Feliz Ano... Novo?

Vacinas em reta final de testes trazem euforia, mas dados apontam para um 2021 tão difícil quanto 2020

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra (Suíça) REUTERS/Maxim Shemetov

Há finalmente luz no final do túnel. Mas o que governos e especialistas estão descobrindo é que o túnel é mais longo do que se imaginava e mais escuro que se desejava.

Enquanto o mundo espera ansiosamente para virar a página de um ano terrível, agentes humanitários e autoridades alertam que 2020 tem tudo para não terminar no dia 31 de dezembro, e que sociedades terão de mostrar resiliência.

A descoberta que vacinas funcionam injetou um otimismo real pela primeira vez desde o começo da crise. A aérea Lufthansa, por exemplo, indicou que o número de reservas para o verão europeu de 2021 triplicou desde o anúncio da imunização. Bolsas subiram, o dólar caiu e políticos choraram ao vivo na TV.

Mas, na OMS (Organização Mundial da Saúde), a ordem é de martelar ao mundo que a pandemia está longe de terminar, e insistir que governos não podem abandonar medidas de controle, sob o risco de viver um acúmulo ainda maior de mortes.

Os dados revelam que o vírus não perde força, com 4 milhões de novos casos por semana desde novembro. Em meados do ano, o mundo precisava de dez dias para somar 1 milhão de novos infectados. Hoje, a velocidade da transmissão é, portanto, mais de quatro vezes superior.

Cientistas na OMS revelam ao UOL a avaliação de que o vírus ainda tem um "amplo espaço" na população mundial para circular em 2021. Hoje, quase 90% das pessoas continuam vulneráveis ao vírus, o que revela a dimensão dos riscos.

E, com as festas de final de ano, o temor é de que 2021 comece com um novo avanço da doença. "A celebração muito rapidamente pode se transformar em tristeza", advertiu Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.

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Renato S. Cerqueira / Estadão Conteúdo Renato S. Cerqueira / Estadão Conteúdo

Américas com transmissão acelerada

Segundo Tedros, houve um aumento de mortes de 60% em seis semanas no mundo. "A situação global epidemiológica é ainda muito instável", alertou Mike Ryan, diretor de operações da OMS. "Vacinas, em 2021, não significam zero covid-19", alertou.

Nas Américas, a transmissão continua subindo, com uma expansão de 12% em novos casos e 18% em mortes apenas na última semana.

No Brasil, o país vive a maior expansão em novos casos desde agosto e supera, em percentual, o crescimento em todos os principais países afetados pela pandemia.

Na OMS, não há qualquer indicação de que essa taxa esteja em queda e o temor é de que festas de final de ano, férias e uma sensação de que a crise já tem uma solução com a vacina alimentem um cenário de "descontrole" do vírus no início de 2021.

JUSTIN TALLIS / various sources / AFP JUSTIN TALLIS / various sources / AFP

Segunda geração de vacinas

Para acelerar um ponto de inflexão na crise em 2021, uma das apostas é na chegada de uma segunda geração de vacinas.

Hoje, 347 candidatos estão sendo pesquisados e desenvolvidos. Mas mesmo os principais executivos do setor farmacêutico apontam que, mesmo com os avanços demonstrados pela ciência, o ano de 2021 será "repleto de obstáculos".

Nesta semana, dois episódios deixaram claro que esses obstáculos são reais. A Sanofi e a GlaxoSmithKline, duas das maiores empresas do setor, revelam que sua candidata à vacina não produziu uma resposta imunológica suficiente entre os mais velhos. O projeto será revisto e um resultado apenas será apresentado no final de 2021.

Na Austrália, a Universidade de Queensland e a empresa CSL anunciaram que estão abandonando o projeto de desenvolver uma vacina, diante dos resultados insuficientes.

Se não bastasse, a OMS começa 2021 sem dinheiro para implementar sua estratégia de garantir que a vacina possa chegar aos países mais pobres. Com cofres vazios, a agência deixa claro que bilhões de pessoas correm o risco de ficar excluídos dos avanços da ciência em 2021.

O final de 2020 e o começo do próximo ano ainda será marcado por um exercício dos mais complexos para muitos países: contar os corpos. O primeiro a fazer isso foi a Espanha, que já admitiu que as mortes pela covid-19 foram 70% superiores às taxas que tinham sido apresentadas entre março e maio. No lugar de 27 mil, os novos números chegam a 47 mil.

Xinhua/Osman Orsal Xinhua/Osman Orsal

Sem vacina, com toque de recolher

"Nosso maior obstáculo é a produção", admitiu Albert Bourla, CEO da Pfizer. Segundo ele, a indústria exauriu o abastecimento de máquinas e insumos, o que coloca um limite real em sua produção.

O executivo prevê a fabricação de 1,3 bilhão de doses em 2021. Mas destaca que, sem essas barreiras, poderia produzir de 2 bilhões a 3 bilhões de doses.

Entre os principais governos europeus, discussões intensas estão ocorrendo neste momento para avaliar a possibilidade de ampliar as medidas de restrição. Na França, um novo toque de recolher será estabelecido, inclusive para as festas de final de ano.

AP AP

Sombra da Gripe Espanhola

Na realidade, não é apenas a Alemanha que vive tal cenário. Se a segunda onda da Gripe Espanhola (no início do século 20) foi mais devastadora que a primeira, os números em 2020 mostram exatamente o mesmo padrão.

Foram pelo menos 152 mil mortes no atual período de transmissão do vírus, contra 137 mil no primeiro semestre.

Países que tinham se saído relativamente bem entre março e abril, como Áustria, Polônia e Hungria, hoje registram números inéditos de contaminações.

De acordo com a Unicef e Unesco, escolas voltaram a fechar as portas em dezembro e, num total, mais de 300 milhões de crianças voltaram a ser afetadas na Asia, Leste Europeu e na América Latina.

Na OMS, a direção descreve a situação dos EUA, a maior potência econômica mundial, como "chocante". O país atingiu um recorde com 3 mil mortes na quinta-feira e 16 mil numa semana. No total, 70 mil pessoas estão internadas.

Para Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas, o país só volta a uma "normalidade" no final de 2021.os números chegam a 47 mil.

REUTERS/Kim Kyung-Hoon REUTERS/Kim Kyung-Hoon

Europa e Ásia em alerta

Na Europa, depois de um salto importante, sinais de queda dividem espaço com indicações claras de que qualquer relaxamento permitiria uma nova onda de infecções.

Maria van Kerkhove, diretora técnica da OMS, alerta que houve uma estagnação na tendência de queda pelos europeus. "Vamos ter de ir até o final desse processo. É muito fácil que essa situação uma vez mais registre um salto", disse.

No Japão, as autoridades já temem uma terceira onda e alertam como, nos últimos dias, o número de casos voltou a subir. A Coreia do Sul foi usada como um modelo na primeira onda da doença, mas voltou, nos últimos dias, a ver os dados subir aos mesmos patamares de março.

Ninguém ousa fazer previsões sobre 2021. Salvo a de que não haverá vacinas para todos e que governos terão de manter medidas de controle.

Natal alemão

Berlim, por exemplo, considera ampliar as férias de Natal para as crianças, na esperança de tirar a pressão sobre um sistema saúde que até agora tinha conseguido resistir.

A cidade não é um caso isolado. Angela Merkel, num apelo emocionado, disse que os alemães precisam restringir seus contatos sociais durante as festas no final de ano, enquanto os números de mortes diárias no país batem recorde.

Cientistas alemães pediram que um confinamento fosse estabelecido até meados de janeiro. Mas a indústria convenceu as autoridades políticas que, nas semanas que antecedem o Natal, um lockdown completo teria de ser evitado.

Para diretores de hospitais como Stefan Kluge de Hamburgo, um "lockdown mais amplo parece inevitável" no começo de 2021.

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