Um sopro da Liberdade

Bairro colorido, lar da cultura oriental em São Paulo, empalidece e vira sombra de si mesmo durante quarentena

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Ricardo Matsukawa/UOL

Pombas amontoadas disputam o último farelo de pão que ainda descansa pelo chão das escadarias da Praça da Liberdade, no centro de São Paulo. Já faz horas desde o último tropeço de comida que alguém, sem querer, deixou cair por ali. Bairro-residência de japoneses em São Paulo, a Liberdade está muda em meio à pandemia de Coronavírus que assombra o mundo. E pouco colorida. Com algum esforço, escuta-se até passarinhos matracando...beeeeem lá de longe.

O silêncio, desconfortável aos ouvidos de quem está acostumado à algazarra da maior metrópole do Brasil, é interrompido, de bate-pronto, por um grito.

Até quando vai durar isso, meu Deus? Eu não aguento mais.

A voz, perdida no ar, cujo dono não deu as caras, se misturava às cores sóbrias que na sexta-feira (27) caracterizavam a Liberdade. Ou a falta dela.

O ponto de táxi da praça, geralmente cercado por mesas na calçada e bebeuntes bebericando suas cervejas durante o pôr do sol, estava na miséria. Dos 20 taxistas que ali trabalham —e que, em sextas comuns, não ficam um minuto sequer parados—, apenas três aguardavam alguma migalha de movimento.

Com idades entre 45 e 80 anos, os motoristas contam à reportagem que, às cinco daquela tarde, R$ 20 foi o máximo faturado por eles naquele dia.

O pouco movimento não é o único problema enfrentado pelos três taxistas na primeira sexta-feira desde o decreto de quarentena, assinado pelo governador João Doria, que entrou em vigor na terça-feira (24) no estado de São Paulo. Com os restaurantes a portas fechadas, conta Carlos Nakama, 55, não há onde almoçar, nem fazer xixi.

Os motoristas, então, levam comida feita em casa num tupperware velho, até então perdido dentro do armário da cozinha; almoçam dentro do carro, e na hora de usar o banheiro, bom, saem à caça de algum posto de gasolina aberto.

"Se eu ficar em casa, vou comer o quê? Claro que tenho medo desse vírus, mas prefiro morrer dele, comendo de manhã, de tarde e de noite, num hospital, do que com fome em casa", diz Nakama —o único dos três protegido por uma máscara.

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As pichações pouco coloridas se destacam entre os portões fechados dos restaurantes, bares e hotéis em que se aglomeravam milhares de pessoas há poucos dias. Hoje, ninguém.

A quebra na estrutura metálica se dá, às vezes, quando uma portinha, escondidinha, é aberta: por ela, dá para ver poucos funcionários, as máscaras, cozinhando e embrulhando comida para a viagem. Em quase todos os portões de estabelecimentos, foi colada uma folha sulfite transpassada com durex transparente: "Atendemos delivery, compre para viagem".

Foi o que fizeram pai e filha Joel e Juliana Teodoro que, por volta das três, se aninharam em um banco de madeira, na rua Galvão Bueno, para almoçar. Dentro das caixinhas de papelão que cada um segurava, havia frango frito e gohan, com uma porção de guioza em uma caixinha à parte, entre os dois.

"A gente preferiu comer aqui porque, bem ou mal, é ao ar livre. A outra opção era não comer, não tinha como", conta a produtora. A pausa para o almoço foi durante a visita à mãe de Juliana, que está internada no hospital Leforte, ali do lado, com uma pneumonia grave. "Não é coronavírus, viu?", alerta. "Eles fizeram o teste".

O pai, Joel, 60, fala do pavor em relação à pandemia, "sou fumante, né?", e se emociona ao relembrar da juventude, quando, virava e mexia, andava solto pela Liberdade. "Morava em Guarulhos e, todo sábado, vinha para cá. Eu gostava muito de um restaurante japonês, japonês mesmo, sem essa heresia de cream cheese no sushi, que ficava nos fundos de um casarão. Era meu preferido. Ver a Liberdade vazia, sem vida, como hoje, me faz sentir dor. É doloroso", lamenta. "Mas necessário", conclui a filha.

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É na mesma rua que passeava, diariamente, a professora aposentada Vera Maluf, 83.

Dona de uma voz leve, suave, que força os "dês" e tês", Vera pede à reportagem uma pausa na entrevista, por volta das duas horas, para assistir ao pronunciamento do papa. "Gosto muito de orar". Moradora da Liberdade desde 1970, conta, não parava em casa até a pandemia da covid-19 vir à tona:

"Eu fazia muitas atividades físicas diferentes, meu dia era bem dinâmico e isso me faz muita falta. Tento fazer exercícios online. Faço aulas de yoga, de chi kung e de dança. Tenho sorte de viver num prédio recuado da rua, que mantém uma areazinha ajardinada, que uso para banho de sol e, ah, para caminhadinha também", conta.

Vera lamenta não ter se dedicado o suficiente ao celular para aprender a mexer nele direitinho. Hoje, ela diz, ainda leva um ou outro balão da tecnologia na hora de assistir às aulas.

Ela não queria se meter com tecnologia para não deixar de lado o ar livre, e sua Liberdade, em detrimento das redes sociais. Conta que vai ser a primeira coisa que vai fazer depois que o isolamento acabar. "Se eu sobreviver ao coronavírus", aponta.

É o mercadinho do lado de sua casa que a abastece desde que, há duas semanas, não pisa fora. "Liberdade, né?".

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Um dos poucos estabelecimentos em funcionamento, uma farmácia escondidinha anuncia seus dois maiores destaques de vendas: ovo de Páscoa e álcool em gel.

"Qual sai mais, moça?". "Adivinhe!", ri.

No mercadinho japonês à frente, só duas unidades do produto poderiam ser levadas por cliente. O diálogo entre dono e comprador, a respeito de nota, débito, crédito, e aquela coisa toda que se ouve numa vendinha, era constantemente interrompido por Jair Bolsonaro —a entrevista do presidente ao jornalista José Luiz Datena era a trilha sonora. "Maldito", diz o dono.

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É na Liberdade, atrás de uma grade vermelha, que o auxiliar da Associação Cultural Assistencial conversa com o UOL. Sobre chinelos velhos, os pés pequenos de Mário Ishida, 66, caminham em volta de um laguinho.

Com uma pá grande, ele limpa a moradia das carpas alaranjadas que, ali, nadam. "Tenho que dar comida para os peixes e limpar o lago. O outro funcionário que trabalha aqui já tem mais de 70 anos, sabe como é. Aí ele precisa ficar em casa".

Mário não deve medir mais que 1,60 m. Com olhar perdido e tímido —voltava os olhos ao chão a cada pergunta do UOL—, o auxiliar conta que trabalha na associação há 16 anos. Em casa, mora com a mulher, se exercita e se alimenta bem —com legumes e verduras, "e janto pouquinho".

"Tenho medo desse vírus, mas preciso trabalhar. Esse é o dilema. As pessoas precisam ficar em casa, quem puder, tem que ficar. Não tem mais movimento por aqui, mas as carpas precisam comer". Mário ficaria até as 18h daquele dia no espaço —e era o único funcionário ali presente. Apático, diz baixinho: "Tudo bem, faz parte".

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Liberdade é o vaivém de paulistanos mascarados; japoneses e coreanos, igualmente mascarados.

Cada máscara tinha uma cor —talvez os poucos pontos coloridos que se destacaram naquela tarde. Um homem de trinta anos, vestindo camiseta do super-homem e com o rosto coberto pela cor azul, andava um tanto cabisbaixo. Na Liberdade, o super-homem também tem medo do coronavírus. E quem não tem?

Respondo: o senhor Jose Rai, de nove décadas mais três anos. A reportagem passou por ele algumas vezes, ali na mesma Galvão Bueno.

Sentadinho num banco de madeira, encurvado, com as pernas miúdas cruzadas, Rai lia um jornal escrito em mandarim. "O senhor fala português?", pergunta o UOL. Rai pede que a reportagem se aproxime de seu ouvido. E repita.

"Um pouquinho só. Sou chinês", diz, abrindo o maior sorriso visto nas últimas semanas.

"E não tem medo de ficar aqui fora?", vem a réplica. "Não. Eu sento aqui todos os dias porque preciso tomar sol. E, aqui, fico de costas para o sol", continua a rir.

A Liberdade está vazia; preta e branca; fria e silenciosa. Ainda assim, é no sorriso que some com os olhinhos de Rai que dá para sentir uma pontinha de esperança. E viva seu Rai. Viva, Liberdade.

Ricardo Matsukawa/UOL Ricardo Matsukawa/UOL
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