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Como a descrença de cirurgiões leva pacientes resistentes a anestesia a sentirem dores terríveis

BernardaSv/iStock
Imagem: BernardaSv/iStock

29/01/2017 18h25

Os médicos reagiram com espanto a Tori Lemon. Ela tinha ido até a clínica Mayo, em Jacksonville, na Flórida, para remover um lipoma - um comum tumor benigno formado por tecido adiposo logo abaixo da pele - que tinha se desenvolvido em seu cotovelo.

Ela precisava de uma anestesia local para o procedimento, mas nada parecia dar certo.

"Eles usaram todos os jeitos e todos os remédios diferentes que tinham, mas nada funcionou", contou.

Steven Clendenen, anestesiologista na clínica, lembra da paciente. "Os nervos estavam inundados com anestesia local, mas não funcionou."

A equipe médica pode até ter ficado surpresa, mas aquilo não era novidade para Lemon. Ela sempre teve esse problema: resistência à anestesia local.

A primeira vez que notou isso foi décadas atrás, aos sete anos de idade, numa ida ao dentista.

"Eles começaram a trabalhar e eu, obediente, só levantei a mão para que eles soubessem 'estou sentindo isso'", lembrou.

Outra injeção de anestesia local não fez efeito.

"No fim eu só comum gritei e chorei o tempo todo."

Clendenen, que observou de perto os efeitos da resistência à anestesia em Lemon, decidiu investigar o problema. Ele descobriu várias histórias na literatura médica relatando estranhos casos de pacientes que diziam que a anestesia local não fazia efeito.

Ninguém sabe direito o que acontece com essas pessoas - ou seja, qual mecanismo causa a resistência ou qual seria o melhor remédio contra ela.

Mas um novo estudo genético de Lemon e da família dela pode ajudar a descobrir o que provoca isso.

Uma doença - e algumas pistas

Alan Hakim e seus colegas no University College Hospital de Londres foram alguns dos primeiros cientistas a divulgar esses casos.

Hakim atuava em uma clínica para pessoas que sofrem da síndrome de Ehlers-Danlos, um grupo de doenças genéticas muito raras caracterizadas por problemas no tecido conjuntivo, que leva a fadiga, hipermobilidade das juntas e a uma pele que se fere facilmente.

Ele descobriu que alguns desses pacientes também relatavam resistência à anestesia local.

"Ficou óbvio para nós que esso era uma pergunta que deveríamos fazer a todos os pacientes da clínica", lembra Hakim, um dos autores de um relatório sobre as descobertas em 2005.

Onze anos depois de escrever sobre o problema, ele conta que ainda não houve uma pesquisa médica formal sobre as causas da resistência a anestesia local nesses casos, apesar de já existirem algumas teorias.

Uma hipótese é que o tecido desses pacientes é um pouco diferente das pessoas que não têm a síndrome, e isso poderia afetar a absorção das substâncias anestésicas.

A anestesia local funciona ao interromper os canais que conduzem íons positivos de sódio - e com eles a sensação de dor - para as células nervosas. Mas ainda restam questões a respeito desse processo.

Descobrir todos os detalhes pode explicar a razão de alguns pacientes reagirem melhor a alguns medicamentos - por exemplo, articaína ao invés de lidocaína.

Uma teoria proposta para a maior eficácia da articaína, por exemplo, é que ela é mais solúvel em gordura (lipídios) e, por isso, se espalha melhor por cada membrana do nervo.

Também é possível que os nervos dos pacientes estejam em um lugar um pouco diferente do normal - alguns dentistas, por exemplo, conseguiram contornar o problema mudando o local da injeção.

Às vezes a anestesia local é injetada no tecido abaixo da pele (em um processo chamado de infiltração). Em outras, é injetada no nervo ou perto dele (bloqueio do nervo).

Um dentista pode usar o bloqueio do nervo se for fazer algum trabalho de perfuração, por exemplo.

Mas faltam dados concretos sobre o assunto - alguns artigos sobre as razões da resistência a anestésicos em pacientes que sofrem da síndrome de Ehlers-Danlos não entram em detalhes.

"Eles não são específicos, não falam se é a técnica de infiltração ou a técnica de bloqueio do nervo (que falhou)", apontou Joel Weaver, um anestesiologista odontológico na Ohio State University, nos Estados Unidos. Assim como outros na área, ele pede mais pesquisas.

Hakim afirma que o trabalho que fez junto a seus colegas aumentou a conscientização entre médicos e dentistas, mas muitos até hoje nunca ouviram falar e até duvidam da existência do problema.

Só dez minutos

Jenny Morrison, uma enfermeira especializada no tratamento de pacientes com a síndrome de Ehlers-Danlos - e que também tem o problema -, já se deparou com médicos e dentistas céticos.

"(A anestesia) Funciona por alguns minutos e o efeito passa muito rápido. Em algumas pessoas, não funciona de jeito nenhum mas, para mim, dura cerca de dez minutos."

Alguns de seus pacientes já contaram que médicos e dentistas simplesmente não acreditam quando eles dizem: "anestesia local não funciona comigo".

Uma organização britânica especializada no problema, a Ehlers-Danlos UK, publicou informações que os pacientes podem mostrar aos médicos para explicar o problema.

Morrison afirma que isso pode ajudar, mas a mudança real na percepção dos médicos e dentistas só virá quando uma grande pesquisa confirmar a existência do fenômeno em uma quantidade considerável de pacientes.

"Acho que até termos um certo nível de prova disso, será muito difícil fazer os médicos aceitarem", afirmou.

Lori Lemon disse que também passou por isso.

Além dos problemas com o dentista e outros procedimentos mais recentes, ela cita outras experiências dolorosas durante cirurgias. Lembra, em particular, de um cateterismo cardíaco, procedimento no qual um longo tubo passa por uma veia do paciente até chegar ao coração.

"Senti tudo. E, de novo, isso não é algo pelo qual um paciente deveria ter que passar."

Mutação

Existe algo surpreendente no caso de Lemon: ela nunca foi diagnosticada com Síndrome de Ehlers-Danlos. Por isso, Steven Clendenen está tentando descobrir se podem existir outras razões para a resistência dela aos anestésicos.

O filho dele, Nathan, da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, sugeriu que pode haver uma causa genética. O resultado da pesquisa da equipe é um novo estudo indicando que a resistência a anestesia pode ser mais comum do que imaginávamos.

Eles perguntaram a outros membros da família de Lemon se eles passaram pelo mesmo problema e descobriram que a mãe dela e uma meia-irmã por parte de mãe também pareciam ter a mesma resistência, apesar de nelas ela não parecer tão forte. O pai não sofria do problema.

O passo seguinte seria analisar o DNA dos familiares de Lemon e, quando Clendenen e seus colegas fizeram isso, descobriram um problema genético relacionado a um canal de sódio específico no corpo, conhecido como sódio 1.5.

O gene afetado, chamado SCN5A, produz uma proteína chamada NaV1.5, que é um grande componente desse canal.

Esse tipo de mutação é conhecido como uma mutação "de troca de sentidos", o que significa que um dos aminoácidos na proteína é diferente em pessoas com essa diferença genética.

O resultado é que a funcionalidade da proteína pode ser afetada. Uma mutação parecida significa que as pessoas com anemia falciforme, por exemplo, têm hemoglobina anormal - a proteína que carrega o oxigênio no sangue.

"Analisamos a genética disso e foi tipo 'uau' - (a mãe dela) tinha o mesmo defeito", contou Clendenen. A meia-irmã maternal também, mas o pai, que não tem resistência à anestesia, não tinha.

Os canais sódio 1.5 só foram estudados em detalhe em tecido cardíaco, não nos nervos periféricos onde a anestesia local é aplicada.

Um teste químico mostrou rapidamente que os canais sódio 1.5 estavam presentes nos nervos periféricos. Então, um problema genético relacionado a esses canais poderia, em tese, inibir a anestesia nestas áreas do corpo.

Não está clara qual a diferença que essa mutação causa, mas pode ser que ela faça os canais de sódio ter mais chances de permanecerem abertos, permitindo o fluxo de sinal do cérebro apesar da aplicação de anestesia local.

O anestésico geralmente inibe o fluxo de sódio e, com isso, impede que o sinal de dor chegue ao nervo. Mas Clendenen admite que os detalhes desse mecanismo ainda são um mistério.

Casos parecidos

Depois de apresentar sua pesquisa em uma conferência recente, Clendenen disse que vários médicos contaram casos de pacientes com uma resistência ainda não explicada à anestesia local.

Um dos profissionais que procuraram o pesquisador chegou a contar que fez cinco anestesias locais de bloqueio de nervo no mesmo paciente, mas nada funcionou.

Alan Hakim afirmou que a pesquisa é "fascinante". Para ele, identificar as diferenças genéticas que potencialmente afetam canais de íons no sistema nervoso pode ser útil para ajustar os tratamentos para pacientes que têm o defeito e sofrem de resistência à anestesia.

"Pode ser muito decisivo em termos de determinar que tipo de remédio você poderá usar e a eficácia dele", explicou.

Mas Hakim lembra que apenas uma família foi pesquisada - o resultado precisa ser replicado com mais pessoas.

Clendenen, por sua vez, conta que o próximo passo da pesquisa é examinar mais pessoas que reclamam de resistência à anestesia local para verificar se elas também têm essa peculiaridade genética.

Ele também quer examinar o comportamento de anestésicos locais em células que apresentam esse defeito genético.

Lori Lemon é só elogios ao trabalho de Clendenen e à Clínica Mayo.

Ela lembra o quanto seu problema a deixou com "medo" de contar aos médicos que algo poderia dar errado caso ela precisasse de cirurgia.

A paciente encara a situação com bom-humor.

"Me sinto como um dos X-Men, tenho uma mutação", brinca.

Para aqueles que tiveram que aguentar procedimentos invasivos sem contar com nenhum alívio da dor ou encarar uma anestesia geral para uma simples cirurgia no dentista, uma nova esperança pode estar surgindo.

"É muito importante divulgar isso. As pessoas não acreditam (nesses pacientes) e é muito frustrante. Até alguns de meus colegas, com quem conversei, falam 'não acredito'", disse Clendenen.