A intolerância empoderada

Suásticas, tiros, agressões: expressões de preconceito ficam mais visíveis e violentas no Brasil

Bernardo Barbosa Do UOL, em São Paulo Guilherme Zamarioli/UOL
Arquivo pessoal

Neonazismo em público

Em um intervalo de menos de uma semana em dezembro, o Brasil teve notícia de dois casos explícitos de neonazismo. Em Unaí (MG) e em Curitiba, dois homens se sentiram à vontade o suficiente para aparecer em público com uma suástica presa no braço.

A demonstração aberta de apoio ao nazismo — uma ideologia antidemocrática, racista, homofóbica e antissemita — serve como síntese de um período em que casos de intolerância no país ganharam em despudor e violência, em consonância com discursos que os estimulam e "autorizam", segundo advogados e acadêmicos ouvidos pelo UOL.

Apesar de diversas manifestações de intolerância serem consideradas crimes, ainda há uma deficiência de dados oficiais, nacionais e recentes sobre o assunto. Isso torna difícil medir o avanço do problema e prejudica a elaboração de políticas públicas para combatê-lo.

Mas a falta de estatísticas não atenua o fato de que o segundo semestre de 2019 acumulou notícias de demonstrações abertas de intolerância.

Em São Paulo, um homem atirou em um vizinho, e testemunhas afirmam que o criminoso fez insultos homofóbicos antes e depois de disparar. Também na capital paulista, um ator foi agredido por um motorista de ônibus depois de beijar um outro homem dentro do veículo.

Na Bienal do Livro do Rio, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) ordenou a apreensão de exemplares de uma história em quadrinhos que mostrava um beijo entre dois rapazes, alegando que se tratava de uma publicação com material impróprio a menores de 18 anos, o que violaria o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). A tentativa de censura foi barrada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Em Bauru (SP), um professor universitário foi chamado de "macaco" e agredido com um canivete. Em plena Câmara Federal, em Brasília, o deputado Coronel Tadeu (PSL-SP) destruiu uma charge que denunciava o "genocídio da população negra". O parlamentar disse que a obra era "desnecessária" e representava "um atentado contra os policiais que protegem a sociedade". Os dois casos ocorreram na semana do Dia da Consciência Negra.

De volta ao Rio, o grupo que assumiu a autoria do ataque à sede do canal de humor Porta dos Fundos deixou claro, em vídeo, que a motivação do crime era a produção "A primeira tentação de Cristo" (Netflix), em que Deus, Jesus, Maria e José são tratados de forma satírica. Os criminosos também se disseram incumbidos de serem "a espada de Deus" e que o "Brasil é cristão e jamais deixará de ser".

Em Florianópolis, uma mulher foi filmada destruindo uma estátua de Iemanjá com golpes de marreta. Na Baixada Fluminense, traficantes de um grupo chamado "Bonde de Jesus" foram presos depois de ataques a terreiros de umbanda e candomblé.

Alguns casos pelo país

A homofobia "fora do armário"

A presidente da comissão de diversidade sexual e gênero do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Raquel Castro, relatou ao UOL um aumento de ataques físicos, verbais e institucionais contra a população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersexo).

"Sabemos que muitos casos de homotransfobia que não são sequer denunciados", disse. "A gente percebe um aumento de outros crimes, não só a violência cujo resultado venha a ser o óbito, mas a violência física como um todo. Violência verbal, principalmente, acho que aumentou muito."

Castro cita uma brasileira transexual que conseguiu em 2019 o status de refugiada na Itália, depois que a Justiça local entendeu que o Brasil não é capaz de proteger os cidadãos LGBTI.

"Antes, nós acolhíamos refugiados LGBTI de outros países, e agora somos nós que estamos saindo do nosso país", disse.

A sensação que a gente tem é de que a homofobia saiu do armário

Raquel Castro, presidente da comissão de diversidade sexual e gênero da Conselho Federal da OAB

Entre os ataques no campo institucional, a advogada citou o cancelamento da Quarta Conferência Nacional LGBT, que tinha sido convocada ainda no governo Temer para novembro de 2019, e a tentativa do governo de extinguir conselhos que contam com membros da sociedade e que acompanham as atuações de órgãos federais.

Para Castro, a fragilização de políticas públicas e falas homofóbicas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) legitimam o preconceito e a violência contra a população LGBTI. Desde que chegou ao poder, Bolsonaro nega ser homofóbico. Mas mês passado, enquanto era questionado sobre suspeitas de crimes envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), seu filho, o presidente disse que um jornalista tinha "uma cara de homossexual terrível".

"Houve um aumento na violência a partir do momento em que a gente tem um presidente que tem um discurso de ódio. É como se ele estivesse autorizando as pessoas a terem esse discurso, só que as pessoas vão muito além da fala", afirmou a advogada.

Homem atira em vizinho e é acusado de homofobia

O racismo perde a vergonha

A advogada Paula Nunes, da ONG Conectas Direitos Humanos, traçou para o racismo um panorama similar ao descrito por Raquel Castro para a homofobia: o da "liberação" de um discurso preconceituoso que vira prática, seja por meio de ataques físicos ou verbais, seja pela distorção da atuação do Estado em prol da igualdade racial.

A sensação é de que algumas atitudes que estavam mais escondidas agora têm menos vergonha de aparecer

Paula Nunes, advogada da ONG Conectas Direitos Humanos

Em nível institucional, a advogada citou a nomeação de Sérgio Camargo para presidente da Fundação Cultural Palmares como exemplo de uma tentativa de minar, por dentro, uma instituição pública que tem entre suas finalidades a titulação de terras quilombolas e a promoção e preservação da cultura negra.

Camargo defende a abolição do Dia da Consciência Negra. Já afirmou que a escravidão no Brasil foi "benéfica para seus descendentes" e disse que o país tem "racismo Nutella". Por causa de declarações de Camargo que vão contra "o público que deve ser protegido pela Fundação Palmares", um juiz federal suspendeu sua nomeação para o comando da entidade — o governo recorreu.

"Não é uma discussão sobre qual é a opinião ideológica que alguém que está à frente da Fundação Palmares precisa ter. É uma discussão sobre para que serve a Fundação Palmares no texto da lei", disse Nunes. "Alguém que não vê a necessidade de reparações não pode estar à frente da organização responsável por titular terras quilombolas."

O presidente Jair Bolsonaro também foi citado por Nunes como alguém que, com suas falas, "autoriza" atitudes de preconceito. Ela lembrou de declaração dada por Bolsonaro em 2017, quando o então deputado federal mencionou uma unidade de medida usada para pesar animais — a arroba — para falar do peso de quilombolas. Em 2018, o STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou denúncia contra Bolsonaro por racismo.

"A partir do momento em que esse comportamento é institucional, um discurso do governo brasileiro, os seus apoiadores que defendem esse discurso e que pregam isso na ponta se sentem mais confortáveis para manifestar suas opiniões", disse Nunes. "Se inclusive o presidente da República tem essas opiniões, isso deixa de ser um discurso e se torna um pouco mais a prática."

Deputado rasga charge sobre "genocídio da população negra"

A beligerância contra as religiões afro-brasileiras

O sociólogo Milton Bortoleto, que pesquisa religiões no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e mantém contato com sacerdotes de religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, disse que o avanço no número de relatos de casos de intolerância contra praticantes dessas religiões ocorre há pelo menos três anos.

"Estamos muito junto dos sacerdotes, das pessoas que estão praticando as religiões afro, e está muito mais alarmante", afirmou.

Especificamente no Rio de Janeiro, Bortoleto contou que há o fenômeno de traficantes que se convertem a denominações evangélicas e aderem a uma visão radical do cristianismo. A conversão de "pessoas que têm poder de mando" em bairros pobres, disse o pesquisador, levou a ataques violentos contra terreiros e até mesmo ao assassinato de sacerdotes.

Para Bortoleto, este panorama resulta do avanço de discursos "mais conservadores, mais beligerantes", adotado por denominações cristãs pentecostais e neopentecostais ao longo das últimas décadas, principalmente nas periferias brasileiras.

"Esses discursos estão sendo construídos e se tornando mais sólidos nos últimos 30 anos", disse. "Por construir uma geração mais conservadora nesses espaços às margens do poder público, os casos de intolerância contra religiões afro-brasileiras crescem também."

Uma das características desda construção é o fim do que o pesquisador chamou de "duplo pertencimento religioso", tolerado por correntes do catolicismo como a Teologia da Libertação, que possibilitava a alguém ser católico e ao mesmo tempo seguir uma religião de matriz africana, por exemplo.

Ou você é de Cristo, ou você está com o demônio. O Brasil do quanto mais, melhor não é mais esse.

Milton Bortoleto, pesquisador do Cebrap

O discurso que separa o fiel do "infiel", no entanto, não passa só pela fé, mas também pelos costumes. Desta forma, o conservadorismo também atua para classificar o outro como "alguém que não está em Cristo".

"Sempre haverá uma variável que permitirá a um religioso intolerante classificar o outro como demoníaco", disse Bortoleto.

Para o pesquisador, não há dados que permitam, no momento, estabelecer que a intolerância religiosa avançou com a ascensão de um governo conservador.

"O Brasil inteiro votou em massa em um cara superconservador, mas isso já estava sendo gestado há muito tempo. Se não fosse o Bolsonaro, seria outra pessoa. Não é o personagem em si, é a construção social do conservadorismo", afirmou.

Segundo o pesquisador, a religião "nunca foi um problema no Brasil", mas o que mudou foi a característica dos discursos das lideranças pentecostais e neopentecostais.

"A religião sempre esteve na política, a religião sempre esteve nas periferias. As pessoas nas periferias sempre foram religiosas. O problema que nós temos agora é que são discursos mais conservadores, discursos mais beligerantes, discursos de guerra, de conversão", disse.

Mulher é filmada dando golpes de marreta em estátua de Iemanjá

Falta de dados

As análises sobre a intolerância no Brasil podem variar de acordo com o tipo de caso, mas o que une todos eles é a falta de informações oficiais em nível nacional.

No momento, o que existe de mais próximo a um dado de todo o país são os números do Disque 100, do governo federal, que recebe denúncias de qualquer tipo de violação aos direitos humanos.

No entanto, o próprio governo reconheceu em relatório do ano passado que os números do Disque 100 "não refletem índices de violência, mas sim o quantitativo de denúncias registradas, o conhecimento da população acerca dos canais de denúncia e fornece indicativo para organização e atuação da rede de proteção de direitos humanos no País".

O problema não fica restrito à contagem de casos em si, mas atinge também os critérios para se determinar um crime de intolerância, o que tem impacto direto sobre o desenvolvimento de políticas públicas.

No caso do racismo, por exemplo, há dois crimes que têm relação com o tema: o próprio crime de racismo, que é inafiançável e não prescreve, e o de injúria racial. A distinção entre os dois é assunto de constante controvérsia no meio jurídico.

"O que tenta se fazer um pouco nas delegacias, no Judiciário, é compreender casos coletivos como crime de racismo e casos específicos como o crime de injúria racial", disse Nunes. "Na minha opinião, não é isso que deveria determinar [a distinção], porque necessariamente o ataque a uma pessoa com motivação racial é um ataque a uma coletividade."

Para a advogada, ainda falta uma "análise séria" de dados de boletins de ocorrência e processos judiciais que permita verificar a motivação racial por trás de crimes violentos, como o caso do adolescente negro que foi chicoteado e torturado por seguranças de um supermercado.

"Se analisarmos historicamente o que é a formação do Brasil, o que foi a escravidão, com que brutalidade o corpo negro foi tratado ao longo da história, esses crimes têm motivação racial, mas não nos termos que a lei determina. Isso não entra para a estatística como um crime com motivação racial", disse.

A formalização de denúncias criminais por intolerância religiosa também depende de quem está do outro lado do balcão, relatou o pesquisador Milton Bortoleto.

"Hoje o sacerdote pode chegar a uma delegacia e falar: quero fazer um boletim de ocorrência por intolerância religiosa. Agora, se o escrivão, o delegado vai fazer utilizando a lei correta, e não vai colocar vilipêndio, é outra história."

A presidente da comissão de diversidade sexual e gênero do Conselho Federal da OAB, Raquel Castro, disse que a criminalização da homofobia pode ajudar na obtenção de dados oficiais sobre o problema.

"Pelo menos nas delegacias de polícia, vai poder ter um controle maior sobre quantos crimes e quais tipos de crimes são praticados contra a população LGBTI", afirmou.

Quem está na mira?

Segundo o advogado Thiago Amparo, professor de políticas de diversidade da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo, a intolerância religiosa, racial e LGBTFóbica é "histórica", mas a maior frequência de notícias sobre casos "ajuda a criar visibilidade e consciência sobre o tema."

O professor alertou, no entanto, que a falta de dados impede uma melhor análise sobre "quem são os alvos destes atos de intolerância e em quais condições estes atos são de fato punidos."

Existe uma resistência do Judiciário em enxergar atos de intolerância como crimes. Muitas vezes, crimes de racismo são colocados como injúria racial, ou mesmo injúria simples. Há uma dificuldade grande de conseguir indenização em casos de intolerância

Thiago Amparo, professor da FGV Direito SP

De acordo com Amparo, a falta de dados sobre casos de intolerância é um problema grave, porque não permite a elaboração clara de políticas de combate e prevenção.

"Com dados, é possível pensar, especialmente em contexto de cidades, em um policiamento inteligente, que proteja os diferentes grupos", explicou. "Os poucos dados que temos mostram uma crescente desses casos, e deve-se ter uma melhora na formulação e na gestão desses dados para que esses crimes não aconteçam e, se acontecerem, que sejam de fato punidos."

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