Fraturas expostas

Um dos 22 procuradores negros do país defende indígenas de uma "discriminação mais grave que a racial"

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo 12.nov.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress

Filho de um militar da Marinha do Brasil, Marco Antônio Delfino de Almeida nasceu há 51 anos na cidade de Corumbá (MS), que faz fronteira com a Bolívia. Professor de direito constitucional e de direitos humanos, Delfino é procurador da República. Um dos 22 negros neste cargo no país -- o que representa apenas 2% do total de 1.157 procuradores.

Diz ser "privilegiado" pelo fato de ter conseguido estudar em um colégio militar, classificado por ele como "de excelência", ao entrar por cota, apenas por ser filho de quem era. Até chegou a fazer escola naval e tentar seguir a carreira do pai, mas sentia que não tinha vocação. Foi auditor fiscal, mas se interessou em ser membro do MPF (Ministério Público Federal).

Se formou em Direito em 2003. Passou no concurso para a Promotoria em 2004. Mas só assumiu o cargo dois anos depois, porque o concurso exigia dois anos de formado. Foi para Altamira (PA), a cidade mais violenta do Brasil segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), e, dois anos depois, retornou ao seu estado, ficando baseado em Dourados, próximo à fronteira com o Paraguai, região marcada por conflitos fundiários.

12.nov.2014 - Eduardo Anizelli/Folhapress
05.ago.2013 - Lunae Parracho/Reuters/Folhapress

No fio da navalha

Procurador vive no fogo cruzado entre milícias de fazendeiros e indígenas

Delfino é visto "com respeito" pelos povos indígenas e como uma persona non grata por fazendeiros locais. Ele é responsável por produzir ações que podem terminar em prisões. De ambos os lados da disputa territorial.

Nunca tive qualquer tipo de problema com os indígenas porque eu os respeito. Antes, os fazendeiros mandavam matar, agora mandam processar, o que já é um avanço. Não fui ameaçado de forma grave, mas tomo minhas precauções.

Houve um caso que exemplifica a isonomia do procurador. No dia 12 de junho de 2016, índios da comunidade Tey Kuê, da etnia Guarani-Kaiowá, ocuparam a Fazenda Yvu, em Caarapó (MS), na terra indígena Dourados Amambaipeguá. O caseiro da propriedade procurou a polícia, que foi na casa de um cacique da tribo tentar negociar a saída do grupo da área.

No dia seguinte, a negociação prosseguiu com os proprietários. No dia 14, houve um ataque. "Os fazendeiros se enfileiraram em frente à fazenda e simplesmente passaram a atirar. Morreu o filho do cacique com quem a polícia havia ido tentar negociar a saída dois dias antes", afirmou o procurador. Outras nove pessoas ficaram feridas. No mesmo dia, ao saber da morte de seu filho, o cacique determinou o sequestro de policiais que faziam escolta para bombeiros na região.

"Pegaram três policiais e o relato é de que houve tortura", disse Delfino. O procurador ajuizou ações contra os fazendeiros e contra o cacique.

Após quase três meses, os fazendeiros foram soltos por decisão monocrática do ministro do STF (Superior Tribunal Federal) Marco Aurélio Mello. Voltaram a ser presos em voto da segunda turma da corte, mas houve nova decisão de liberdade dois meses depois.

O indígena permanece preso.

O cacique já cometia crimes dentro da própria comunidade, produto da ausência do Estado. Era o vice-capitão da comunidade e, por ausência do aparelho oficial, ele era a chefia local da chamada polícia indígena. Agia como um miliciano, para exemplificar.

A partir do momento que eu estabeleço diálogo, vou denunciar quantos forem necessários. Até hoje, não existiu sociedade humana sem crimes. Independente de ser indígena ou não, tem que ser punido.

Marco Antônio Delfino, procurador da República

Divulgação/MPF

Reparação de violações

As experiências de Delfino nos conflitos no Pará e em Mato Grosso do Sul

Durante seus 13 anos como procurador, Delfino ficou marcado não só como um apaziguador de conflitos fundiários, mas também como um aliado dos diretos indígenas. Sobre Altamira (PA), que vive intensificação de conflitos desde a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, diz ser grato pelo aprendizado junto ao movimento social. Em MS, tenta fazer com que responsáveis por conflitos sejam ajuizados.

"As pessoas cansam de esperar ser atendidas, ter seus direitos respeitados, ter sua área demarcada. Quem em sã consciência suportaria tantas violações? Os conflitos, a rigor, são indígenas que produzem. Produtores rurais acham que os indígenas podem esperar. Esperar 519 anos eu acho que é um pouco demais", afirmou o procurador.

"Muitos conflitos são produto desse processo de achar que eles podem esperar. Esperando que algum dia, nós, dentro da nossa benevolência europeia, vamos conceder alguma migalha da nossa mesa. O termo 'conflito' não sei nem se seria adequado. É um processo de reparação de violações", complementou.

Efetivamente, de acordo com o procurador, há dois tipos de morte nesses conflitos. As mortes diretas, em conflitos já bem estabelecidos diretamente entre fazendeiros e indígenas, e também as mortes indiretas, que acontecem em regiões sob tensões agrárias, sobre as quais não é possível identificar com precisão algoz e vítima.

Divulgação/MPF

"Discriminação contra índios é mais grave que a racial"

Delfino traça um paralelo entre o racismo no Brasil e nos Estados Unidos. Aqui, "a associação do estereótipo do negro é sempre à criminalidade. E isso gera morte de negros". Nos Estados Unidos, "negros sofrem violência e morrem diretamente por serem negros".

Seguindo essa linha de raciocínio, o procurador afirma que, no Brasil, o índio morre apenas pelo fato de ser índio. Na mesma métrica em que mulheres morrem por ser mulheres: o feminicídio. "Nós exercemos um quadro de ódio de etnia, contra índios, muito semelhante ao quadro de racismo americano", analisa.

"No Brasil, há um quadro de genocídio negro dos jovens nas periferias urbanas, mas é sempre um quadro associado à criminalidade, violência. No quadro de indígenas, não há essa associação. São minoria. E as pessoas não aceitam que o dito inferior aja contra o dito superior."

"Existe, claro, ataques a negros, mas sempre em uma questão xis. O índio morre por ser índio. Há um quadro de discriminação estrutural. A famosa entrevista do comandante da Rota dizendo que abordam de forma diferente demonstra que esse quadro é institucional. O negro é sempre uma ameaça, esteja portando um guarda-chuva ou uma furadeira."

Divulgação/MPF

"Sou produto de cota"

"São 22 procuradores negros no Brasil todo. De um total de 1.157. A diferença está no acesso à educação. Eu tive um acesso absolutamente privilegiado. Quando a gente faz uma discussão sobre cotas, nos esquecemos sobre cotas que sempre existiram", afirma o procurador.

Os colégios militares foram fundados para os órfãos da guerra do Paraguai, a partir de 1889. Com o passar do tempo, foram sendo encorpados e se tornaram colégios considerados de excelência. "Eu entrei lá por uma cota. Cota de militares que eram transferidos. Todo militar que é transferido tem direito. Isso é o quê? Cota."

"Vários militares, inclusive, procuram coincidir transferência para regiões de colégios militares com idade semelhante à do filho, para que filhos de militares tenham acesso a educação diferenciada. Eu sou produto de uma cota. Esse processo de franqueamento da educação é feito para que pessoas do andar de baixo possam frequentar o andar de cima", complementa Delfino.

Para ele, cotas raciais são necessárias. "Se não mudar isso, nunca vamos conseguir quebrar essa discriminação que é estrutural. No andar de cima, a sociedade brasileira é europeia. Nas revistas, você via mais negro em revista da Noruega do que no Brasil. A grande questão é: como demoramos tanto para implantar cotas."

É uma crítica que acho que toda instituição tem que fazer. A elite sempre será a elite. Mas a meritocracia é absolutamente falsa. Há gente que não tem dinheiro para ir à escola de ônibus, enquanto tem gente que vai de táxi.

Marco Antônio Delfino, procurador da República

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