"Temo volta de uma ditadura"

Aos 65, ex-chacrete perde amigos para covid-19, relembra censura militar e planeja Carnaval no fim da pandemia

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Simon Plestenjak/UOL

Rita Cadillac caminha entre ervas, flores e folhagens enquanto conversa com o UOL numa manhã de quarta-feira. A cada latido do poodle toy Pietro, de dois aninhos, ela pede que o filhote se acalme, o aperta contra o peito e sorri: "Esse cachorro é minha companhia nessa quarentena".

Rita perde o fôlego ao nomear cada uma das espécies de plantas que cultiva na varanda do apartamento em que mora, no centro de São Paulo. "Santacecilier", a artista vive no bairro há dez anos, tem samambaia pendurada na parede e piso de taco de madeira, que, ela garante: quase estragou de tanto cloro que jogou na casa por medo de pegar covid-19.

A "histeria passou" e agora Rita sente medo da possibilidade de o Brasil voltar a ser uma ditadura militar. "Eu vivi a ditadura. O Chacrinha foi levado para o DOI-CODI várias vezes depois do programa. Tinha um censor que ficava ali todo dia. Eu não abria a minha boca, tinha medo de falar qualquer coisa. Só de lembrar disso, fico apavorada".

Com sua autobiografia pronta, cuja data de lançamento precisou ser adiada por causa da pandemia do novo coronavírus, Rita passa fins de semana fazendo entregas para restaurantes do bairro. De grana, garante, não ganha nada, nem dos estabelecimentos, nem dos próprios projetos —atualmente, parados.

Ela conta que até recorreu aos R$ 600 do governo e que "foi ótimo, paguei minha internet, minha luz e parte do aluguel. Agora, quem não tem grana guardada faz o que com R$ 600?".

Nesta entrevista, Rita diz que será Cadillac "até morrer", mesmo quando estiver velhinha vendendo marmitas em vez de colocar a bunda para fora. Confessa que detesta política, mas bate panela porque "esse governo não dá". Ameaça, rindo, que "se você me chamar de senhora nessa reportagem, eu te processo", e lamenta a morte de amigos por covid-19: "Vá pra porra, grupo de risco".

Você faz 66 anos em 2020, já faz parte do grupo de risco do novo coronavírus. Ainda assim, decidiu fazer as entregas de alguns restaurantes da Santa Cecília. Não tem medo?
Claro que tenho. Não estou histérica como estava quando tudo isso começou. Eu estava tão neurótica que acabei com os tacos do meu piso, com meu sinteco, de tanto cloro que "taquei" nessa casa. Mas ainda dá medo porque esse vírus é desconhecido. Agora, eu tenho me protegido como posso: vou toda paramentada, de carro, fazer as entregas. Decidi fazer isso porque moro na Santa Cecília há dez anos e tenho uma ligação forte com esse bairro, amo morar aqui, conheço todo mundo. Sei que não está fácil para os donos desses restaurantes, então, como não posso ajudar financeiramente, até porque sou eu quem preciso ser ajudada, sugeri fazer algumas entregas.

O lançamento da sua autobiografia estava marcado para junho. Além de mudar a data, você vai fazer alguma alteração no livro?
Vou, já até falei para o Flávio [Queiroz], que é quem escreveu: "Espera aí, a gente tem que botar um capítulo final dizendo que eu venci a pandemia". Quer dizer, ainda não venci, nem sei se vou, mas passei por esse momento, isso precisa estar no livro. Te digo, tenho 65 anos e nunca vivi nada parecido com isso, é um momento assustador que parou o mundo inteiro. Tenho medo, mas, olha, medo, mesmo, tenho de que o Brasil volte a ser uma ditadura. Eu vivi a ditadura militar e é inacreditável que a gente corra o risco de sofrer esse retrocesso.

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Você acredita que existem chances concretas de que isso aconteça no Brasil?
Sim. E me arrepio só de pensar. Eu estava lá, sabe? Um dia, saí para encontrar uns amigos, e um jipe do Exército me parou na rua. Os caras desceram com metralhadoras e fuzis apontados para a minha cara, gritando e pedindo meus documentos, perguntando aonde eu ia. Isso que eu nunca fui de me meter com política, hein? Odeio política, sempre odiei. No Chacrinha, tinha um censor. Ele, o tempo todo, censurava nossas roupas. Eu não abria a boca, morria de medo, então, comigo, o lance era só com as roupas, mesmo. Agora, com o Chacrinha, a censura era na fala. Já o acompanhei sendo levado para o DOI-CODI, para ser interrogado, mais de uma vez. Não poder ter opinião própria dá medo, e isso já está acontecendo.

Você tem se sentido agredida ao expor sua opinião quando se trata do presidente Jair Bolsonaro?
Sim. Não posso falar nada que sou agredida nas redes sociais. Tenho até medo de bater panela contra o Bolsonaro e o vizinho, que insiste em gritar a favor do cara sempre que os panelaços começam, me encontrar na rua e vir tirar satisfação comigo. Sei lá, dá medo, entende? Não sei te falar o que estou sentindo em relação a esse governo. Não dá. A gente tem visto enfermeiros, jornalistas sendo agredidos. O que é isso? As pessoas sofreram uma lavagem cerebral. Todo mundo tem direito de se expressar e isso não pode mudar.

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As estatísticas da covid-19 têm deixado de ser números e se transformado em nomes, em pessoas conhecidas. Algum caso entre seus amigos?
Tem, sim. Amigos que pegaram e se curaram, amigos que, infelizmente, partiram. E a gente vê cada vez mais. No começo, diziam que eram os velhinhos, e só os velhinhos, que corriam risco. Agora, não tem mais essa. Tem criança morrendo, jovem, atleta. Estamos todos em risco. O SUS é o melhor plano de saúde do mundo, a gente tem visto isso agora, tem valorizado. Ainda assim, precisa de investimento, porque os hospitais estão lotados. Mais uma vez, a desigualdade desse país está escancarada.

Todos os seus shows foram cancelados. Você se cadastrou para receber os R$ 600 do governo?
Peguei sim, não sou besta. Ajudou muito, pagou minha internet, minha luz e parte do aluguel. Tenho pouco dinheiro guardado. E quem não tem, faz o que com R$ 600? Nem em comunidade dá para morar e comer com esse valor. O governo precisa proteger os mais vulneráveis. Sei que minha área vai ser a última a ser liberada. Até o futebol vai voltar, já existem jogos sem público. Agora, show sem plateia? Oi? Minha agenda estava lotada de março até o fim de maio, tinha muito show para fazer. Foram todos cancelados e eu, claro, não vi esse dinheiro.

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Você participou do clipe "Acima de 60", do Mc Dia de Maldade. Foi natural ser a cara da terceira idade no funk?
Super. E o Mc é uma gracinha, me surpreendeu muito. Quando houve o convite, vi o nome 'Dia de Maldade' e pensei: "Meu Deus, o que é isso?". Conversei com ele e a surpresa foi muito boa, ele é muito educado. Dizia para as pessoas "não façam besteira perto da Rita". Nem gíria ele usava para falar comigo. Foi uma experiência bem divertida. Envelhecer, para mim, é só um número que muda nos cadastros que preciso fazer. Minha idade é na cabeça. Tem dia que quero ter 15 anos, tem dia em que acordo com cem.

Você assumiu a postura de uma mulher sexy durante a vida inteira, e permanece assim ainda hoje. O que muda na forma de se relacionar quando a maturidade chega?
Não me acho sexy porra nenhuma, sou normal. Mas, graças a Deus, ainda tenho alguma coisinha que agrada, tá bom demais. Brinco, falo besteira e sou séria quando tenho que ser. É chato demais ser muito certinha, eu visto as roupas que eu quero. Vou fazer "meia meia" e uso roupa colada, sim. E, meu amor, se eu me sentir bem, até posar nua eu vou. Tem gosto para tudo. Gosto para novinha, para "veinha", para celulite, para não celulite, para tudo, graças a Deus, amém!

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Você idealiza sua aposentadoria, uma vida longe dos palcos, em algum momento?
Não me vejo sem trabalhar, mas sei que, um dia, precisarei olhar para isso. Não me vejo tipo "não existe mais a Rita Cadillac, agora sou Rita de Cássia". Ela vai estar lá. Aguentou 47 anos e vai aguentar até o fim da minha vida. É claro que, em algum momento, ela não vai estar em cima de um palco colocando a bunda para fora, porque, por mais "Pitanguis" que existam, não tem plástica que garanta um corpinho de 20 anos para sempre. Agora, mesmo que eu estiver velhinha, numa cozinha, fazendo marmita para vender, vou ser a Rita Cadillac.

O que tem feito para amenizar a solidão da quarentena, além de abraçar seu cachorrinho, Pietro, mais que o normal?
Pietro me salva, viu? Faço chamadas de vídeo com meus amigos todos os dias, mas é tão ruim não poder abraçar nem beijar as pessoas que a gente ama, né? Além disso, o Paulinho, meu cabeleireiro, tá passando a quarentena aqui comigo, e meu irmão, que mora aqui no mesmo prédio em que moro, vem jantar aqui toda noite. Ele fica na poltrona, eu, no sofá, a uns dois metros de distância. Como tenho o Pietro, preciso sair para passear com ele. Sempre de máscara, dou a volta no quarteirão, paro no restaurante, cotovelo daqui, cotovelo dali. Só que estou cansada de andar só nesse quarteirão. Se taparem meus olhos, até desvio dos buracos, de tanto que repito esse percurso. Ainda assim, se não fizer isso, fico louca.

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Qual vai ser a primeira coisa que a você vai fazer quando acabar a quarentena?
Sair abraçando e beijando todo mundo que conheço. Queria fazer uma festa enorme, também, fechar a rua, pedir para os donos dos bares botarem comida numa mesona e a gente fazer um dia de Carnaval; com trio elétrico e tudo. Vou comemorar a liberdade como nunca, porque nunca pensei em passar tanto tempo assim presa. Que seja logo, né? Vá pra porra, grupo de risco!

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