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Bolivianas tricotam dispositivos que 'consertam' corações infantis

Ignacio de los Reyes

Da BBC Mundo

31/03/2015 05h57

Na tribo aymara, na Bolívia, as tricoteiras carregam séculos de tradição na confecção de casacos, cobertores e chapéus típicos feitos de lã. Agora, sua técnica está ajudando a produzir um equipamento médico de alta tecnologia, com o objetivo de salvar a vida de crianças nascidas com problemas congênitos que formam "buracos" no coração.

"Estamos muito felizes por fazer algo para que alguém possa sobreviver", diz a tricoteira Daniela Mendoza, que confecciona a pequena peça em uma sala especialmente higienizada.

Em cerca de duas horas, ela produz um "Nit Occlud", como é chamada a peça, projetada pelo cardiologista Franz Freudenthal.

O dispositivo, conhecido na medicina pelo nome em inglês occluder, é usado para cobrir e bloquear um buraco no coração do paciente.

A maioria das peças é feita em escala industrial, mas a versão de Freudenthal é tão pequena e elaborada que dificulta sua produção em massa. Por isso, ele tem usado a expertise das tricoteiras para fazê-las manualmente.

Os primeiros protótipos foram testados nos corações de ovelhas com problemas cardíacos. Depois de usá-los com sucesso também no coração de crianças, ele agora exporta a técnica.

"O mais importante é que tentamos obter soluções muito simples para problemas complexos", disse Freudenthal à BBC.

Por sua clínica, na capital La Paz, já passaram centenas de crianças com problemas cardíacos.

País mais pobre da América do Sul, a Bolívia não tem hospitais especializados - ou cardiologistas - suficientes para tratar as crianças com problemas cardíacos. Por isso, inovações baratas são bem-vindas. Além disso, ao evitar uma cirurgia de coração aberto, a técnica evita problemas culturais: a manipulação do coração é considerada um sacrilégio em algumas comunidades indígenas da Bolívia.

O aparelho de Freudenthal é feito de um único fio de metal superelástico, usado na indústria militar, conhecido como nitinol. Ele é capaz de memorizar sua própria forma e pode ser comprimido para entrar em um cateter, passar pelos vasos sanguíneos e expandir ao chegar ao ponto correto do coração.

Ao recuperar sua forma original - semelhante a uma cartola -, ele bloqueia o buraco cardíaco (também conhecido como Persistência do Canal Arterial, ou PCA). Em geral, esse buraco é corrigido naturalmente após o nascimento do bebê.

Altitude

Portadores de problemas cardíacos congênitos têm dificuldade em ganhar peso e sofrem de fadiga frequente, já que seus corações têm de trabalhar três vezes mais do que um normal para bombear o sangue pelo corpo.

Por conta da alta altitude e do ar rarefeito em La Paz - que está 4.000 metros acima do nível do mar -, Freudenthal diz que esses problemas são dez vezes mais frequentes na Bolívia do que em outros países.

A menina Cinthia, de 6 anos, foi operada três anos atrás. O sangue que deveria suprir energia e oxigênio para o seu corpo escapava pelo canal arterial até este ser contido pelo procedimento cirúrgico.

A mãe de Cinthia, Victoria Hilari, lembra que ela "mal conseguia caminhar um quarteirão" sem ficar cansada e quase desmaiava ao chorar. "Foi quando eu percebi que ela tinha um problema, mas não sabia o que fazer", diz Victoria. "Agora ela consegue correr e até está fazendo aula de educação física na escola."