Fake news na Guerra Fria

Repressão na Alemanha Oriental já manipulava informações antes da queda do muro de Berlim

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra (Suíça) Guilherme Zamarioli/UOL

4 de dezembro de 1989. O muro de Berlim já havia caído e uma transformação inédita no mundo parecia estar ocorrendo. Mas na cidade de Erfurt, um prédio soltava uma estranha fumaça negra que vinha de um de seus pátios. Era uma das sedes regionais da Stasi, a polícia secreta do Estado.

Rapidamente, correu a informação de que a temida máquina de repressão comunista estava queimando milhares de documentos, com provas dos crimes cometidos durante décadas por uma das maiores agências de espionagem do mundo.

Ali estavam dados sobre operações de assassinatos, a identidade de agentes secretos e manipulação de informações.

Na noite anterior, moradores da cidade já tinha se dado conta de que algo diferente ocorria no prédio. Já era madrugada quando alguns vizinhos se reuniram e decidiram que precisariam agir. Naquela mesma noite, imprimiram milhares de alertas em uma máquina rudimentar e, ainda na escuridão gelada, colocaram 4 mil panfletos nas caixas de correios da cidade.

Décadas antes da ideia das redes sociais ou grupos de Whatsapp, a estratégia funcionou e, no dia seguinte, uma pequena multidão estava na porta do escritório do Ministério de Segurança do Estado - o nome oficial da Stasi.

Ficaria conhecido ainda o ato de um caminhoneiro que, diante da suspeita de que os arquivos estavam sendo retirados do local, buscou seu veículo e o estacionou no portal do prédio, impedindo a saída dos funcionários do local.

Imediatamente, centenas de pessoas entraram no edifício. Ao abrir as portas dos diferentes escritórios, levaram um susto: todos os funcionários estavam picotando milhares de páginas de documentos.

Ao longo das semanas seguintes, todas as sedes da Stasi pela Alemanha Oriental foram sendo ocupadas. Até que, em meados de janeiro, o prédio central do serviço em Berlim foi alvo dos manifestantes. Sua ocupação entrou para a história como uma espécie de segunda queda do muro.

Assim, a partir da ação de cidadãos fartos de mentiras e da repressão, o último ato da Stasi conseguiu ser impedido: a destruição de milhares de páginas de um dos maiores arquivos secretos do século 20 e que revelaria uma máquina de repressão, espionagem e desinformação sem precedentes.

Fabrizio Bensch/Reuters Fabrizio Bensch/Reuters

"Destruição psicológica"

"Eles picotavam e queimavam os documentos por saber que tudo que tinham feito era ilegal", explicou ao UOL a representante da Comissão Federal para os Arquivos da Stasi, Dagmar Hovestadt.

Segundo ela, o que o arquivo de 40 anos mostrou foi como um regime não apenas torturou. Mas também usou da desinformação para destruir indivíduos consideradas como "perigosos".

"De uma forma coordenada, espalhavam rumores que tinham um efeito profundo em diferentes indivíduos. Não era uma tortura visível. Mas a destruição psicológica de um inimigo. Pessoas e famílias foram devastadas por essa estratégia", disse.

As pesquisas no arquivo revelaram uma verdadeira estratégia de "repressão psicológica", com informações sendo circuladas para destruir famílias, desmontar grupos de oposição e gerar incerteza pessoal.

A representante dos arquivos aponta que a Stasi fez escola, e táticas parecidas de difusão de falsos rumores também foram usadas pelo FBI e pela CIA. "A destruição de reputações é um instrumento poderoso", disse.

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Contracultura

Mas os rumores nem sempre funcionavam apenas para frear a oposição. Ainda nos anos 60, quando o Rock & Roll era proibido no leste alemão, um boato foi lançado por uma rádio na Alemanha Ocidental sobre um suposto show dos Rolling Stones, em Berlim. O grupo faria o concerto do teto de um prédio para que, do outro lado do muro, os fãs pudessem assistir. A data escolhida não era por acaso: 7 de outubro, o aniversário do regime na Alemanha do Leste.

O evento, obviamente, não iria ocorrer e Mick Jagger sequer sabia dos supostos concertos berlinenses. Mas parte da juventude aproveitou o "show" para ir ao local de onde ele supostamente poderia ser visto. O recado era claro: a juventude estava disposta a enfrentar a repressão pela liberdade.

O que os arquivos revelam, porém, é uma ação dura por parte das forças de ordem, preocupadas com o que aquela desinformação poderia gerar como impacto. Dezenas de jovens acabariam sendo presos, enquanto outros chegaram a fugir para a Alemanha Ocidental.

BStU/Jungert BStU/Jungert

Hoje, porém, arquivistas e historiadores continuam a tentar a reconstruir o passado. Dagmar insiste que sua preservação vai além de um aspecto histórico. "Vemos hoje que o ataque à credibilidade da informação é uma estratégia usada para atacar o coração da democracia", disse.

Segundo ela, a ofensiva de partidos políticos contra jornais, contra notícias e contra veículos de comunicação fazem parte de uma tentativa deliberada de "minar a confiança da população sobre as instituições".

"A história nunca é apenas história", alerta Dagmar, num recado sobre a importância de se entender o passado para lidar com o presente e o futuro.

O que os arquivos mostram é que, por décadas, fatos foram manipulados para que o regime atingisse objetivos políticos, enquanto opositores eram os acusados de espalhar mentiras.

Também a desinformação passou a ser um instrumento para recrutar espiões. Chantageados, vizinhos e parentes eram transformados em agentes secretos dentro de comunidades. Não seria por acaso que, numa pesquisa realizada pela entidade Anistia Internacional, os alemães foram os que responderam de forma mais dura contra o direito do estado em espionar sua população.

No total, a Stasi chegou a ter 274 mil funcionários. Desses, 170 mil tinham como função coletar dados. Ou seja, quase 3% de todos os trabalhadores na Alemanha Oriental eram, também, agentes secretos, espiões ou informantes

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Operação infecção

Mas reconstruir completamente o passado de repressão ainda poderá levar anos, mesmo depois de três décadas da queda do muro. Algumas estimativas apontam que até 40% dos arquivos desapareceram naquela fumaça negra de 1989.

A ocupação dos prédios, porém, salvou milhões de documentos. No total, 114 quilómetros de arquivos foram deixados para trás pelos funcionários e hoje estão devidamente classificados e com acesso garantido.

O problema, segundo ela, é saber o que está nos 15 mil sacos com papel picado que estavam à caminho de ser queimados. Desde dos anos 90, historiadores e especialistas se debruçam sobre esses sacos e, cada dia, descobrem novas dimensões da repressão e da desinformação.

Foi apenas em 2018, por exemplo, que se descobriu nas milhares de paginas dos arquivos um crachá de identificação da Stasi de um certo Vladimir Putin, agente secreto da KGB. A suspeita é de que o documento permitia que o russo entrasse na sede do serviço alemão para recrutar agentes e manter reuniões.

Anos depois, foi o colapso da Alemanha Oriental que teria criado em Putin uma visão particular do papel do estado e de suas forças de ordem.

Um vasto debate também é ainda alvo de polêmica diante da suspeita de que a Stasi, em colaboração com a KGB, orquestraram uma campanha de desinformação para culpar o governo americano pelo surgimento da Aids.

Suspeitas apontam que uma operação com o codinome Infektion teria sido organizada pelos alemães e soviéticos para espalhar rumores de que o vírus doHIV teria sido um experimento do governo americano. O método seguia um padrão: a notícia supostamente de um cientista anônimo apareceria num jornal no exterior e, de la, seria recuperada pela imprensa alemã e soviética, como sendo verdade.

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Comunicação "encriptada"

Seja qual for a verdade sobre essa operação, a realidade é que, em 30 anos, o governo alemão já gastou milhões de euros para descobrir seu próprio passado.

Mas, hoje, os arquivistas admitem que não há nem mesmo como colocar um prazo para concluir esse trabalho. Por enquanto, cerca de 80 mil páginas foram recuperadas. Dos 15 mil sacos de papel picado, porém, menos de 200 deles foram tratados.

No total, estima-se que fichas sobre mais de 6 milhões de pessoas foram criadas pela máquina de repressão. E isso tudo sem computadores ou coletas de dados online.

Dagmar revela que, mesmo na destruição, a Stasi parece que tinha um plano. O papel não está simplesmente picado. Mas cortado em tamanhos tão pequenos que nem a mente humana é capaz de montar o quebra-cabeça.

"Estamos fazendo esse trabalho manualmente. Mas é algo muito difícil", disse. Segundo ela, técnicos aguardam o desenvolvimento de algoritmos para ajudar na missão. A esperança é de que a tecnologia possa, finalmente, desvendar a dimensão da repressão e da desinformação conduzida por anos por um dos sistemas mais perversos do mundo.

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