Humilhação de boas-vindas

Cultura de abusos em trotes no curso de medicina da Unisa inclui agressões físicas e exposição de genitais

Ana Paula Bimbati e Gustavo Brito Do UOL, em São Paulo, e colaboração para o UOL, em São Paulo

Tapas, socos e cuspe no rosto, humilhações públicas e em meios digitais. A lista de constrangimentos relatados pelos calouros no trote da faculdade de medicina da Unisa (Universidade Santo Amaro), em São Paulo, é extensa. Inclui faxinar a casa de veteranos, ajoelhar-se para ouvir xingamentos aos gritos, aceitar apelidos --inclusive de cunho racista--, seguir regras de vestimenta e de circulação, além de enviar ou receber fotos de genitais masculinos por redes sociais ou aplicativos de mensagens. É cobrado também que se demonstre conhecimento sobre o histórico de uma cultura de abusos que se arrasta há anos, de acordo com alunos e ex-alunos, que serão apresentados com nomes fictícios.

O UOL investigou por dois meses relatos que envolviam estas práticas na universidade.

A lei 10.454 do estado de São Paulo proíbe trotes "sob coação, agressão física, moral" ou outros constrangimentos que representem risco à saúde ou à integridade física dos alunos desde 1999. Quem pratica corre o risco de expulsão e de sofrer sanções penais e civis. As universidades devem adotar medidas para impedir o trote e punir os infratores. Caso contrário, responderá por omissão ou condescendência.

A reportagem ouviu estudantes e egressos do curso de medicina na condição de anonimato e teve acesso a documentos e conversas de grupos no WhatsApp, além de um perfil no Instagram com denúncias sobre os trotes, que saiu do ar. "Contas que violam as Diretrizes da Comunidade do Instagram podem ser removidas", afirma a Meta, empresa dona da rede.

Procurada ao menos 13 vezes pela reportagem, que chegou a ir a 2 dos 4 campi, a Unisa não se pronunciou. A atlética negou relação com os abusos e, assim como o centro acadêmico, afirma ser contra o trote.

No últmo final de semana, ganharam repercussão e provocaram revolta vídeos nos quais alunos homens de medicina da mesma universidade e do Centro Universitário São Camilo abaixam as calças durante um torneio amistoso de vôlei feminino.

A reportagem ouviu relatos de que os trotes violentos acontecem pelo menos desde 2009.

A coerção ocorre não só no próprio campus onde fica o prédio da medicina, no Jardim das Imbuias, zona sul de São Paulo, mas também em repúblicas, festas, viagens a sítios no interior e nos jogos universitários. Parte das imposições consta em um manual enviado por celular aos novatos já nos primeiros dias de aula. Quem se submete cria, em troca, a expectativa de conseguir uma vaga de residência no futuro. Quem se recusa a participar sofre com as consequências da exclusão mesmo depois de formado.

Em um informe de 2011, a Unisa anunciou a proibição de "qualquer tipo de trote que cause constrangimento aos alunos", de acordo com orientações do Ministério Público. Em janeiro de 2022, a universidade lançou a página Diga Não ao Trote, que reforça a mensagem da proibição e a "importância de uma recepção acolhedora".

Se você falar, for contra, acabou a vida"

Pedro, aluno da Unisa

Alunos e ex-alunos relatam que a presença de estudantes de famílias de médicos reconhecidos em hospitais paulistas dificulta a punição aos responsáveis.

Fundada em 1968, a universidade é uma das mais tradicionais instituições privadas de ensino médico no país. O mais notável dos ex-alunos do curso de medicina é o cardiologista Roberto Kalil, médico de políticos e famosos. A mensalidade para estudantes do primeiro ano custa cerca de R$ 10 mil.

O médico Marco Aurélio Cunha, ex-vereador da capital paulista e ex-dirigente do São Paulo, também está na lista.

Apesar da fama e da alta mensalidade, a universidade recebeu notas medianas nas últimas avaliações divulgadas. Em 2019, o curso de medicina teve nota 3 no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes). O mesmo resultado foi conquistado pela Unisa no IGC (Índice Geral de Cursos), avaliação que mede a qualidade de ensino. As duas escalas vão de 1 a 5, sendo 5 a melhor.

Segundo fontes do UOL, a maioria dos veteranos que aplicam os trotes violentos são atletas que representam a faculdade em jogos ou são filiados à atlética. De acordo com os relatos, há conivência, por falta de advertência ou punição, da direção e presidência da atlética de medicina, a Associação Atlética Acadêmica José Douglas Dallora.

A atlética descarta o envolvimento. "Nossa política é que ninguém pode dar trote. Não somos coniventes, somos totalmente contra", disse Felipe Nunes, presidente do grupo, em entrevista por videochamada.

Ou segue a regra, ou vira "pau no cu"

Assim que um estudante de medicina entra na Unisa, segundo os relatos, recebe um manual de regras em grupos de WhatsApp. Mulheres não podem usar acessórios ou roupas decotadas. Homens precisam raspar o cabelo. A padronização serve para diferenciar calouros de veteranos. Os estudantes também são proibidos de permanecer em uma praça no campus. As regras valem até a "festa de libertação".

É a cultura do medo. É uma cultura completamente coercitiva, completamente abusiva e que te coloca numa posição de que se você falar, for contra, acabou a sua vida" 

Bruna, aluna da Unisa

Em outubro do ano passado, um perfil no Instagram chamado Relatos Unisa apresentou denúncias anônimas de trotes violentos, segundo eles, liderados pela atlética do curso de medicina. "Veteranos simplesmente despejam um copo de cerveja na cabeça do calouro, que deve ficar quieto e não reclamar para não acontecer coisa pior", dizia uma postagem. Fotos e descrições de veteranos também foram publicadas. "Ele gosta de dar tapas no rosto e cuspir no rosto de seus calouros", dizia uma delas.

Em um grupo de WhatsApp, ao qual o UOL teve acesso, alunos do primeiro ano receberam regras de como responder no grupo do sexto ano: não podem apagar mensagem, "afrontar veteranos", devem responder "ok quando mandarem alguma ordem" e seguir o manual. Os alunos do sexto ano são os responsáveis pela organização do trote.

Todas as pessoas ouvidas pela reportagem afirmam que quem não aceita seguir as regras e situações impostas é excluído dentro e fora da faculdade, inclusive durante e após o período de residência.

"Tem gente que encontro até hoje e não olha na minha cara, não fala comigo", diz Bruna, uma ex-aluna que contestou as regras. Quem se recusa, segundo os relatos, recebe o nome de "pau no cu".

"Eu não me sinto parte de lá. Me sinto mal lá dentro e isso é uma questão que eu trato com medicamento e com terapia", diz Pedro.

O advogado Cândido Neto, assessor jurídico da atlética, afirma que o grupo não obriga ninguém a agir conforme o que foi relatado. "A atlética não tem como controlar se o Joãozinho vai raspar a cabeça da Maria, não é integração da atlética. Agora, se o cara faz isso e depois joga a bomba para atlética, vai ser apurado e investigado", afirma.

Felipe Nunes assumiu a presidência da atlética em agosto do ano passado. Desde então, não foi aberta nenhuma sindicância. Sobre as denúncias do "Relatos Unisa", afirma: "Jogam uma imagem da atlética, sendo que não é a gente. Não conseguimos controlar tudo em um evento que a gente faz", diz Felipe

"Um preto em medicina só de 50 em 50 anos"

Apelidos fazem parte da cultura de abusos. Pedro contou que uma pessoa foi chamada de onça. Quando um veterano perguntasse seu nome, ele deveria responder não só com o apelido, mas "precisava passar a mão no pênis de outra pessoa e dizer que é chamado de onça por causa da pintada".

Ele conta que um aluno negro foi chamado de Haley. Se um veterano perguntasse a razão, deveria dizer que "um preto em medicina só de 50 em 50 anos" —uma referência ao cometa Halley, cuja aparição é periódica, a cada 75 anos.

Os hinos da atlética, entoados em jogos universitários, têm frases machistas e termos de baixo calão. Um fala de "pegar as caipiras e comê-las no canto". Quem não sabe cantar é punido.

Os calouros também são constrangidos a enviar fotos de pênis para pessoas que se envolvem em brigas com veteranos.

Em todos os relatos, os futuros médicos afirmam que o centro acadêmico não oferece nenhum suporte.

A reportagem entrou em contato com centro acadêmico por WhatsApp e pediu uma entrevista, mas a então presidente do grupo negou e informou que eles são e sempre foram contra trote ou qualquer tipo de violência.

Segundo a representante do centro, que prefere não ser identificada, o grupo já recebeu denúncias de trote violento. "Sempre amparamos os alunos, mostrando suas opções para que a situação seja sanada, cabendo sempre ao aluno a decisão do que ser feito", afirmou.

Gota, Crack e Manicômio

O UOL obteve mensagens de dois grupos de WhatsApp de alunos da universidade de 2020. Um deles é de uma turma de calouros, com a presença de veteranos. Nele, os alunos são informados sobre eventos oficias e extraoficiais (como as festas) da faculdade e trocam informações sobre as aulas.

O outro grupo é formado também por veteranos, mas apenas com calouros dispostos a aceitar os trotes. Ali, conversam sobre os trotes aplicados pelos veteranos de outros anos nos eventos de preparação para os jogos universitários, festas e dentro da universidade. Também são compartilhadas regras de comportamento dos calouros nos torneios --os principais são o Pré-Intermed, em abril, e o Intermed, em setembro, competições esportivas entre alunos de faculdades de medicina.

"A tradição dos bixos [sic] homens na abertura é correr pelado na quadra com as outras faculdades", diz um dos participantes.

No mesmo grupo, em uma espécie de gincana, calouros respondem a uma série de perguntas sobre o histórico de trotes da faculdade. Entre as mensagens obtidas pelo UOL, há explicações sobre nomes de turmas anteriores, como Crack, Gota e Manicômio.

O nome Gota faz referência ao LSD líquido que um estudante jogou no galão de água de um alojamento em 2016. A turma Crack, segundo as mensagens, levou o nome porque, no alojamento dos estudantes, "o estado em que eles se encontravam parecia a cracolândia". O apelido Manicômio foi escolhido em referência a "uma galera que ficou travada de loucura", segundo mensagens trocadas por WhatsApp.

Nas mensagens são citados também os nomes das turmas Talibã, "porque o sexto [ano] deles mandou eles colocarem blusa na cara que nem terrorista", e Quebrada, porque a turma do sexto, chamada de Suicida, mandou as pessoas tirarem foto "com pose de quebrada" (nome informal para localidades na periferia).

A justificativa dada pelos veteranos para os trotes abusivos é que seria uma forma de preparação para o período da residência.

"Quem vocês acham que arrumam seus primeiros plantões, falam com os chefes, arranjam carta de recomendação para residência?", questionava uma mensagem enviada aos calouros no WhatsApp. Veteranos reforçam que o trote funciona na "base do respeito e da hierarquia".

O trote é o capitão Nascimento. É o treinamento do Bope [Batalhão de Operações Policiais Especiais]"

Bruna, aluna da Unisa

Mensagens vazadas detalham trotes violentos na medicina da Unisa

'Para abrir sindicância, vítima precisa relatar'

Em entrevista por videochamada ao UOL, o presidente da atlética afirmou que o canal de denúncias está aberto aos alunos. "Tudo que for da nossa esfera e conseguirmos responder, vamos responder. Vamos estar do lado dos alunos pela nossa faculdade", disse.

A reportagem então questionou, após a negativa do grupo, por que a maioria dos alunos responsabiliza a atlética pelos trotes abusivos. "Você está lidando com acadêmicos que são acadêmicos de medicina, quem entende de direito aqui sou eu. É muito mais fácil você ir em uma festa e pensar: quem é o patrocinador? É a atlética? Então isso é coisa da atlética, porque ela está no meio", justificou Neto.

O advogado afirma que para investigar de maneira formal as supostas denúncias é necessário que as vítimas relatem. "A partir do momento que isso é documentado, o processo corre", disse.

Em relação a uma possível hierarquia abusiva, Felipe explicou que a única existente é de cargos, "assim como em toda empresa".

Unisa não se manifestou

No final de 2021, o UOL procurou a Unisa por duas semanas em busca de esclarecimentos. No primeiro contato, por WhatsApp, a assessoria de imprensa respondeu. Mas quando a reportagem informou o tema e pediu uma entrevista com a reitoria e a direção do curso, a equipe visualizou as mensagens e não retornou. A reportagem enviou mensagem em quatro dias diferentes e tentou contato telefônico.

A Unisa tem quatro campi. O prédio do curso de medicina fica no Jardim das Imbuias, zona sul.

Sem respostas, o UOL foi presencialmente até dois campi. No primeiro, tentou contato com a diretoria do curso de medicina, mas foi informado que só poderia falar com hora marcada. Por email, a secretária do diretor do curso informou no dia 15 de dezembro que ele estava de férias e retornaria em 17 de janeiro. Já no segundo, nem a assessoria de imprensa quis atender a reportagem. Também houve tentativa de contato por email e telefone.

Na data marcada para a volta do diretor, novo email foi enviado, sem retorno. Em 19 de janeiro, uma ligação foi desligada quando o repórter se identificou e tentativas seguintes foram ignoradas. Houve ainda tentativas de contato telefônico, também ignoradas, com a coordenadora do curso, Cintia Leci Rodrigues, e com o diretor, Julio Cesar Massonetto —que visualizou mensagem e, em seguida, bloqueou o repórter.

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