Amazônia às escuras

Sem linhão de transmissão, Roraima está sob risco de repetir apagão do Amapá

Luciana Amaral e Eduardo Militão Do UOL, em Brasília Nacho Doce - 19.ago.2018/Reuters
Gabriel Penha/Photopress/Estadão Conteúdo

O blecaute generalizado do Amapá, já deixou mais de 750 mil pessoas no escuro por quatro dias. Paralisou indústrias e comércio, causou R$ 190 milhões de prejuízo, impulsionou a violência e adiou as eleições em Macapá. O estado já está na terceira semana de apagões intermitentes não solucionados e sofreu novo blecaute esta semana.

Sem as obras de um linhão de transmissão de energia e dependente de usinas termelétricas, Roraima corre o risco de repetir a situação do Amapá.

O linhão faz com que os estados não fiquem isolados e dependentes dos próprios sistemas de energia. Em vez disso, são integrados à cadeia energética nacional — o chamado SIN (Sistema Interligado Nacional).

Segundo o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), essa interconexão dos sistemas elétricos e a integração de recursos de geração e transmissão permitem atender ao mercado consumidor com mais segurança e economia.

Gabriel Penha/Photopress/Estadão Conteúdo

Amapá

No estado, onde vivem com cerca de 860 mil habitantes, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a causa do primeiro apagão em 3 de novembro foi um incêndio que atingiu dois transformadores em uma subestação de Macapá.

Um terceiro equipamento já estava avariado. O motivo do fogo ainda não foi esclarecido. Não havia outro transformador ou um sistema alternativo de energia para manter o fornecimento em caso de pane.

Reprodução/Redes Sociais

Linhão de Tucuruí

Até 2015, havia geradores a óleo, que foram retirados quando o linhão de Tucuruí chegou ao estado. A obra consiste em linhas de transmissão de energia que interligam Amazonas e Amapá à usina de Tucuruí, no Pará.

Os custos de manutenção dos geradores eram altos, justificou o deputado e ex-governador do estado Camilo Capiberibe (PSB-AP), último mandatário estadual a contar com os aparelhos.

Raphael Alves / TJAM

Roraima

A população de 630 mil pessoas vive com uma única matriz energética: cinco usinas termelétricas, mais poluentes e caras. Elas são compostas por equipamentos geradores de energia que consomem óleo diesel.

Roraima não é ligada ao linhão de Tucuruí e é o único estado brasileiro sem conexão ao SIN.

AP Photo/Victor R. Caivano

Waimiri-Atroari

A obra do linhão entre Boa Vista e Manaus nunca saiu do papel porque a linha proposta passaria em terras dos Waimiri-Atroari.

Os índios questionam impactos culturais, legais e ambientais do empreendimento. A Funai diz seguir a legislação nos processos de licenciamento ambiental.

Tarso Sarraf/Folhapress

Promessa não cumprida

Políticos de Roraima são críticos a uma promessa de campanha não cumprida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido): o de destravar o chamado linhão de Tucuruí entre Boa Vista, capital do estado, e Manaus (AM).

Segundo eles, a obra daria mais segurança no fornecimento de energia.

Além disso, há a questão da Venezuela, que fornecia eletricidade ao estado até o ano passado. As negociações econômicas para uma eventual retomada no fornecimento estão comprometidas devido a desentendimentos diplomáticos entre os dois governos.

Chefe do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura), consultoria especializada em energia e transportes, Adriano Pires afirma que Roraima e Amapá têm em comum a falta de planejamento e a ausência de mecanismos que supram o fornecimento de energia em caso de pane.

Para ele, essa responsabilidade de se ter um plano reserva é do Ministério de Minas e Energia. Procurada pelo UOL, a pasta não respondeu à crítica até a publicação desta reportagem.

Divulgação

Linhão de Guri

Desde março do ano passado, Roraima perdeu uma fonte de energia mais limpa, o linhão de Guri, que trazia energia da Venezuela.

Ele provia 70% do suprimento do estado, mas o país vizinho, que sofre com seus próprios apagões, suspendeu o fornecimento.

A briga de Bolsonaro com Nicolás Maduro é um ingrediente a mais na dificuldade de negociar de um acordo.

Temos uma energia frágil e, de uma hora para outra, vamos viver o mesmo apagão que o Amapá.

Telmário Mota (Pros-RR), senador

Com o que aconteceu no Amapá, estamos de joelhos orando para que não aconteça em Roraima.

Mecias de Jesus (Republicanos-RR), senador

Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

Solução definitiva seria conexão ao SIN, diz empresa

A Roraima Energia, responsável por fornecer energia no estado, nega haver o risco de se chegar ao limite hoje. Segundo a companhia, a potência de geração em Roraima é de 245MW. O consumo máximo de potência registrado foi de 210MW. Portanto, defende, as termelétricas não operam na capacidade máxima.

A empresa afirma ter reduzido a quantidade de blecautes nos últimos três anos: 127 no período. Em 2018, foram registrados 83 apagões. Em 2019, 37. Em 2020, foram sete até o momento.

Adicionalmente, Roraima não conta com um sistema de energia solar suficiente para assegurar o fornecimento de luz em caso de pane elétrica dos geradores, apesar das pesquisas de potencial feitas pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética).

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Solução envolve outras fontes, dizem especialistas

A dependência apenas de uma fonte de energia —termoelétricas em Roraima e linhão no Amapá— causa risco, avalia Adriano Pires, do CBIE.

Por isso, só o linhão de Tucuruí não resolverá a situação, pois é necessário ter outras garantias, como energia solar, energia térmica e energia de hidrelétricas. "Não existe bala de prata", diz Pires.

Advogado especialista em infraestrutura, Massami Uyeda vai na mesma linha de pensamento: "A origem do problema é uma cultura de correr um pouco a mais de risco do que o necessário".

"Não se pode tratar uma linha de transmissão na Amazônia como se trata as do Sudeste", completa o presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transmissão de Energia, Mário Dias Miranda.

Senador cobra providências

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Dilma Rousseff (PT)

Em dezembro de 2015, a presidente anunciou a licença do Ibama em um evento no estado: "Não vai mais ficar faltando luz".

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Michel Temer (MDB)

O sucessor dela nada resolveu, embora tenha recebido ministros, Funai e políticos de Roraima para tratar do tema.

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Marcos Corrêa/PR

Jair Bolsonaro

O atual presidente disse que o governo não faz a obra por causa de suposto "achaque de ONG, índio que quer dinheiro".

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Sem sair do papel desde 2011

A licitação para o linhão de Tucuruí entre Manaus e Boa Vista foi feita em 2011, no governo de Dilma, mas a obra nunca saiu do papel. O custo de construção e operação seria de R$ 121 milhões por ano —equivalente a cerca de R$ 202 milhões em valores atualizados pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo).

O consórcio vencedor da licitação, Transnorte Energia, pediu um reajuste no valor a receber por causa do atraso e chegou a buscar a renegociação do contrato.

Seriam cerca de 720 km de cabos e torres entre as capitais, às margens da BR-174. Desses, 120 km passariam pela terra dos Waimiri-Atroari. Segundo o governo federal, o traçado proposto causa menos desmatamento e percorre distância menor.

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Quando a BR-174 foi construída na região, nos anos de 1970, a aldeia perdeu 88% da população, segundo a Comissão Nacional da Verdade. O procurador Júlio Araújo e o advogado da Associação Comunidade Waimiri Atroari, Harilson Araújo, falam em "genocídio".

O Ibama deu licença prévia em 2015, mas o Ministério Público Federal foi à Justiça porque quer que os índios sejam ouvidos antes.

"Acham que vão resolver essas questões com indenização. A consulta tem que ser feita com o protocolo dos indígenas", afirma Júlio Araújo, coordenador do grupo de trabalho de povos indígenas do Ministério Público.

No ano passado, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que a Transnorte Energia ofereceu R$ 49 milhões aos índios como indenização. Harilson, porém, disse que a proposta não foi recebida.

O procurador Júlio Araújo reclama do que classifica como insistência do governo. "É curioso que as soluções não se abrem a um leque de possibilidades", afirma. Ele cita a alternativa de usar energia solar e fazer um traçado que não passe pelas aldeias.

A Funai não se opõe à passagem dos cabos sobre as aldeias. O plano está sendo traduzido para ser analisado pelos indígenas. Eles reclamam de não terem sido consultados desde o início.

Está faltando vontade e determinação política. Bolsonaro teve votação expressiva em Roraima, mas está patinando em cima disso.

Telmário Mota, senador

Não são os indígenas. Se fosse, de fato, já teríamos a autorização. ONGs, Funai e Ministério Público dificultam as obras.

Mecias de Jesus, senador

O Ministério Público Federal cumpre a lei e a Constituição. A posição do órgão já foi acolhida em duas sentenças proferidas pela Justiça.

Júlio Araújo, procurador do MPF

Governo impôs o linhão, dizem indígenas

Interesse da Política de Defesa Nacional

Em fevereiro de 2019, o Conselho de Defesa Nacional chegou a reconhecer o trecho do linhão como sendo "do interesse da Política de Defesa Nacional", considerando-a "alternativa energética de cunho estratégico para atendimento ao país", na tentativa de acelerar a construção.

O GSI (Gabinete de Segurança Institucional) afirma que a medida demonstra que a linha de transmissão é estratégica para o país e cita precedente do Supremo Tribunal Federal de que o usufruto da terra ocupada pelos indígenas não pode se sobrepor aos interesses da defesa nacional e à exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico.

Procurados pelo UOL, Presidência da República, o Ministério de Minas e Energia, a Eletronorte, a Transnorte Energia, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), o governo da Venezuela e a estatal venezuelana Corpoelec não se manifestaram.

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