que eu era o ladrão"

Foi no sábado seguinte ao Carnaval. A gente sempre está junto nos blocos, por isso somos bastante conhecidos. A gente vem nessa pegada de Carnaval há bastante tempo: ele [Jean Carlos] por tocar nos blocos e eu por ser folião. Fomos para esse bloco, o Caetano Virado. Estávamos eu, ele, minha esposa e mais um casal de amigos.

Eu vi a ação do moleque metendo a mão no celular da menina. Na hora, pensei: 'Vou ajudar'. O moleque saiu e fui atrás. O Jean não estava perto, só nos encontramos na frente [indo atrás do assaltante].

Nessa corrida, eu tomei um chute no joelho porque acharam que eu era o ladrão. Se esse chute não tivesse pegado em mim, teria conseguido pegar ele. Estava muito perto...

Voltamos e minha esposa quis ir embora. Eu já estava atravessando a passarela do aterro quando veio um policial correndo atrás de mim. Ele falou de boa para eu voltar para o carro porque estava sendo acusado de roubo. Minha esposa começou a gritar pelo absurdo da situação.

[...]

[Após amigos da mulher roubada questionarem se ela tinha certeza da acusação] O discurso dela começou a mudar, ela começou a hesitar. Aí veio uma menina de trás para falar com ela e disse: 'Não foram eles, não'.

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Jean Carlos: "Ela nos apontou porque éramos os únicos pretos"

O Pandro passou por mim correndo, fui atrás. Nisso eu estou correndo, a menina gritando: 'Ladrão, ladrão'. Eu olhei para trás e a vi tropeçando e caindo. Ajudei ela. Falei: 'Fica aí que a gente vai atrás dele'.

Fomos atrás e não conseguimos achar [o assaltante]. Saí sozinho andando pelo Píer da Marina [da Glória]. Aí vejo a viatura bem em frente de mim, com sirenes.

Sai a menina já com o dedo apontando: 'Foi ele, foi ele'. Ela disse que eu estava correndo e que havia pego o celular dela. Ela também viu o Pandro passando e disse: 'Aquele ali estava junto'.

Eu expliquei [ao policial] que ela foi furtada, que a gente tentou ir atrás e que quase pegamos o rapaz. Eu disse que sou de bloco de rua, que conheço o espaço, que ajudei ela a se levantar.

E disse aos policiais que ela estava nos apontando porque éramos os únicos pretos que estavam correndo na frente dela.

Começaram a chegar as pessoas que estavam saindo do bloco. Todo o mundo me conhece e começou a perguntar o que houve. Contei que estava sendo acusado de roubo. Os amigos dela começaram a perguntar se ela tinha certeza [da acusação].

O policial me liberou porque viu que estava incoerente o que ela tinha dito. A mulher do Pandro estava nervosa, porque havia sido uma atitude racista.

É tudo muito legal até a hora em que acontece alguma coisa, aí vão apontar para o negro. Porque eram poucos que estavam naquele bloco. A cor da nossa pele tem um rótulo, independentemente da nossa história.

Divulgação

A ilustradora

Graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Maranhão, Silvana Mendes investiga o cotidiano e a subjetividade do comum, ressignificando símbolos através da fotografia e colagem digital ou manual. Seu projeto Afetocolagens parte de retratos históricos de negros escravizados coletados no portal Brasiliana Fotográfica e dá a eles novo significado, colocando os personagens num contexto de homenagem com matizes alegres. A convite do UOL, ela criou as colagens que ilustram esta reportagem a partir de imagens históricas e fotografias do acervo pessoal dos personagens retratados.

"Não me peça desculpas. Entenda que é um ato racista"

Pandro Nobã: Isso [atitudes racistas] é todo o dia, não só no Carnaval. Para andar na rua a gente tem que ter um protocolo, para entrar em algum lugar?

Jean Carlos: Inclusive na forma de se vestir. Você também tem que ser mais educado do que todo o mundo. Se você está em um local em que a maioria é branca, as pessoas dão um olhar do tipo: 'O que você está fazendo aqui?'

Pandro Nobã: Fiz um stories no Instagram, meu relato viralizou e chegou na menina. Ela procurou a gente e eu conversei com ela.

Porque não adianta falar que não é racista. As pessoas têm que assumir e escutar o que a gente tem para falar como homens negros e mulheres negras.

Porque ela me apontou e apontou o Jean. Imagina se o policial age de outra forma? Na maioria das vezes, a gente se torna uma 'ameaça' só por a gente ser a gente. Imagina se o policial dá um tiro? Ou se acha que, porque estou correndo, me agarra e me pega com truculência? Depois que apontou a gente, não adianta pedir desculpas.

Jean Carlos: Vai caindo a ficha e você vai pensando nas consequências. Depois que ela me procurou, fiz questão de ter uma conversa dura com ela:

'Não me peça desculpas. Você tem que entender que é um ato racista. Vou te falar as consequências do que poderia ter acontecido. Você poderia ter causado uma lesão a nós dois. Se eu recupero seu celular e estou com ele na mão, eu seria preso. Você ia falar que eu era o ladrão'

Ela começou a chorar. Eu falei: 'Você tem que refletir e aceitar. Aceitar que isso foi racismo e, a partir daí, se policiar sobre as suas atitudes'.

Pandro Nobã: É um problema estrutural mesmo. Em nenhum momento xingamos essa menina. Fomos sensatos.

A gente quer ter esse diálogo para que as pessoas brancas entendam o que elas fazem. Para que não aconteça com outras pessoas.

Para que isso seja um exemplo. Mesmo sendo algo negativo, que se torne algo positivo para que as pessoas não cometam o mesmo erro de apontar sem saber. A desculpa não tira a dor e não tiraria a gente de uma cadeia, se fôssemos presos.

Jean Carlos: A gente quis levar isso para frente e falar para causar reflexão nesse meio que levanta bandeiras contra homofobia, pelo feminismo, das minorias: para que esse pessoal entenda que é uma coisa estrutural e que, quando a situação aperta, vem o rótulo do negro criminalizado. Isso é histórico. É o preto que está à margem, que tenta se inserir. Você sempre tem que ser o 'negro diferente' do rótulo que criaram para a gente. É cansativo.

Eu tenho 41 anos e já se perderam na memória as situações absurdas pelas quais eu passei. De tomar um ônibus na avenida Brasil e eu ser revistado quatro vezes no mesmo ônibus. Chegou na quarta vez e os passageiros pediram para me deixar porque eu estava quieto.

Pandro Nobã: Antes de apontar qualquer pessoa negra, antes de encostar no cabelo, antes de falar que quer tirar foto porque achou exótico. A gente passa muito por isso. Já teve pessoa querendo tirar foto no Carnaval, dizendo que 'são meus seguranças'. Parem de repetir que somos todos iguais. É só parar e olhar a sociedade para que pessoas brancas percebam que não somos iguais. E que elas prestem mais atenção nos atos que cometem no dia a dia, as coisas que elas falam para as pessoas, porque isso machuca.

Silvana Mendes/UOL Silvana Mendes/UOL
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