Lado A, Lado B

De origens contrastantes, empreendedores de Moema e Capão discutem desigualdades de SP, 466 anos

Paulo Guilherme Colaboração para o UOL, em São Paulo Guilherme Zamarioli/UOL

São Paulo chega aos 466 anos com sua veia de desigualdade acentuada não apenas nos números discrepantes dos indicadores econômicos e sociais. Nem nas cores que marcam o mapa da cidade com pretos e pardos na periferia e a população branca concentrada nos bairros mais perto do centro. Nem apenas na famosa imagem do prédio de luxo com piscinas na varanda do Morumbi com os barracos de Paraisópolis ao fundo.

Em seu mais recente Mapa da Desigualdade, divulgado em novembro passado, a Rede Nossa São Paulo destaca que "os efeitos são perversos e afetam a todas e todos, inclusive às pessoas socialmente mais privilegiadas. Esses efeitos se refletem em vários aspectos mensuráveis, como nos índices de criminalidade e violência [social e simbólica]; nos tipos e na remuneração do trabalho; no nível de estresse e nas doenças que afetam a população. Esses números demonstram, explicitamente, os sinais de uma sociedade desequilibrada e com baixos índices de bem-estar social".

Para quem nasceu e cresceu em bairros de extremos nesses índices do "desigualômetro", a disparidade refletida nos números pode ser atenuada com mais investimentos em cultura e educação. O UOL conversou com dois empreendedores nascidos e criados em realidades bem diferentes e antagônicas e que veem no acesso à cultura e educação o melhor caminho para tentar reduzir essa desigualdade.

Zanone Fraissat/Folhapress Zanone Fraissat/Folhapress

O lixo e o hangar

"Eu trabalhei dois anos de gari e depois como coletor de lixo. Foi quando passei a sair do Capão Redondo.

Limpava a Oscar Freire, a Nove de Julho, a Berrini, a Cidade Jardim. O grande negócio que me vem quando eu trabalhava nessas áreas era ver os contrastes. As vias eram muito diferentes da rua onde eu vivia. Isso me chamava a atenção. Diante disso passou a me chamar a atenção que por que aqui tem isso aqui e lá não tem?

Bruno Horácio Pereira dos Santos, 30, mais conhecido como Bruno Capão, é um dos cinco filhos de Delma Rodrigues, que com muito trabalho como diarista conseguiu criar as crianças no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo.

Ali, a média de idade em que as pessoas morrem é de 60,4 anos; 27,6% dos domicílios estão em favelas. Existem 0,04 leitos hospitalares para cada 100 mil habitantes; 11,5% dos recém-nascidos são filhos de mães adolescentes; e 53,9% da população é de pretos e pardos (o maior índice é do bairro vizinho, Jardim Ângela, com 60,1%).

Bruno estudou em escola pública. Quando se tornou adulto passou a mudar essa realidade trabalhando como empreendedor social. Fundou em 2014 junto com Micheline Farias e Guilherme Rodrigues o Nave (Núcleo de Acolhimento e Valorização da Educação), que hoje atende cerca de 80 crianças e adolescentes em situação de extremo risco social de três comunidades da região.

Marco Amaro nasceu e cresceu em Moema, também na zona sul, mas com uma realidade muito diferente.

Moema é o bairro com 5,8% de pretos e partos (o menor índice de São Paulo), e de maior média de vida: 80,5 anos —20 anos a mais do que no Capão. O índice de domicílios em favelas é zero, tem a quinta maior média de leitos hospitalares (17,9 para cada 100 mil habitantes) e o menor índice de gravidez na adolescência de São Paulo - só 0,35% dos recém-nascidos são filhos de mães até 19 anos. Os dados são do Nossa São Paulo.

Foi ali que Marcos, 35, nasceu e cresceu. Ele é um dos três filhos do empresário Rolim Amaro, fundador de uma das maiores companhias aéreas do país, a TAM, que em 2010 anunciou a fusão com a chilena LAN, formando a Latam. O Comandante Rolim morreu em 2001 em um acidente de helicóptero e deixou a veia de empreendedorismo no filho.

Conviveu com a comunidade vizinha ao hangar da TAM, em Congonhas. Mas não sentia a diferença: "Só fui perceber isso mais tarde".

Lalo de Almeida/Folhapress Lalo de Almeida/Folhapress
Marcus Leoni/Folhapress

"Aqui é o Vale do Silêncio, que grita o tempo todo trazendo inovação"

Depoimento de Bruno Capão, 30, empreendor do Capão

Nasci e cresci no Capão Redondo, no chamado Morro do Piolho. Sou o mais novo dos cinco filhos. O terreno era invadido e todo o descarte de lixo ficava perto da nossa casa. Então eu brincava no meio do lixo. Foi no meio desse rolê de crescer num ambiente muito hostil de muita pressão que a desigualdade exercia na minha vida.

Nossa casa era precária, não tinha mesa para comer, cama para dormir. Minha mãe teve que fazer muita mágica para poder criar todos os filhos sem a referência paterna [o pai participou pouco da criação]. Meus irmãos são filhos de José e eu sou filho de Antonio. Ela era diarista e doméstica. Sempre que podia ela me levava para o trabalho, na região do largo da Batata. Hoje muito do que eu sou devo ao que aprendi com ela.

Dos 14 anos em diante só sobrava para mim a escola. Foi um dos grandes laboratórios. Fui me envolvendo com os grupos, aquela coisa de buscar sua identidade.

Com 15 anos, fumando com amigos passei a praticar pequenos furtos. Com 16 anos fui parar na Febem [hoje Fundação Casa]. Fiquei seis meses na Febem do Tatuapé. Teve uma mega fuga de 500 internos e eu fui um deles

Fiquei um mês na rua. E depois tive uma conversa olho no olho com minha mãe e meu pai. Eu estava numa linha tênue delicada entre o crime ou voltar a estudar e fazer as coisas certas, mas tinha que pagar com a Justiça.

Fiz a escolha de dizer que ninguém poderia resolver minha vida a não ser eu mesmo. Fomos juntos ao Fórum da Vara da Infância e Juventude no Brás para sair pela porta da frente e ressignificar minha história. Sabia que ia ser eu e mais eu.

Comecei a escrever uma lista de sonhos que eu tinha e a primeira delas era voltar a estudar. Queria ser lixeiro por conta da minha infância em que brincava com o lixo

Depois de mais cinco meses eu saí em liberdade pela porta da frente. Foi então que comecei a atuar no projeto do Instituto Rukha que havia no Capão. Em seguida me tornei pai. Fui gari e coletor de lixo.

Foi quando passei a sair mais do Capão Redondo. Limpava a Oscar Freire, Nove de Julho, Berrini Cidade Jardim. O grande negócio que me vem quando eu trabalhava nessas áreas era ver os contrastes. Eu via que era muito diferente a Oscar Freire da Carlos Lacerda onde eu vivia. Diante disso passou a me chamar a atenção: por que aqui tem isso aqui e lá não tem? Na coleta de lixo conheci aldeia indígena em Parelheiros, zona leste e oeste. Quando comecei a empreender e me lembrar das coisas que eu via diferente entre o centro e a periferia.

Quando meu irmão saiu do trabalho em uma padaria, a gente se juntou e fez um projeto no Capão de uma experiência gastronômica, o Ateliê Sustenta Capão.

Ele cozinhava e eu trazia gente para dentro da favela. Em 2014, eu conheci a Micheline e a gente passou a fazer juntos o projeto Nave (Núcleo de Acolhimento e Valorização da Educação). Passei a tentar fazer coisas semelhantes aqui.

A princípio era para fazer doação de cesta básica e entendemos que a comunidade precisava de educação. Hoje trabalhamos com esporte e cultura e um acolhimento de excelência para crianças e adolescentes em situação de extremo risco social.

Hoje temos base de atendimento de 70 a 80 crianças, a meta é chegar a 200 atendimentos até o fim do ano. Estamos em um espaço maior. Em parceria com a rede Gerando Falcões, estamos oferecendo oficinas de esporte e cultura: futebol, balé, percussão, jiu-jitsu e capoeira. Mais um acolhimento no contraturno escolar para crianças até 12 anos.

A gente acredita que tem que mobilizar a sociedade em prol dos necessitados. Não temos parceria com Estado. Quando o Estado entra você acaba preso. Tem muita exigência. Se o Estado fosse bom, a gente não precisava nem existir como projeto social

O maior sonho da população da periferia é ter casa própria. O segundo é ter o próprio negócio. Temos uma oportunidade grande para abertura de empreendimento que tenha a ver com o cenário cultural.

A coisa mais louca que me veio foi a consciência de que a gente que é da quebrada, quando atravessa a ponte, é estigmatizado de forma violenta. Desde 1996 quando teve 233 casos de homicídios, a ONU estampou isso e falou que era o lugar mais violento do mundo. Você falava que era do Capão Redondo as pessoas perguntavam se era violento, perguntavam pelo tráfico.

Muita coisa mudou de lá para cá. O metrô chegou até o Capão com a linha lilás.

Aqui já foi violento, muito mais do que é hoje. Até por força maior e por toda essa opressão do Estado, força policial, que é o braço maior que chega na periferia, o Capão Redondo se reinventa e vira o maior polo cultural independente do poder público.

Você tem eventos ligados à tecnologia. Feiras, eventos. A comunidade jovem da periferia, a população negra não tem acesso. Fizeram ano passado o PerifaCom, para quadrinistas, galera que faz aplicativos, o evento bombou.

O próprio hip-hop atua na quebrada salvando vidas. Hoje a parte do hip-hop que empreende na quebrada está ligada à moda, artigo de luxo, roupa. É uma população que estava excluída e que agora está encaixada no mercado.

Temos uma mentalidade de não depender mais do governo, qualquer que seja. Aqui na região fizeram um shopping que tem um cinema. Custa R$ 15 o ingresso. O jovem não tem acesso a esse equipamento cultural tradicional. Deveria ter uma política melhor e mais eficiente.

Temos a Coperifa, lugar de sarau para recitar poesia, que vai de dona de casa a escritores conhecidos. Temos a festa de rap mais popular do Brasil, a 100% Favela, com de 5.000 a 7.000 pessoas.

Essa grande região que concentra o maior polo de cultura independente. Só que ninguém voltou para contar o que acontece hoje.

A periferia não é só funk. É hip-hop é audiovisual, é tecnologia. Tem muita coisa boa sendo feito e pouco explorada. De tudo o que é feito aqui ninguém fala. Só fala quando morre gente. Aqui é o Vale do Silêncio, que grita o tempo todo trazendo inovação, com recurso escasso, só que não aparece.

Stefânia Sangi/Divulgação

"Muitas das pessoas vivem numa bolha e não fazem questão de sair"

Depimento de Marcos Amaro, 35, empreendedor de Moema

Eu cresci em Moema, na zona sul de São Paulo. Tenho três irmãos, dois por parte de pai e uma irmã por parte de mãe.

Meu pai veio de família humilde de Pereira Barreto, no interior de São Paulo. Moravam numa casa muito simples que não tinha luz elétrica. Ele batalhou muito na vida, sempre trabalhou demais para construir a empresa. Foi com muita luta determinação que meu pai, o comandante Rolim Adolfo Amaro, construiu a TAM.

Eu gostava quando era menino de ir com meu pai ver ele trabalhando no Hangar da TAM no Aeroporto de Congonhas. Meu pai fazia questão que eu convivesse com outras realidades e conhecesse a periferia. Sempre destacou a questão de manter a humildade.

Então enquanto ele trabalhava eu brincava com as crianças na comunidade que fica próxima ao aeroporto. Não sentia a diferença, só vim perceber isso mais tarde

Isso foi muito positivo para mim e me dá uma condição interessante como empresário para entender diferentes possibilidades. Muitas das pessoas vivem numa bolha e não fazem questão de sair. Isso atrapalha a própria pessoa. Se não você tem um entorno positivo não consegue viver. O social é muito importante.

Eu desde cedo resolvi seguir meu próprio caminho. Estudei na Escola Morumbi e no Colégio Visconde Porto Seguro, fiz economia na Faap e me formei em filosofia pelo Instituto Gens Educação e Cultura. Fui trainee na TAM e membro do conselho de administração da empresa.

Quando houve a fusão com a LAN, em 2010, em vendi as minhas ações e me desliguei da empresa. Passei a ser representantes da marca de óculos Tag Heuer no Brasil. Depois eu comprei as Óticas Carol. Em 2013, vendi a empresa.

Agora estou totalmente dedicado no trabalho como artista plástico com a minha produção e também com a galeria Kogan Amaro que montei com a minha esposa, Ksenia. Temos uma galeria na alameda Franca, nos Jardins, e uma em Zurique, na Suíça. Ali nós representamos artistas brasileiros. Eu também me dedico ao museu que montei dentro de uma fábrica em Itu, o FAMA, na Fábrica São Pedro.

São Paulo é uma cidade complexa. Por um lado, oferece coisas muito diversas e positivas do lado da cultura. Temos grandes exposições e eventos culturais na cidade. Oferece música, concertos, teatro, cinema. Tem gente do mundo inteiro que vive e frequenta São Paulo.

Mas por outro lado tem um aspecto social difícil. A periferia é muito pobre. A diferença social e de renda é muito grande. Esses contrastes são típicos de países como Brasil. Nos Estados Unidos existe uma classe média muito consistente, então não dá para perceber tantos esses contrastes.

O mercado imobiliário em São Paulo se desenvolveu muito. Temos por exemplo a avenida Faria Lima como o novo centro financeiro de São Paulo.

Como cidadão, eu vejo um lado positivo, a cidade oferece mais parques. As pessoas têm se apropriado mais das ruas --foi uma contribuição importante que o ex-prefeito Fernando Haddad deixou de ter mais gente andando de bicicleta. É importante para que as pessoas possam usar o espaço público melhor.

Eu optei por montar meu projeto no interior de São Paulo. Da mesma forma que na periferia, o interior é muito carente em espaços de arte.

Vamos torcer para que o Brasil saia da condição econômica que está patinando há muitos anos e que é difícil de sair. Precisa de mais estímulo.

No Capão Redondo, por exemplo, tenho um colega, o Ferrez, que é um poeta e faz um trabalho muito interessante voltado à literatura e incentivo à leitura.

Tem muita gente boa fazendo o trabalho para reduzir essas diferenças, mas São Paulo ainda está muito longe de ser o que pode ser

Nova York já conseguiu superar várias discrepâncias. A cidade é um excesso de lazer. A gente está se instrumentalizando. Temos muito pela frente.

Nas nossas galerias nós incentivamos muitos artistas. A gente apoia jovens artistas com pautas e causas políticas que a gente considerada relevante.

Desde artistas que vieram da periferia de Pernambuco como o Samuel de Saboia, que foi até tema de uma reportagem do jornal The New York Times, e uma artista como a Gê Viana, que participou do Panomara do MAM que também veio do interior do Maranhão e trabalha a questão da sexualidade e da identidade do seu povo e da questão indígena.

Hoje você vê muita diversidade nas ruas e nos shoppings. Homem, mulher, transgênero. Mas ainda existe preconceito.

As novas gerações de jovens são tão descolados e conseguem lidar melhor que a gente que é mais velho. Eu vejo isso pelos meus cinco filhos.

O Brasil ainda é muito careta, até mesmo em São Paulo, que teria de ser mais diversa.

É fundamental poder se relacionar com o outro. O preconceito que vinha dos nossos pais vai sendo cada vez mais diluído pelo tamanho da diversidade. Mas ainda não é como Londres, Los Angeles que são cidades que você se sente até melhor.

Marcus Leoni/Folhapress Marcus Leoni/Folhapress

Um caminho conjunto: a cultura

Bruno Capão e Marcos Amaro acreditam que a cultura pode ser um caminho para reduzir as desigualdades que cada um vive bem de perto.

Tem muito empresário querendo ajudar, mas na maioria das vezes não sabe como. Prefere doar para o Criança Esperança, que é mais cômodo
Bruno Capão

O empresariado precisa se envolver mais com arte e cultura. Ainda é a grande minoria
Marcos Amaro

Já Bruno Capão tem a tarefa de buscar investimentos privados para os projetos do Nave no Capão Redondo. "Eu faço questão que a pessoa venha ver o nosso projeto na prática para não ficar uma conversa de cafezinho. Muitas vezes a gente fala da falta do recurso financeiro. Mas não dá para falar de valores monetários sem valores morais. A cultura de São Paulo e do Brasil está passando por uma crise. Tem absurdo de cortes em programas culturais. Hoje já não se tem esse apoio."

Segundo ele, as empresas têm se mobilizado mais, mas tem dificuldade de interlocução. "A gente que está na quebrada se considera um pontífice. A gente faz a ponte entre a Faria Lima e a Berrini, onde a renda está mais concentrada, com as favelas mais pobres. O Capão Redondo é um dos lugares que mais carecem de equipamento cultural. Só tem uma fábrica de cultura para mais de 300 mil habitantes. Existe uma escassez de oferta do poder público para atender essa juventude."

"Um país sem cultura é um país sem destino. A educação está muito associada com a cultura", diz Marcos, que faz críticas ao desmonte cultural promovido pelo atual governo. "Esse projeto de poder não é um que prioriza a cultura, que vê a cultura como brincadeira. Não vê como algo de fato que pode contribuir para desenvolver as pessoas.

Acho importante a produção cultural sair um pouco do centro, e o empresariado precisa se mexer para tirar a mão do bolso. O empresariado precisa se envolver com arte e cultura. Ainda é a grande minoria

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