Luta por água após alforria

Quilombo na BA vence luta de 50 anos contra a Marinha, garante demarcação, mas vê Justiça barrar acesso a rio

Alexandre Santos Colaboração para o UOL, de Salvador Raul Spinassé/UOL

Os militares estão retirando a gente da água. Temos direito. Sem água, a gente não sobrevive.

Ditas na manhã de sexta-feira, 16 de outubro, as palavras de Crispiniana, que pescava com outras mulheres, mais pareciam um presságio. Menos de 24 horas depois, o temor da marisqueira se confirmava: a pedido da Marinha do Brasil, a Justiça proibia as 110 famílias do quilombo Rio dos Macacos de acessar as águas que banham a comunidade, localizada entre Simões Filho e Salvador, na Bahia.

Disputada pelo grupo formado por ao menos cinco gerações de remanescentes de escravizados e a Força, a barragem Rio dos Macacos está no centro de um embate que durou meio século e parecia ter sido encerrado em julho deste ano.

Há apenas quatro meses, a comunidade recebeu do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) o título de posse de 98 hectares de terras até então pertencentes à União.

No processo de regularização, contudo, a barragem foi demarcada como pertencente ao território militar. Ainda assim, os quilombolas festejaram. Viram na decisão uma alforria tardia e vislumbravam a chegada de um novo tempo, com cidadania e serviços públicos.

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Carta de alforria

Marcado por ameaças de despejo, agressões e coerção por parte dos militares, o conflito fundiário entre o quilombo Rio dos Macacos e a Marinha perdura por quase cinco décadas.

No dia 28 de julho deste ano, o embate parecia ter chegado ao fim. A comunidade passou a ser dona de parte das terras —e foi quando o UOL passou a acompanhar a comunidade.

A conquista fundiária foi celebrada como desfecho de uma luta iniciada por seus ancestrais. O quilombo avalia que o feito é emblemático diante de reiteradas ameaças do governo federal de suspender a política de reforma agrária.

É uma luta de mais de 500 anos. Representa as nossas vidas, as vidas dos mais velhos. Passa um filme muito ruim, mas dá pra respirar um pouquinho, porque a gente recebeu a nossa carta de alforria.
Rosimeire dos Santos, 41, líder do quilombo do Rio dos Macacos

Foi ela a responsável por assinar a "carta de alforria" em um ato formalizado na sede regional do Incra em Salvador. "Não sabia se chorava ou se dava risada. Agora, a comunidade já é dona", diz. Na época, a expectativa de Rosimeire era ver chegar à comunidade direitos há tempos renegados, como acesso à água encanada, moradia digna e rede de esgoto.

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Herança dos senhores de engenho

As dezenas de famílias do quilombo Rio dos Macacos vivem em casas precárias, feitas de madeira, barro e telhado de amianto. Luz elétrica só virou realidade nas residências em 2017. Do lado de fora dos casebres, iluminação pública é inexistente.

A maioria dos moradores tira o sustento da roça e da pesca, meios de subsistência que receiam perder. É da barragem que os moradores tiram água para consumo próprio e dos animais e garantem a irrigação do que plantam no local.

A comunidade vive na região que formava as fazendas de cana-de-açúcar Aratu, Meireles e Macacos, segundo registros da Biblioteca pública Consuelo Pondé, especializada na história da Bahia. Um dos fazendeiros prometeu a ex-escravos e remanescentes que doaria glebas a eles.

Antes de cumprir a promessa e formalizar a doação das terras, o proprietário contraiu dívidas tributárias, o que levou o Estado da Bahia a expropriar parte do terreno e destiná-lo à prefeitura de Salvador. Ainda assim, a comunidade negra que habitava a região permaneceu ali. Um documento, formalizado entre o fazendeiro e Prefeitura de Salvador em 1916, menciona a presença dos posseiros tradicionais.

Como a presença dos quilombolas não foi reconhecida, os direitos da comunidade sobre a terra foram desconsiderados nos processos de doações. Mais tarde, em 1960, a Fazenda Macacos foi repassada pela prefeitura à Marinha do Brasil.

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A batalha pela terra

A Marinha construiu no rio uma barragem, entre 1957 e 1961. Os conflitos entre militares e quilombolas começaram em 1971, quando a Base Naval de Aratu foi erguida na região.

A situação permaneceu tensa, mas esquentou de vez em 2009, quando a Marinha iniciou na Justiça uma ação para reivindicar a posse do território. Para impedir a expulsão, a comunidade buscou sua formalização como quilombo. Obteve reconhecimento da Fundação Palmares ainda em 2011 e encaminhou no mesmo ano um pedido de demarcação de terras ao Incra.

A partir daí, os atritos com os militares se intensificaram. Diante das denúncias de coerção e agressões relatadas pelos quilombolas, o Ministério Público Federal abriu um inquérito para acompanhar o caso.

Em fevereiro de 2014, oficiais da Marinha foram flagrados agredindo a líder quilombola Rosimeire e seu irmão Rosinei dos Santos na portaria da vila militar, enquanto passavam de carro, único meio de acesso ao quilombo. Imagens do circuito interno de segurança mostram um oficial jogar Rosimeire duas vezes no chão e outros dois tentarem amarrar suas mãos. A certa altura da discussão, um deles saca uma arma.

Inicialmente, a Marinha disse que a líder quilombola tentou desarmar o militar. Depois, repudiou atos de violência e afastou os quatro oficiais envolvidos. A hostilidade era tanta que, em novembro de 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) visitou a região para colher relatos das famílias e apurar possíveis atos de discriminação contra os quilombolas. O relatório não chegou a ser produzido.

Em resposta à reportagem sobre hostilidades praticadas por militares no entorno da barragem, a Marinha afirmou que "pauta o seu agir na observância da estrita legalidade, no cumprimento das decisões judiciais, na responsabilidade social e no respeito à dignidade do ser humano. Afirmações contrárias não guardam relação com a verdade".

Antes disso, a Força já havia tentado expulsar os quilombolas. Em 2013, obteve decisão judicial para despejar as 46 famílias que ocupavam a área na época. Elas só não foram para a rua porque o MPF reverteu a situação por meio de uma ação civil pública em janeiro do mesmo ano.

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O Incra no meio do caminho

Após receber o processo, o Incra demorou um ano só para analisá-lo. Quando o fez, destinou uma área de 301 hectares ao quilombo. Como isso não agradou aos militares, o pedido voltou para a gaveta. Só saiu de lá após vitória judicial da Procuradoria da República na Bahia e da Defensoria Pública da União em 2014.

No fim das contas, o órgão federal revisou a demarcação e concedeu aos remanescentes de escravos só 98 dos 270 hectares reivindicados e destinou 196 hectares à Marinha. No processo de demarcação, o acesso à água ficou nas terras destinadas aos militares. Os quilombolas acusam a Marinha de ter feito a medição. Contatado pelo UOL, o Incra não explicou o motivo da revisão.

Demorou mais um ano até a comunidade ser reconhecida como quilombo, no fim de 2015. Os títulos de posse, porém, não saíram de imediato. Só foram expedidos pelo Incra em dezembro de 2019. Ainda assim, demoraram mais seis meses para serem enviados à Bahia, o que só ocorreu após cobrança do MPF.

Esse momento histórico representa uma vitória em favor da comunidade, que existe há mais de 200 anos e enfrenta conflitos pelas terras há quase 50. Foram nove anos de atuação do MPF e diversos atos judiciais e extrajudiciais que finalmente resultaram na entrega dos títulos.

Leandro Bastos Nunes, Procurador da República

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A história do quilombo Rio dos Macacos é a de muitos remanescentes de escravos no Brasil. O Incra informou que há 1.794 comunidades com processos em aberto para regularizar seus territórios, mas apenas 287 tiveram seus relatórios elaborados. No ritmo atual, o Brasil levará 1.170 anos até o órgão concluir todos os processos em andamento, aponta levantamento ONG Terra de Direitos.

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Segundo o Incra, o trabalho é resultado de "um processo minucioso, que leva em conta estudos e levantamentos cartográficos, socioeconômicos, fundiários, antropológicos". E, desde 2013, já fez a regularização fundiária de 194,8 mil hectares em diversos estados brasileiros, com a emissão de 127 títulos a 5,5 mil famílias quilombolas.

Os sem-rio

No despacho de reintegração de posse que proibiu a chegada dos quilombolas ao rio, a juíza federal Mei Lin Lopes Wu Bandeira fixou multa diária de R$ 1.000,00 "por indivíduo que permanecer injustificadamente na área em questão".

A DPU recorreu para garantir o uso compartilhado da barragem e já acionou outras instituições, como o CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Até a publicação desta reportagem, o TRF-1 (Tribunal Regional da 1ª Região) ainda não havia apreciado o recurso.

Articulamos para tentar convencer e sensibilizar os desembargadores dessa causa e reverter essa decisão. A água é muito importante para a comunidade, e a Marinha quer retirá-la.
Vladimir Correia, defensor regional de Direitos Humanos na Bahia

A proibição judicial é só o primeiro passo para afastar os quilombolas do rio. A Marinha constrói um muro para selar de vez a restrição, avalia Correia.

A estrutura impedirá ainda que os moradores cheguem à Fonte da Luzia, usada em cerimônias religiosas por adeptos do candomblé. Ao UOL, a Força diz custear o abastecimento da comunidade desde 2009 porque a água represada na barragem não seria potável. "Esse consumo representa um volume médio de 355 mil litros de água por mês, com uso irrestrito e gratuito pela comunidade", afirma. A comunidade nega.

Eles [militares] não nos fornecem nada. O que existe é um relógio [contador] que é da piscina deles. A única coisa que eles fazem é despejar esgoto da vila naval dentro rio. Não tem como separar a gente da água. O que a gente tem aqui, sem ser a família, é a terra e a água? Separando a gente, como é que a gente vai ficar?

Rosimeire dos Santos, líder do quilombo do Rio dos Macacos

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A batalha por direitos

Além da dificuldade para acessar a água, os quilombolas passaram a enfrentar um jogo de empurra da administração pública para fornecer serviços básicos à comunidade.

"O governo estava dando a desculpa que precisava da titulação para trazer as políticas públicas. Agora a gente tem a titulação na mão, e as secretarias todas já sabem. Mas até hoje não recebemos nenhuma ligação sobre que dia vão fazer um trabalho aqui dentro", queixa-se a líder Rosimeire dos Santos.

Pasta do governo baiano que atua no diálogo com as comunidades tradicionais, a Sepromi (Secretaria de Promoção da Igualdade Racial) informou que, com a titulação das terras, a gestão retomará os projetos para construção de novas unidades habitacionais, acesso à água e inclusão produtiva.

Questionado pela reportagem, o órgão não informou se há estimativas de quanto as intervenções devem custar, nem quando elas serão iniciadas.

A secretaria afirma, porém, que o início das melhorias depende da conclusão de obras viárias que o Exército tocava na região —em 2017, o governo federal determinou que os militares suspendessem os trabalhos.

"As medidas previstas contam com o envolvimento de um conjunto de órgãos governamentais em sua execução, a partir da escuta às famílias, método adotado desde o início das tratativas", acrescentou o órgão.

Como o quilombo Rio dos Macacos está situado na divisa entre Simões Filho e Salvador, o UOL procurou as prefeituras das duas cidades para as saber se as respectivas gestões possuem projetos em favor da comunidade. Os órgãos contatados não responderam.

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Em nota enviada ao UOL após a publicação da reportagem, o 2° Distrito Naval da Marinha do Brasil afirma que "não é verídico afirmar que o Rio dos Macacos é a única fonte de água dos quilombolas, usada como meio de subsistência".

Segundo a nota, a Marinha custeia a água encanada fornecida pela Concessionária Embasa aos moradores da comunidade desde 16 de abril de 2009, "uma vez que a água da Barragem Rio dos Macacos não é potável".

Sobre a barragem, o órgão afirma ainda que a construção "visa à integridade e inviolabilidade da água que abastece a Base Naval de Aratu, não sendo possível à Marinha prescindir da mesma, por ser a única fonte de abastecimento para cerca de 1500 pessoas, sem que ocorra grave comprometimento da organização, funcionamento e desenvolvimento das atividades militares, indispensáveis ao cumprimento da sua missão constitucional".

A nota afirma, por fim, que as denúncias de agressões por parte de militares "tiveram o devido encaminhamento legal, por meio de Inquéritos Policiais Militares, os quais são encaminhados à Justiça Militar para acompanhamento pelo Ministério Público Militar e demais órgãos competentes, adoção das devidas providências e, caso comprovadas as faltas, aplicação das sanções legais".

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