Tempo é vida


Em 12 horas, a corrida frenética dos profissionais do Samu para salvar pessoas

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A morte dentro de um contexto de pandemia é melancólica e solitária, observa o médico cirurgião Evandro Calamari enquanto aguarda o primeiro chamado do dia. Parte de uma das equipes de suporte avançado do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) de São Paulo, ele tem visto de perto um aumento significativo de óbitos em casa durante a pandemia de covid-19.

"Os hospitais estão vazios. Temos atendido casos fatais que, muitas vezes, poderiam ter sido estabilizados se tivéssemos sido chamados mais cedo", conta.

Em 12 horas, a reportagem viu o desespero sair de uma comunidade na zona sul, em que três pessoas moravam amontoadas em uma casa minúscula, e chegar a um elegante apartamento de três quartos em um bairro nobre da capital. Ali, testemunhou a morte.

"Ninguém está preparado para lidar com a morte. Nem eu, nem os colegas do Samu, nem você, nem nossos familiares. Ninguém."

Os chamados chegam minuto a minuto por rádio. Uma vez anunciados, contam com os ouvidos calejados dos três socorristas que compõem a ambulância de suporte avançado. Enquanto aguardam o próximo caso para a PAT-BAND 1042 (a central desta unidade do Samu), os funcionários aguardam em um espaço de cerca de 80 m² sob um viaduto na avenida dos Bandeirantes, zona sul de São Paulo.

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O primeiro deles veio às 9h45 daquela quinta-feira. Quem acionou o Samu foi a filha de um homem de 72 anos, com histórico de AVC, que acabara de convulsionar.

Ela, o pai e a mãe se amontoavam em uma casinha que não media mais que 3 m² em uma comunidade na zona sul da capital. A correria dos socorristas desviou de buracos em um corredor estreito, vigiado por homens a postos. Segundo Calamari, é muito comum que a equipe do Samu seja recebida por olheiros do tráfico em algumas favelas pelas quais passa.

Pouco consciente, o paciente foi examinado pela equipe, que se apertava no curto espaço. Em seguida, foi amarrado à cadeira de rodas com o lençol que o cobria --enquanto a filha, bastante nervosa, tentava acalmar a mãe. Do portão, a senhora cruzava as mãos e gritava, com a voz fraca que encolhia a cada passo da equipe em direção à viatura:

"Vão com Deus. Meu Deus, meu Deus, proteja. Vão com Deus..."

A vítima foi levada ao hospital São Paulo e, a cada fim de atendimento, Evandro explica, o médico passa um relatório para a central. Relata os procedimentos que foram feitos e o estado em que se encontra a vítima.

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O fim do procedimento --com a devida higienização necessária em tempos de pandemia-- é seguido pelo segundo chamado. Pelo rádio, a central adenda: desmaio de idoso de 92 anos evoluiu para parada cardiorrespiratória.

Silêncio dentro da viatura.

Quando o carro para, o quarteto corre até o portão principal do prédio e pega o primeiro elevador. O idoso está no chão do quarto, rodeado pela filha e pela mulher. Ambas se atropelam a cada pergunta do médico.

-- Há quanto tempo ele está se sentindo mal, senhora?
-- Doutor, [gagueja] f-faz uns dois?
-- Não, filha, ele até jantou ontem.
-- Mas ele estava com um desconforto na região da barriga, reflux...
-- Ele veio andando para o banheiro, de braço dado comigo, devagarinho. Evacuou, tudo certo. Como pode? Uma pessoa caminhando ontem mesmo?

A enfermeira Ana Midori, 55, pediu que as duas mulheres aguardassem do lado de fora do cômodo. Começou a massagem cardíaca: foram 30 minutos de procedimento revezados pelos quatro membros da equipe —segundo a enfermeira, o revezamento é primordial para garantir a qualidade do estímulo.

"Tempo é vida. Neste caso, tempo é coração", adenda David Braga, médico socorrista que fazia seu segundo dia de estágio. "Quanto mais tempo a pessoa fica inconsciente, é mais difícil que sobreviva." Além da ressuscitação cardiopulmonar, a equipe interveio com uma intubação pela traquéia, medicou a vítima com adrenalina e bicarbonato. Não havia resposta do coração. Calamari ordena:

"É a última. Se ele não reagir, a gente para".

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"Senhora, infelizmente ele faleceu", comunicou o médico. A filha, aos prantos, ajoelhou-se ao lado do pai. "Por favor, tenta só mais um pouquinho, eu tô pedindo", disse ao encarar o médico.

"A gente tentou de tudo, senhora. Ficamos 30 minutos aqui e ele não respondeu nenhuma vez. A partir de agora, a gente não vai mais ajudar. Forçar só vai machucá-lo", explicou Calamari.

"Mãe, eu não acredito que o papai morreu, eu não acredito."

Noites mal dormidas e o choro entalado na garganta passaram a ser rotina dos funcionários da equipe terceirizada que auxilia, por determinação do governador João Doria (PSDB), o Samu no registro de óbitos ocorridos em casa. Em entrevista ao UOL, um deles pediu para ter a identidade preservada.

Longos silêncios ocuparam a viatura após a morte do idoso e o adeus à família que, desesperada, aguardava a constatação de óbito. É difícil para qualquer um se acostumar com a morte, mesmo quando ela se torna cotidiana.

A sirene desligada e a calma com a qual o socorrista e condutor Manuel Carlos, 36, dirigia, contornavam a melancolia daquela tarde. Só que, como bem diz Midori, "não é possível dar espaço para a angústia, se não a gente pira". Braga, mesmo em seu segundo dia de estágio, sabia bem disso. Tanto sabia que puxou o assunto que faria o silêncio desmoronar:

-- Como faz feijão, vocês sabem?

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O terceiro caso atendido pela PAT-BAND, já à tarde, foi um pedido de apoio por parte da unidade de suporte básico --outra viatura do Samu, essa apenas com um socorrista e um enfermeiro, destinada a atender casos mais leves. O que a central achou que seria um caso leve evoluiu para a informação de que a vítima sofrera um AVC.

"Eu sou namorada dele, moro no Sul. Desde terça tentava contato sem sucesso. Ninguém tinha a chave do apartamento dele, pedi que o porteiro batesse lá, mas ninguém atendia. Daí ontem à noite peguei um avião e vim, autorizei que arrombassem a porta e chamei o Samu."

-- Quando a senhora o encontrou, como ele estava? -- pergunta Manuel.

-- Ele me acompanhava com os olhos e até ria de leve. Estava deitado na cama e o apartamento todo destruído. Não sei se bebeu, se usou droga...

Manuel prestava o apoio à mulher enquanto médicos, enfermeira e os funcionários da unidade de suporte básico forneciam os primeiros cuidados à vítima, logo levada a um hospital particular da região.

Já de volta à central, a reportagem pergunta como é o fim do expediente dos socorristas:

-- Caso chegue um chamado às 18h30, faltando meia hora para acabar o plantão, são vocês que vão?
-- Até se chegar chamado às cinco pras sete.

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Às 18h40, a central anunciava a ocorrência envolvendo Daniel, de 42 anos. "Suspeita de convulsão, adormecido desde as 10h daquele dia." A viatura se desloca para mais uma comunidade, essa em Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo.

Às 19h, chega a um bar e encontra Daniel adormecido num sofá mofado. Midori questiona, e o dono do bar responde:

-- Desde que horas ele está dormindo?
-- Desde umas dez, acho. Ele bebeu uns conhaques, deitou aí e foi.
-- Desde as 10h? E vocês só ligaram agora?
-- É que achamos que ele estivesse dormindo, até que começou a babar muito, muito. Ele já é cliente daqui faz tempo, sabe? Sempre deita aí e dorme...

A enfermeira mede a pressão da vítima, fura o dedo e descobre a glicemia baixa. "Também, passou todo esse tempo sem comer?", comenta Midori. Se vira a ele, que ri num misto de vergonha com embriaguez, e pergunta:

-- Daniel, o que você bebeu?
-- Conhaque, uns cinco. Aí me deu um sono e eu deitei aqui.
-- Mas você deixou sua família preocupada, olha aqui sua mulher, seus amigos.
-- Poxa, me desculpa [gargalha].

Daniel recebe a recomendação de que deve se alimentar e beber bastante água; ouve, ainda, que, de repente, seria interessante procurar algum tratamento para alcoolismo. A equipe do Samu deixa o bar, à meia luz, entre risadas e agradecimentos —dos colegas e do próprio Daniel, já acordado, mas ainda nitidamente bêbado.

"Que bom que esse plantão acabou alegre, né?", diz Samuel. E, entre receitas de feijão, café e causos, a equipe da PAT-BAND se despede do dia, da reportagem e dos colegas que assumiriam a viatura naquela noite.

Agora, em casa, cada um busca seu ritual para "não pirar", como bem descreve Midori. O dela, conta, é fugir das notícias e se agarrar aos filhos --com quem não vê a hora de tomar café na rua em uma tarde de sol.

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Reportagem e texto: Talyta Vespa
Edição: Clarice Cardoso
Fotos e vídeos: Ricardo Matsukawa
Edição de foto: Lucas Lima
Edição de vídeo: Santhiago Botture
Design: Juliana Caro
Direção de arte: René Cardillo
Redes Sociais: Laís Montagnana


Publicado em 11 de julho de 2020