Batismo de sangue

Ritual de iniciação da milícia do RJ inclui assassinato, esquartejamento e cemitério clandestino

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Medo e Demência/UOL

A milícia, conjunto de grupos armados que atuam na ilegalidade no Rio de Janeiro, adota um ritual de iniciação para novos membros que inclui sessões de tortura, assassinato, esquartejamento e enterro em cemitérios clandestinos em áreas rurais.

O UOL teve acesso a informações que mostram o batismo de sangue do crime, investigado pela Polícia Civil e pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro). Os dados integram a apuração sobre a expansão dos paramilitares para as cidades da Baixada Fluminense.

Na noite de 18 de junho deste ano, oito homens fortemente armados surpreenderam um grupo de mototaxistas regularizados no Parque Sarandi, em Queimados (RJ).

Segundo as investigações, eles se vestiam e falavam como se fossem policiais. De roupas pretas, toucas ninjas e coletes à prova de balas, adotavam procedimentos semelhantes aos usados por agentes da lei.

Em represália aos profissionais, que se negaram a seguir as determinações da organização criminosa, os milicianos depredaram as motocicletas do grupo. Em seguida, começaram a vasculhar a região para localizar dois alvos.

Invadiram uma casa e se identificaram como policiais para retirar um homem de lá algemado, sob o pretexto de que iriam levá-lo à delegacia da região, onde ele prestaria esclarecimentos.

Ronald Cabral Alvares, que tinha 26 anos, foi acusado pelo grupo de ser usuário de drogas. Na outra abordagem, foram mais violentos: arrastaram Márcio Wagner Alves, 49, a socos e pontapés. O motivo: segundo a milícia, ele teria furtado um pássaro de um integrante do grupo.

Em dois veículos, os milicianos rodaram cerca de sete quilômetros por uma estrada de terra para chegar em um sítio abandonado. O local era usado como cemitério clandestino pelos paramilitares.

Ronald foi morto com um tiro na cabeça. Segundo a Polícia Civil, Márcio acabou sendo assassinado a facadas em um ritual de iniciação para um novo membro do grupo. De acordo com as investigações, o novato também precisou decapitar a vítima para ser batizado como membro da milícia.

Depois de aceito no grupo, o novato precisa passar por um ritual de ingresso, que inclui decapitação ou esquartejamento. Não foi um caso isolado. Encontramos corpos de várias vítimas que comprovam essa prática macabra
Delegado Leandro Costa, da DHBF (Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense)

No dia seguinte, agentes da delegacia chegaram ao local do crime e prenderam quatro suspeitos. Na região, encontraram o facão usado pelos paramilitares, com vestígios de sangue, no porta-malas de um carro.

Segundo a polícia, os corpos eram jogados em poços no cemitério clandestino da milícia. Em seguida, aterrados.

Com o auxílio de retroescavadeiras, a polícia identificou ossadas de pelo menos 15 desaparecidos. Mas há informação de que cerca de 50 vítimas da milícia foram enterradas lá. As buscas continuam.

Lista negra no Facebook

Investigações apontam que o duplo homicídio foi cometido por um grupo conhecido como "Os Sete", em referência aos integrantes do primeiro escalão da quadrilha.

Ex-militar do Exército, Carlos Luciano Soares da Silva, conhecido como Macaco Louco, é suspeito de ter sido o mandante do crime. O Disque-Denúncia oferece recompensa de R$ 1.000 por informações que indiquem o paradeiro dele. "Ele é o miliciano mais violento e temido do grupo", diz Leandro Costa, delegado da DHBF.

A quadrilha, que também explora os moradores de condomínios do programa habitacional Minha Casa Minha Vida, do governo federal, repete a mesma trajetória da milícia da zona oeste do Rio.

Inicialmente, o combate ao tráfico de drogas servia como pretexto para agir. Entre 2016 e 2018, os mesmos criminosos integravam um grupo de extermínio conhecido como "Caçadores de Ganso", em referência a uma gíria usada por policiais da capital para se referir a traficantes.

Nesse período, o mais violento da quadrilha, eles usavam as redes sociais para divulgar listas de traficantes jurados de morte. Às vezes, publicavam a foto da vítima ainda com vida. "Esse é o próximo", postou um membro, ao anunciar quem seria morto, em publicação registrada em outubro de 2016 e anexada a um inquérito de homicídio na DHBF.

Em seguida, foram publicadas as fotos para comprovar o assassinato no perfil do Facebook.

Os milicianos também mandavam recados aos seus alvos, para mostrar que conheciam a rotina deles e monitoravam os seus passos. "Aproveita o churrasco que você está fazendo porque será o seu último", registrou um outro integrante do grupo.

Em alguns casos, os crimes tinham o que eles chamavam de "caixão fechado, com selo de garantia", uma espécie de assinatura dos paramilitares, quando a vítima era atingida por diversos tiros no rosto.

Segundo a Polícia Civil, o grupo assumiu a autoria de pelo menos 20 homicídios pela internet, com inquéritos instalados pela DHBF.

Com 115,6 mortes violentas a cada 100 mil habitantes, Queimados aparece em 5º lugar no ranking das cidades com maior número de homicídios do país, segundo o Atlas da Violência de 2019. No ano passado, o município apareceu no topo da lista.

De acordo com o relatório, elaborado em parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública com base em dados registrados em 2017, o alto índice de violência está relacionado à disputa por território entre milícia e tráfico. Segundo a Polícia Civil, pelo menos 100 pessoas foram executadas por milicianos nos últimos dois anos.

Juros abusivos e ameaças de morte

O UOL teve acesso a uma investigação da milícia também nos bairros Grama, Miguel Couto, Figueiras e Vila de Cava, em Nova Iguaçu (RJ).

Interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça revelam a ação violenta dos agiotas em conversas registradas de 17 a 29 de julho de 2017. Eles faziam ameaças de morte e cobravam juros abusivos de até 40% do valor emprestado pela milícia.

Em uma conversa por telefone, um dos agiotas grampeados disse a um comparsa que estava cogitando a possibilidade de exigir que uma devedora pagasse parte da dívida com favores sexuais.

Às 16h27 de 18 de julho de 2017, Ednílson Jesus da Silva, conhecido como Baiano, é orientado por um chefão do grupo não identificado pelas investigações a cobrar 10% de juros e a fazer cobranças duras. "Mas bota um terror nele. Fala pra ele pagar essa porra toda".

Baiano segue à risca a orientação, como mostra uma conversa por telefone com uma devedora, às 18h09 do mesmo dia.

Policiamento reduzido e mais violência

O aumento de ações marcadas pela violência extrema tem sido um dos efeitos colaterais da expansão da maior milícia do país para os municípios da Baixada. Em locais com policiamento reduzido, paramilitares impõem um estado paralelo marcado por uma imposição sangrenta.

Eles costumam se expandir em áreas onde há menor visibilidade. A falta de presença do poder público e da atenção sobre o que acontece lá favorece a milícia
Ignácio Cano, autor de estudos sobre o avanço das milícias no Rio

Nos últimos três anos, o grupo da zona oeste do Rio, conhecido como "A Firma", percebeu o cenário favorável: passou a estabelecer parcerias e a abrir "franquias do crime" nos municípios da Baixada, como noticiado recentemente pelo UOL.

Segundo a Polícia Civil, grupos locais são acionados em invasões a territórios até então dominados apenas pelo tráfico. Cada quadrilha é obrigada a reforçar o exército da maior milícia do país com pelo menos um veículo com homens armados com fuzis.

Desaparecimentos indicam ação da milícia, dizem especialistas

Essa movimentação teve uma influência nos índices de criminalidade, apontam especialistas. De janeiro a novembro de 2017, no auge da expansão da milícia para a região, o ISP-RJ (Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro) registrou 1.784 crimes violentos letais intencionais nos municípios da Baixada, média superior a cinco mortes por dia.

O índice, que leva em consideração as mortes em decorrência de homicídio, lesão corporal seguida de morte e latrocínio (roubo com vítima fatal), foi o maior registrado nos últimos anos.

Em 2019, houve queda de 35%. Por outro lado, o ISP-RJ registrou 1.165 desaparecimentos na Baixada de janeiro a novembro deste ano, alta de 15% em comparação ao mesmo período de 2017.

Luiz Antônio Ayres, promotor do MP-RJ que atua em processos relacionados à milícia desde o seu surgimento, acredita que o aumento inicial dos homicídios é o efeito colateral da conquista do território. Depois da expulsão de rivais e de se estabelecer no poder, o promotor relaciona o aumento dos casos de desaparecimento a uma ação mais discreta da milícia.

"Já no território, os milicianos não querem deixar rastros. Aí, as pessoas começam a desaparecer. Mas esses dados não são tratados como um problema de segurança pública e não despertam a atenção das autoridades", alerta Ayres.

O delegado Leandro Costa, da DHBF, que investiga os assassinatos na Baixada, concorda. "Quando a milícia mata, ela deixa a sua marca. Depois que se estabiliza, passa a agir com mais discrição. Aí, diminuem os índices de homicídio e aumentam os de desaparecimentos".

O olho de Tandera

Em meio à expansão crescente dos paramilitares na Baixada, extorsões a grandes empresas, mortes autorizadas pelo tribunal do crime passaram a fazer parte da rotina dos grupos, indicam investigações da Polícia Civil. Nesse cenário, um homem é apontado como o responsável pelas decisões da maior milícia do país, que controla as ações das "franquias" e dos outros grupos, em uma hierarquia de poder.

Danilo Dias Lima, o Tandera, é o encarregado pelas alianças formadas na região. E, segundo informações repassadas a investigadores, ele pode estar por trás do sumiço de três milicianos, há seis meses.

Os desaparecidos representavam um grupo de Queimados que foi denunciado ao MP-RJ, acusado de cobrar pela autorização de obras de saneamento de asfalto desde 2018.

Essa quadrilha também estaria exigindo propina de R$ 300 mil mensais para autorizar a circulação de uma empresa de fornecimento de energia elétrica nos municípios de Seropédica e Itaguaí, reduto de Tandera. Segundo as investigações, a mesma milícia ainda estaria cobrando pagamentos a um representante comercial encarregado de entregas de refrigerantes nos comércios.

Quando descobriu que esse grupo tinha arrecadado R$ 1,7 milhão com extorsões, Tandera decidiu convocar uma reunião, para cobrar pelo dinheiro arrecadado. Os milicianos de Queimados foram ao local e aceitaram repassar o valor. Mesmo assim, não houve acordo.

No encontro, Tandera também questionou uma encomenda de fuzis feita pelo grupo, que queria tomar o território de desafetos sem consultá-lo. Como eles se negaram a mudar de ideia e reafirmaram a intenção de expulsar milicianos rivais, Tandera teria ordenado a morte deles, segundo a investigação.

Os corpos nunca foram encontrados. Mas a Polícia Civil acredita que os cadáveres possam estar em um dos cemitérios clandestinos da milícia, em áreas rurais da Baixada. Nos últimos seis meses, a Polícia Civil descobriu a existência de três locais usados para ocultar corpos daqueles que desafiaram as ordens impostas pelo poder paralelo da milícia.

Topo