São Paulo abaixo de zero

Na madrugada mais fria do ano, Marsilac, no extremo sul da capital, amanheceu a -3°C.

Wanderley Preite Sobrinho (texto) e André Porto (foto) Do UOL e Colaboração para o UOL, em São Paulo Andre Porto/UOL

A grama tomada pelo gelo, plantações congeladas, termômetros marcando temperaturas abaixo de zero. A descrição parece de uma cidade no Sul do Brasil, mas é no extremo sul da cidade de São Paulo. A menos de 40 km da Sé, sítios, chácaras e a mata atlântica fazem qualquer paulistano esquecer que ainda está na capital.

A pequena agricultora Maria Bernadete Alcebíades, 68, precisou criar coragem para levantar da cama, se cobrir de roupa e cuidar da horta na sua chácara Recanto do Jakinha, na região de Parelheiros, extremo sul da capital —onde a temperatura chegou hoje a 2ºC. Lá perto, em Engenheiro Marsilac, a mínima foi recorde: -3ºC.

Foi a madrugada mais gelada do ano em São Paulo, com o menor índice de toda a série histórica do CGE (Centro de Gerenciamento de Emergências), da prefeitura, que coleta dados desde 2004: a temperatura média na cidade oscilou em torno de 3,2°C.

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Antes de sair de casa, dona Bernadete vestiu cachecol, três casacos, meia grossa e uma calça de lã por baixo de outra, para esquentar.

Com a produção de morangos protegida do frio em uma estufa, a preocupação é com suas pancs (plantas alimentícias não convencionais), como azedinha e peixinho da horta, plantas medicinais e hortaliças, sua principal fonte de renda.

Mais sensíveis ao frio, as folhas de alface, almeirão, couve e rúcula são as estrelas nas cestas de produtos orgânicos que ela distribui de casa em casa.

Quando tem geada, as folhas amanhecem durinhas de gelo. Eu pego a mangueira com esguicho e lavo até o gelo derreter. Espero secar, misturo um copo americano de açúcar em 20 litros de água e pulverizo. Não perco nada."

Como ela já sabia que hoje a temperatura seria a mais baixa do ano na região, preferiu não arriscar e cobriu suas hortaliças com sombrite, uma tela que protege do sol, mas que ela improvisou contra a geada. Onde a proteção não chegou, diz, "fica por conta de Deus".

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Três horas para chegar ao hospital

A 6 km dali, já em Engenheiro Marsilac, a estudante de pedagogia Sheila de Souza Santana, 32, resistiu a deixar as três cobertas e sair da cama na manhã de hoje.

Ela, que é cadeirante, mora com o filho de 14 em uma casa de três cômodos sem estrutura para o frio —coberta apenas com telhado e com uma parede com marcas de umidade.

A cada 15 dias, precisa ir ao Hospital das Clínicas, na zona oeste. Ontem (29), os exames estavam marcados para as 8h. "Acordei às 4h e fui para o ponto sozinha às 5h", diz. São três horas só na ida, com as roupas quentes e bem protegida.

Marsilac é uma região muito rica, com cachoeira e ar puro. Apesar do frio, não me mudo por causa da paz. Ainda é um lugar em que a gente pode viver como antigamente, deixar a porta aberta. Tem gente que diz que aqui é um bairro primitivo, mas pra mim ele é raiz."

Sheila de Souza Santana, estudante de pedagogia

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Clima de serra e fogueira

A meia hora de carro dali, Patricia Helfstein Bauerman Schunck, 35, comemora a alta procura por acomodação durante o inverno no sítio que ela costumava alugar só no verão. Protegida do frio com chapéu e bota, ela conta que a pandemia de coronavírus e as férias escolares impulsionaram o movimento. O jeito foi se adaptar.

"É a primeira vez que recebo turistas no inverno", diz ela, que nasceu na região, mas investiu na criação do Sítio Reino Encantado, em 2017. "A casa para receber 12 pessoas ainda não têm preparação pra esse frio. Estou me virando pra fazer fogueira pro pessoal."

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Quando recebe a ligação de algum interessado, ela alerta para as baixas temperaturas. "Já explico que está muito frio, mas que a gente faz fogueira e aproveita a tematica festa junina."

Recebi turistas de Minas Gerais na semana passada que pegaram geada pela primeira vez. Eles ficaram malucos, brincando que ficou mais barato do que ir pra Campos do Jordão [na Serra da Mantiqueira]."

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Nessa madrugada, porém, o frio surpreendeu. "Eu nunca vi uma geada como a de hoje", diz Patricia, que todos os dias acorda às 6h para limpar o terreno e alimentar os bichos. "Normalmente a gente pega geada seca, mas, dessa vez, está úmido e não esquenta."

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Prejuízo de R$ 2 mil em uma noite

A dois quilômetros do sítio, o trabalhador rural Orlando Santos Oliveira, 62, tentava salvar as mudas de catalunha que sobraram depois da geada de hoje —"a maior dos últimos 30 anos", nas suas contas.

"Perdi uns R$ 2 mil com a geada dessa noite, nunca passei um frio desse em Marsilac", diz ele, que nasceu na região. "Pelo menos a geada veio no final da colheita."

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Enquanto espera a aposentadoria, seu Orlando se desloca pela plantação com a ajuda de uma bengala. É que há dez anos acabou atropelado por um carro ao se deslocar de bicicleta por uma das estradas de terra no entorno do sítio. "Esse frio atacou, dói muito."

Normalmente, ele sai da cama às 5h. Hoje, no entanto, esticou o sono. Morador de uma casa sem calefação, diz que não passa frio, mas precisa se proteger.

"Enrolei na cama, levantei já era umas 7h!", diverte-se. "Por mim, eu ainda estava debaixo da coberta", diz ele, que encontrou com a reportagem no fim da manhã.

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