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A história por trás do primeiro transplante de coração do mundo

Richard Holmes - BBC Travel

14/06/2019 16h19

No hospital Groote Schuur, em 3 de dezembro de 1967, o cirurgião sul-africano Christiaan Barnard realizou o primeiro transplante de coração humano do mundo e tornou-se uma celebridade da noite para o dia.

Do lado de fora, os primeiros raios de sol anunciavam o amanhecer do dia 3 de dezembro de 1967. A África do Sul ainda vivia sob o apartheid, o regime de segregação racial controlado pela minoria branca.

Mas na sala de cirugia 2A do hospital Groote Schuur da Cidade do Cabo, a história da medicina mundial estava sendo escrita.

Por volta das 6h, com o professor Christiaan Neethling Barnard observando ansiosamente por trás de sua máscara cirúrgica, o coração de Denise Darvall voltou a bater, reencontrando seu ritmo.

A diferença é que ele batia no peito de Louis Washkansky. O primeiro transplante de coração humano do mundo havia sido um sucesso.

Foi um momento crucial na história da medicina, um acontecimento que estampou jornais em todo o mundo e transformou Barnard em uma celebridade da noite para o dia.

E a jornada até o momento do primeiro transplante de coração humano do mundo, bem como depois dele, é minuciosamente contada nos próprios corredores do local onde a operação ocorreu.

"Este não é apenas um museu, é um patrimônio", disse Hennie Joubert, fundador e curador do Museu do Coração da Cidade do Cabo. "É onde tudo aconteceu."

O Museu do Coração da Cidade do Cabo fica nas dependências do hospital Groote Schuur, um dos maiores hospitais públicos da Cidade do Cabo, na África do Sul. Ao visitar o local, o visitante passa por funcionários uniformizados e familiares que levam mantimentos para seus entes queridos.

Ainda que seja, sem dúvida, um patrimônio histórico, o hospital continua sendo um ambiente de trabalho frenético e o principal centro de ensino para a Faculdade de Medicina da Universidade da Cidade do Cabo.

Testes em cães

Há muito tempo, Barnard e o transplante de coração fascinam Joubert.

Seu pai e Barnard se tornaram amigos quando estudavam juntos na Universidade da Cidade do Cabo, e antes de Barnard mergulhar no mundo da cirurgia, os dois compartilharam um consultório na pequena cidade agrícola de Ceres.

Joubert vendeu seu negócio no ramo da oncologia em 2006 e abriu o museu em 2007 para marcar o 40º aniversário da operação.

"Disse à minha esposa que construiria um museu custe o que custar", ri.

Com o passar dos anos, Joubert investiu mais de 8 milhões de rands (R$ 2,2 milhões) de seu próprio bolso no projeto, reformando e restaurando as salas de operação originais, criando exposições e colecionando recordações do acontecimento.

O museu traça o caminho de Barnard rumo ao estrelato da medicina em sete espaços, juntamente com a pesquisa mundial que pavimentou o caminho rumo ao primeiro transplante de coração humano.

Naquela época, Barnard não era o único cirurgião cardíaco que esperava escrever seu nome nos livros de história.

Nos Estados Unidos, Richard Lower e Norman Shumway passaram o fim dos anos 1950 e 1960 aperfeiçoando os procedimentos de transplante em cães, e Barnard se baseou em suas pesquisas e em seus próprios testes com 'pacientes' caninos na África do Sul.

Ao lançar luz sobre esses primeiros testes, que ocorreram no auge do período de segregação racial do apartheid na África do Sul, o museu também aborda brevemente o papel crucial desempenhado pelos assistentes negros e mestiços no histórico transplante.

Hamilton Naki, em particular, ficou famoso por sua ascensão de zelador do hospital a membro habilidoso da equipe que auxiliava na pesquisa de transplantes no laboratório de animais da Groote Schuur.

E de muitas maneiras, a África do Sul era um lugar incomum para que essa revolução da prática médica acontecesse.

Definição da morte

Em 1967, o país estava cada vez mais isolado do mundo por suas políticas de segregação racial.

Mas parte do sucesso de Barnard se deve à interpretação legal da morte. Na África do Sul, os médicos podiam declarar morto um paciente com morte cerebral, o que abria caminho para a doação de órgãos.

Já nos Estados Unidos, apenas a ausência do batimento cardíaco cardíaco qualificava um paciente como legalmente morto.

Shumway criticava tal concepção, chamando-a de antiquada, enquanto Lower foi quase processado por assassinato após realizar seu primeiro transplante de coração, o 16º no mundo, em maio de 1968.

Sem localizar a família do doador, Bruce Tucker, Lower prosseguiu com a operação e retirou o coração do homem para transplante.

Quando a família de Tucker descobriu o que havia acontecido, eles o processaram, acusando-o de negligência médica.

Lower foi finalmente inocentado de qualquer irregularidade em 1972, e o precedente acabou por mudar a legislação americana sobre a determinação da morte.

A morte, tanto quanto a vida, é fio condutor do museu. Mas seu canto mais tocante não vem dos pesquisadores e cirurgiões que lutaram pelo reconhecimento do pioneirismo, mas do quarto de Denise Darvall, a bancária de 25 anos que acabou entrando para a história.

Em 2 de dezembro de 1967, ela e a mãe foram atropeladas por um carro na Main Road, em frente ao hospital. Enquanto sua mãe, Myrtle, morreu imediatamente, Denise sofreu lesões cerebrais que, horas depois, se mostrariam fatais.

No museu, as paredes de seu quarto recriado estão repletas de objetos pessoais doados pela família Darvall, incluindo esboços de seus diários e uma pequena bíblia. Espalhado pela cama, há um punhado de discos de vinil, principalmente de valsas e óperas.

Mas o que mais impressiona aqui são as palavras, escondidas em uma parede, de seu pai.

Apenas algumas horas depois de perder sua esposa e a filha, os médicos pediram sua permissão para que o coração de Denise fosse transplantado para o peito de um paciente muito doente de 54 anos de idade. Sua resposta?

"Bem, doutor, se você não pode salvar minha filha, tente salvar este homem."

Aquele homem era Louis Washkansky, que encontramos - em forma de um boneco - em uma cama de enfermaria em outro quarto.

Ele tinha sido internado praticamente desenganado por causa de insuficiência cardíaca progressiva.

Basta um olhar atento nas cópias dos prontuários médicos acima de sua cama para ver que um comentário de um médico, praticamente ilegível, se destaca.

"Nenhuma cirurgia ajudará (este homem). Deixe a natureza seguir seu curso."

Barnard discordou, e a ambição desse jovem cirurgião é bem contada na recriação de seu consultório.

Painéis pendurados na parede traçam sua jornada desde sua origem humilde, como filho de um pastor na semi-desértica cidade de Beaufort West até suas frustrações como clínico-geral, passando por seu posterior treinamento cirúrgico nos EUA.

Polêmicas e luta para criar museu

No auditório adjacente, um documentário de 26 minutos revela as muitas facetas de Barnard: um cirurgião brilhante, mas um homem que gerou polêmica ao longo de sua carreira.

Tudo isso é um prelúdio para o par de salas de cirurgia onde o transplante histórico ocorreu na madrugada de 3 de dezembro de 1967: 2A, onde Washkansky esperava um novo coração deitado em uma mesa de operações, e 2B, onde Darvall estava pronta para doar o dela.

"Queria recriar o museu exatamente como na noite da operação. Fiquei obcecado com isso", relembra Joubert.

Felizmente, a burocracia do sistema de saúde pública da África do Sul se mostrou útil.

"A documentação do hospital Groote Schuur era muito precisa, então, todos os números de série de todos os equipamentos que estavam na sala de cirurgia naquela noite estavam disponíveis", lembra Joubert.

Trazer o equipamento de volta à sua casa original não foi tão simples. A cama da sala de cirurgia onde Darvall estava foi doada ao Hospital Católico Romano na capital da Namíbia, Windhoek.

"Telefonei para o chefe do hospital e expliquei que precisava da cama na Cidade do Cabo porque faz parte da história da África do Sul", diz Joubert. Ele substituiu a cama por uma nova e trouxe a original de volta para a Cidade do Cabo.

A luminária da sala de cirurgia 2B também foi vendida, mas Joubert conseguiu localizá-la em um hospital veterinário local e convenceu os proprietários a devolver o original ao museu.

A inclusão de memorabilia original empresta significativa autenticidade ao museu.

Na sala de cirurgia 2A, a máquina original de Circulação Extracorpórea que manteve Washkansky vivo fica de um lado. A balança usada para medir a perda de sangue foi localizada em um depósito do hospital e hoje pode ser encontrada no posto de enfermagem da sala de cirurgia 2A.

No escritório recriado de Barnard, seu manequim fica atrás da escrivaninha original de seu escritório na Universidade da Cidade do Cabo. A pasta do médico, de couro antigo ao pé da lareira, é de seu tempo como clínico-geral em Ceres.

No corredor do lado de fora dos centros cirúrgicos, as vitrines estão repletas dos telegramas e cartas originais que vieram de todo o mundo quando as notícias sobre o transplante passaram a circular. Shumway enviou a Barnard seus parabéns - e, sem dúvida, conselhos indesejados sobre os cuidados pós-operatórios.

Mas nem todos saudaram a conquista.

"Para o açougueiro do hospital Groote Schuur", diz uma nota da Mary Power Slattery, em Chicago. "Um bando de ghouls (monstro folclórico associado com cemitérios e que consome carne humana), todos vocês", escreveu S. Peschel, de Arlington, no Estado americano da Virgínia.

Mas, de todos os artefatos no Museu do Coração da Cidade do Cabo, os mais importantes podem facilmente deixar de ser notados.

Dentro de uma caixa de vidro no centro cirúrgico 2B, o visitante encontra dois cubos de vidro cheios de formaldeído, preservando dois itens importantes. À esquerda: o coração doente de Louis Washkansky.

À direita: o coração de Denise Darvall que escreveu para sempre o nome de Barnard na história da medicina moderna.

Washkansky viveu apenas 18 dias após o transplante - a morte foi causada por uma pneumonia dupla. Mas, quando deu seu último suspiro, o coração de Darvall ainda batia fortemente dentro do peito de outro ser humano.

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